Para uma reflexão sobre a sala de aula convém pensar nos seguintes elementos: o professor, os alunos e o livro didático. Apesar de muitas discussões caminharem para a superação de uma aula hierárquica em que o professor é o detentor do saber, enquanto que o aluno ocupa o lugar de receptor, a realidade da sala de aula mostra que nem sempre essa relação está ultrapassada.
É fato que o professor tem autonomia para definir a maneira e o conteúdo que vai trabalhar, porém, diversas vezes a única ferramenta usada nas aulas é o livro didático, que acaba se tornando o protagonista.
Com relação à aula hierárquica, muitos professores acabam por priorizar suas próprias interpretações ou deixar como absolutas as respostas trazidas pelos livros didáticos e, com base nisso, nossa indagação vai em direção ao aluno: qual a posição do aluno? Qual a relevância da interpretação do aluno na sala de aula?
O aluno, sujeito tal como o é, ocupa um espaço de questionamento; posiciona-se diante de um texto (verbal ou não), cujo tema ele relaciona a outros textos com outros sentidos. Todo texto possui várias possibilidades de leituras e cada sujeito compreenderá dentro de algumas delas, mas de outras não, e isso depende da posição ideológica que o sujeito ocupa.
É a partir da formação ideológica desse sujeito, ou seja, a posição que o mesmo ocupa em uma determinada conjuntura sócio-histórica, que lhe dará suporte para estabelecer sua formação discursiva. Um trabalho com a interpretação de texto, por exemplo, denota a posição do aluno como um sujeito histórico que mobiliza sua memória discursiva, a qual vai buscar no já-dito, todas as formulações feitas e já esquecidas que determinam o que diz o sujeito (ORLANDI, 2005, p. 33).
Todas as formulações feitas, ou seja, tudo aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente, é o que chamamos Interdiscurso. Segundo Orlandi (ibdem), para que uma leitura e consequentemente uma interpretação não sejam feitas de maneira reducionista e superficial deve haver o trabalho com o Interdiscurso.

"A noção de discurso com a compreensão do que seja a historicidade (Interdiscurso) na relação da língua com os sentidos permite pensar o sujeito não como psicológico, mas afetado pela ideologia e pelo inconsciente conjuntamente".

Portanto, quando nos manifestamos, filiamo-nos a uma rede de sentidos, mas não somos conscientes da ação, já que o que está a frente é a ideologia, pela qual nos relacionamos com a língua e a história, resultando o saber discursivo e mobilizando variados outros discursos constitutivos dos nossos dizeres.
Tal relação não se aprende e não se ensina, a interdiscursividade é mediada por nossas vivências, por nossas experiências simbólicas. O interdiscurso é esse saber que não temos controle de onde vem, mas que determina nossos dizeres e explicita nossa posição. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como significamos em determinada situação discursiva (Ibdem, p. 31)
Um conteúdo a ser trabalhado em língua portuguesa, por exemplo, são as figuras de linguagem e entre elas, a ironia. A ironia, assim como a interdiscursividade, não é algo pontual que se possa ensinar ou aprender, mas sim processual, já que o que se mobiliza é a memória discursiva de cada aluno, pois, a medida que ele faz determinadas inferências sobre o assunto e mobiliza a partir disso os outros discursos, o aluno interpreta um texto e reconhece figuras como a ironia.
Pensando nisso, um exemplo de atividade com uma crônica humorística aponta um caminho para trabalhar em sala de aula com a questão de interpretação.


Desabafos de um Bom Marido
Luis Fernando Veríssimo

Minha mulher e eu temos o segredo para fazer um casamento durar: Duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas.
Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em SP. Eu levo minha mulher a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta. Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento, "em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!" ela disse. Então, sugeri a cozinha. Nós sempre andamos de mãos dadas... Se eu soltar, ela vai às compras!
Ela tem um liquidificador, uma torradeira e uma máquina de fazer pão, tudo elétrico. Então, ela disse: "nós temos muitos aparelhos elétricos, mas não temos lugar pra sentar". Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica. Lembrem-se: o casamento é a causa número 1 para o divórcio. Estatisticamente, 100% dos divórcios começam com o casamento. Eu me casei com a "senhora certa". Só não sabia que o primeiro nome dela era "sempre".
Já faz 18 meses que não falo com a minha esposa. É que não gosto de interrompê-la. Mas, tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha. Ela perguntou: "o que tem na TV?" E eu disse: "Poeira".





