Assembleia de Deus no Brasil: Gênese e Realidade Teológica

Roberto dos Reis, M.Th

 

 

         Introdução

 

            O presente artigo é especial, pois foi escrito como parte das comemorações do primeiro centenário desta que é, segundo a voz uníssona dos cientistas da religião, a maior representante do Pentecostalismo Clássico do Brasil e uma das maiores denominações do mundo: a Assembleia de Deus. Assim sendo, neste artigo apresentamos, num primeiro momento, o panorama histórico da Assembleia de Deus no Brasil, começando um pouco antes, com a chegada das primeiras igrejas protestantes e a formação do cenário sócio-religioso onde, no início do século XX, inserir-se-ia o Pentecostalismo Moderno, destacando, obviamente, a contribuição específica da Assembleia de Deus no processo de resgate de gente desvalida, pobre e semianalfabeta na construção de uma nova forma de participação, sentido e envolvimento no “Reino de Deus”. Num segundo momento, partindo desse envolvimento e da prática de ensino posteriormente adotada pela denominação, mesmo que inicialmente divorciada de toda e qualquer pretensão acadêmica, apresentamos a publicação dos primeiros jornais (Boa Semente, Som Alegre e Mensageiro da Paz), a criação das chamadas Escolas Bíblicas e a fundação dos primeiros Seminários Teológicos da Assembleia de Deus como a inserção paulatina dessa importante denominação pentecostal na gestação de uma nova fase do pentecostalismo moderno brasileiro: o ensino teológico formal que, passando pela informalidade e não-formalidade do ensino, abre o horizonte denominacional para as incursões em outras áreas do conhecimento acadêmico-científico.  

Panorama Histórico do Contexto Religioso Brasileiro

Em 1810, o Brasil, então colônia portuguesa, abria seus portos para as nações amigas. Os tratados de Aliança e Amizade e de Comércio e Navegação, firmados com a Inglaterra, inauguravam uma nova era no cenário religioso brasileiro, até então majoritariamente católico romano. As primeiras tentativas de implantação de igrejas protestantes em solo pátrio – a primeira em 1555, no Rio de Janeiro e a segunda em 1630, em Pernambuco – não surtiram efeito. De 1645, quando foram expulsos os protestantes holandeses de Pernambuco, a 1810, quando os tratados Brasil–Inglaterra foram assinados, passaram-se exatos 165 anos. Neste espaço de tempo o Brasil permaneceu sob os auspícios da Santa Sé.

 A partir de 1810, com a chegada dos primeiros protestantes ingleses, propiciada pela abertura dos portos, a muralha construída pelo Catolicismo em torno do sistema religioso brasileiro começou a trincar. Em 1819, na cidade do Rio de Janeiro, o reverendo Lord Strangford inaugura a igreja Anglicana; em 1836, Justin Spaulding organiza a Igreja Metodista; em 1845, a Igreja Luterana; em 1855, a Igreja Congregacional, através do trabalho missionário do médico escocês Robert R. Kalley; em 1859 a Igreja Presbiteriana, com Ashbel G. Simonton; em 1881, a Igreja Batista, com William B. Bagby e Z. C. Taylor; em 1890, a Igreja Episcopal, através do trabalho dos missionários Lucien Kinsolving e Waltson Morris. O Brasil, finalmente, torna-se campo evangelístico de bravos missionários protestantes que, a partir da região Sudeste, começaram a disseminar a mensagem do Evangelho e a implantar igrejas no Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

 

Assembleia de Deus no Brasil: Gênese e Peculiaridades

Chegando ao Brasil em 19 de Novembro de 1910, a bordo do navio Clemente, Daniel Berg (1884-1963) e Gunnar Vingren (1879-1933) desembarcaram no porto de Belém/PA, trazendo na bagagem poucas roupas, no bolso as sobras da passagem Nova Iorque – Belém e no coração o fervor da mensagem pentecostal que receberam numa Conferência Missionária na cidade de Chicago, EUA. Desconhecendo completamente a região (clima, cultura etc.), sem apoio financeiro de nenhuma igreja, sem o auxílio de nenhum conhecido e, para agravar a situação, sem o mínimo conhecimento da língua, os jovens missionários contavam somente com a orientação e a providência divinas (CONDE, 1960).

“Conduzidos por Jesus”, segundo o testemunho do próprio Daniel Berg, a um modesto hotel nas imediações da praça central de Belém, Berg e Vingren encontraram, num pequeno jornal disposto sobre uma mesa, o endereço de Justus Nelson, pastor da Igreja Metodista em Belém. Em virtude de sua origem batista, Justus Nelson os encaminhou a uma congregação da Igreja Batista, na Rua Balby, nº 406, na época coordenada por José Plácido da Costa (1870-1965). Acolhidos ali, passaram a cooperar nos trabalhos, mas sem fazerem silêncio em relação à mensagem pentecostal, fato gerador de indisposição por parte de alguns membros daquela comunidade, fundamentalmente o seminarista Raimundo Nobre que, convocando uma reunião extraordinária, decidiu expulsar os missionários suecos e “excluir” os membros concordantes com a nova doutrina. 