O texto acima, de Luis Fernando Veríssimo, se estabelece a partir de um jogo humorístico com relação ao casamento. O professor, ao ler o texto pode trabalhar a questão da ironia e com isso mobilizar as possibilidades interpretativas de cada aluno, induzindo-os a pensar sobre um tema que faz parte da realidade dos mesmos, já que o casamento é um mote sobre o qual todos terão algo a dizer, seja com base na própria família, em filmes, em novelas, leituras, ou outros discursos aos quais eles já estiveram expostos.
A idéia que traz o autor ao "falar" sobre o casamento, expressa além do humor, fragmentos irônicos, os quais o professor não precisa explicitar aos alunos, deixando com que os mesmos sejam capazes de perceber e apontar, de modo que aula não seja individual, mas sim coletiva e de maneira que os alunos possam expressar seus pensamentos de acordo com suas realidades e suas vivências, suas simbologias e suas ideologias.
Claro que nossa proposta não é trabalhar o conceito de interdiscurso (propriamente disto) em sala de aula, mas queremos expor aqui a importância de saber considerá-lo como espaço propício para que cada aluno se constitua como sujeito argumentativo em sala de aula. A atividade com o texto não deve ser somente um meio para reconhecer a ironia, mas sim um caminho para a discussão da força argumentativa das palavras e do reflexo do casamento nos dias atuais, do posicionamento individual sobre o matrimonio e do porquê, estruturalmente, reconhecer que determinada construção denota-se irônica e em que situação se constitui como ironia.

Posição do Aluno e (Im)posição do Professor

Como já exposto anteriormente, é de constante discussão o espaço ocupado pelo livro didático em sala de aula. Em atividades de interpretação, por exemplo, muitas delas passam a ser reducionistas e exigem do aluno somente a cópia de fragmentos dos textos ou no máximo identificar partes do texto como sendo a resposta, mas não a interpretação, configurando por parte dos alunos uma leitura parafrástica, decodificação das palavras como se estivessem em estado de dicionário.
Não se pode afirmar que os professores não abrem espaço para as análises dos alunos, porém, não sabemos se pelo fato do curto tempo de aula ou pelo extenso conteúdo, as aulas de língua portuguesa nem sempre exigem dos alunos autonomia para análise de textos.
Vejamos a seguir um exemplo de atividade de análise e interpretação baseada em um quadro de 1935 do pintor Salvador Dali.

http://cache2.allpostersimages.com/p/LRG/6/667/RUYC000Z/posters/dali-salvador-face-of-mae-west-c-1935.jpg

Primeiramente, é feita uma contextualização da obra presente no livro didático , ou seja, o pintor é espanhol, o contexto histórico é dos anos de 1935 e se trata de uma pintura surrealista baseada na foto da atriz norte americana Mae West, cujo rosto é usado por Dali para pintar o quadro que nomeia "O apartamento de Mãe West". Porém, o tema da aula se refere ao trabalho com textos literários e não literários e, de certa forma, a questão do quadro abrir a unidade ficou um pouco perdida na contextualização da aula, mostrando-se somente como um adereço ao livro já que não houve toda essa informação sobre o quadro, a não ser o nome do pintor.
Com relação à interpretação do quadro, a professora começa com uma descrição do mesmo como sendo um apartamento construído a partir do rosto de uma mulher e sendo cada móvel uma parte do corpo da mesma. Ao descrever o quadro e perguntar aos alunos por suas interpretações, nem sempre a visão dos alunos era levada em conta, deixando muito clara a (im)posição do professor.
Com foco nesta atividade, resolvemos discutir a posição dos sujeitos envolvidos na análise do quadro, ou seja, professor e aluno, porém, não deixando de lado a presença do livro didático. Com isso, ao questionar os alunos sobre o quadro, sobre o seu significado e a que se referia, ficou clara a posição do professor ao declarar a cena como uma sala de um apartamento formada a partir do rosto de uma mulher. O que nos perguntamos é: e a interpretação do aluno? Qual a posição do aluno na análise interpretativa, ele ocupa a posição de receptor, simplesmente?
Embora o livro didático traga o nome do quadro, explicitando que se trata de um apartamento, cabe ao professor dar espaço aos alunos para que os mesmos ponham em curso suas memórias discursivas, seus sentidos sobre o quadro já que não podemos admitir que a única posição considerada seja a do professor, dado isso, estaríamos diante de uma Imposição.
Durante as considerações sobre o quadro, surgiram hipóteses de o quadro se tratar de um cenário de teatro, já que estão presentes cortinas, escadarias e mesmo pelo piso. É devido a esse fato que devemos dar espaço ao sujeito-aluno, o qual pode e deve fazer asserções sobre o texto ou imagem que analisa, é obvio que não devemos dar margem somente ao que colocam os alunos, pois nem tudo pode ter uma visão totalmente dispersa, já que há um lugar comum, muitas vezes como a resposta mais acertada. Porém, é a partir da abertura que se dá ao aluno para que o mesmo tenha autonomia para interpretar, que o aproximamos do trabalho discursivo que deve ser relevado em sala de aula.
Ao comparar o quadro a um cenário de teatro, o aluno mobiliza todos os discursos, ele se remete a sua memória e traz a exterioridade constitutiva da linguagem, ora, a simbologia do apartamento tal qual se mostra na leitura da professora pode não ser mobilizada na memória discursiva do aluno, o qual pode nunca ter relacionado tal figura a um apartamento, sua casa pode não ter cortinas, a figura de sala não remete a um sofá, portanto a imagem do que fará com que para ele a referência do quadro a uma interpretação de uma imóvel como este não seja verossímil.
Segundo a teoria da análise do discurso de linha francesa, é a inscrição do jogo da língua na história que propicia a possibilidade do sentido . Portanto, nos interessa aqui é mostrar que as leituras e interpretações não podem e não se mostram em um único sentido, em um único caminho permitido, excluindo assim outras possibilidades interpretativas, já que os sujeitos estão inseridos na história e são atravessados por diferentes discursos que possibilitam diferentes caminhos para a leitura.

CONCLUSÃO:

Para concluir nosso artigo, lançamos mão de uma metáfora usada na educação a qual diz que o desafio do ensino é "levar o aluno do ambiente protegido do aquário para os perigos do mar aberto" , ou seja, o trabalho dentro da sala de aula deve ter reflexos fora da mesma de modo que um aluno possa levar para o mundo o que aprendeu na escola e, na mesma proporção, o aluno deve conhecer o mundo real para que seu aprendizado faça sentido.
O ambiente protegido do aquário significa para nós a relação do professor e do livro didático enquanto que o mar aberto nos implica a relação do aluno com o mundo e com suas ideologias a partir das quais ele irá constituir-se como sujeito.
Nesse sentido, o que procuramos discutir foi a importância de considerar o conhecimento prévio do aluno e a partir disso incentivar sua autonomia e encorajá-lo a se impor no mundo como sujeito que possui seus discursos, que faz inferências a partir de suas escolhas e dos já ditos que têm internalizados. Com isso, para que se efetive o processo de ensino não se pode pensar em professor, aluno e livro didático como constituintes de diferentes núcleos, mas como protagonistas do mesmo cenário educacional.











BIBLIOGRAFIA:



GRIGOLETTO, MARISA. A concepção de texto e de leitura do aluno de 1° e 2° graus e o desenvolvimento da consciência crítica. In. M.J.R.J. Coracini (org.) O Jogo Discursivo na Aula de Leitura. Língua Materna e Língua Estrangeira. (pp. 85-91). São Paulo: Pontes, 1995.

ORLANDI, ENI. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 5ª edição, 2005.

ORLANDI, ENI. M. Bakhtin em M. Pêcheux: No risco do conteudismo. In: Beth Brait (Org) Bakhtin dialogismo e construção do sentido. (pp. 37-46). Campinas, SP. Editora UNICAMP, 2ª. Edição, 2005.


PACÍFICO, S.M.R.; ROMÃO, L.M.S. Arquivo e interdiscurso: o movimento de sustentação e ruptura no gesto de interpretação. In: GASPAR, N.R.; ROMÃO, L.M.S. Discurso e Texto: multiplicidade de sentidos na Ciência da Informação. São Carlos-SP: EDUFSCAR, 161-171, 2008.