Duas coisas importantes devem ser ditas aqui. Em primeiro lugar, Daniel Berg e Gunnar Vingren já não pertenciam à Igreja Batista quando chegaram ao Brasil, uma vez que se desligaram formalmente da Sweish Baptist Church,[1] de Menominee, Michigan, EUA. Portanto, a afirmação que comumente se ouve de que a Assembleia de Deus originou-se da Igreja Batista não corresponde com a verdade dos fatos. Em segundo lugar, não se pode falar em “exclusão” dos missionários suecos por duas razões mais que óbvias: (1) Não pertenciam à Igreja Batista e, portanto, não estavam sujeitos a nenhuma determinação desta, e (2) Raimundo Nobre, gestor da assembleia extraordinária que culminou com a saída de Berg e Vingren e mais 17 crentes da congregação, em 13 de junho de 1911, não tinha legitimidade eclesiástica para tal, afinal de contas, não era pastor. De qualquer forma, os missionários suecos passaram a congregar os irmãos na residência do casal Henrique e Celina de Albuquerque, iniciando assim, em 18 de Junho de 1911, a Missão de Fé Apostólica (CONDE, 1960).

Recebendo o nome de Assembleia de Deus em 11 de Janeiro de 1918, por ocasião de seu registro cartorário, a novel denominação teve como principal veio de expansão o processo migratório que, a partir do declínio do ciclo da borracha – a partir de 1918 –, quando centenas de migrantes de outras regiões do Brasil, principalmente do Nordeste, que buscavam nos seringais do Norte oportunidades de trabalho, deixavam Belém em direção a suas cidades de origem. É neste retorno que muitos migrantes, agora convertidos ao Evangelho, levavam consigo a experiência pentecostal e o desejo incontido de fazer a obra de Deus. É assim que a Assembleia de Deus vai pontilhando o território nacional, levando a mensagem de Cristo aos lugares mais recônditos do Brasil, implantando igrejas nas regiões dominadas pela idolatria e o misticismo (REIS, 2010), e quando não, esquecidas pelo Protestantismo Histórico. Esta é, segundo seus expoentes, a marca do pioneirismo assembleiano, a coragem e o vigor do Espírito Santo que, derramado em Pentecostes (At.2.1), inflama a igreja, transformando homens simples e iletrados em porta-vozes audazes da mensagem pentecostal. Vendo por esse ângulo, é fácil entendermos porque, a despeito do Protestantismo Histórico, que se expandia seguindo as trilhas do café na região sul do país (MENDONÇA, 1995), e, portanto, acompanhando o bem-estar proporcionado pelo desenvolvimento econômico-social, o Protestantismo Pentecostal seguia no coração de pessoas simples, excluídas, desvalidas e, por tudo isso, marginalizadas e empurradas para a margem desse mesmo desenvolvimento econômico-social.

O centro urbano de Belém era dominado pelo Catolicismo. Era lá que as autoridades civis e eclesiásticas moravam. As pessoas de prestígio, com grande poder econômico, vasta cultura e influentes politicamente faziam do centro do Estado seu principal raio de ação. Segundo Cartaxo Rolim (1985, p.29), “[...] só restavam, pois, aos evangélicos, áreas distantes, a periferia urbana, ancoradouro de imigrantes rurais, povoada de gente simples, pobre a analfabeta [...]”. A Assembleia de Deus, portanto, começou a crescer na orla urbana onde moravam pessoas menos aquinhoadas, e por isso, sem influência ou prestígio. Certamente os primeiros conversos, conhecedores da situação religiosa de Belém, indicaram o local ideal para o primeiro templo assembleiano, onde não existiam templos católicos e muito menos se rezavam missas (ROLIM, 1985).

A nova experiência religiosa trazida pelos suecos no início do século passado encontrou no norte do país terreno fértil para lançar suas raízes. Por que terreno fértil? Essa questão Margarida Oliva (1997) trabalha em sua dissertação de mestrado ao questionar a natureza do Catolicismo como resposta à proliferação de seitas em solo brasileiro. Segundo ela, o Catolicismo é um componente fundamental na formação da cultura brasileira, afinal de contas, o Brasil foi colonizado sob o auspício da Igreja Católica, de sorte que não se pode falar em cultura brasileira sem falar em catolicismo romano. Argumenta ainda, e para isso cita um texto de José Comblin (1968), que o catolicismo pregado pela teologia e pelo direito canônico nunca existiu. O que de fato existe são vários níveis sociais e culturais. Comblin (1968, p.118) reconhece três fontes constituintes dos vários tipos de Catolicismo Brasileiro: Fonte europeia, africana e ameríndia:

O povo brasileiro do campo e das aldeias do interior vive num mundo mítico, povoado de lendas e crenças fatalistas; o povo dos subúrbios e das favelas vive num mundo mágico. Conserva muitos mitos e lendas folclóricas, misturadas com crendices e com superstições; a classe média e mesmo alta vive num mundo religioso, emotivo e sentimental, em que a fé esclarecida ocupa lugar e está frequentemente mesclada de superstições e crendices; um cristianismo consciente, esclarecido e crítico é vivido por uma ínfima minoria.

            É nesse terreno cultural e religioso que, a partir do início do século XX, os primeiros passos da Assembleia de Deus são dados e suas práticas litúrgicas e teológicas vão tomando forma. O Pentecostalismo Clássico, fruto do que Paul Freston (1993) chamou de uma primeira onda de expansão do pentecostalismo, trazia para o Brasil novos aspectos religiosos que se misturaram à religiosidade do povo pobre, analfabeto e supersticioso: orações coletivas, onde as vozes se misturavam ecoando disformemente; cânticos, ainda que desafinados, o que importa é cantar, Deus não se incomoda com a desafinação, o que interessa é a sinceridade do coração; leitura da Bíblia, ainda que soletrando as frases; oportunidade de ocupar o púlpito e falar como o pastor, coisa impossível nas igrejas protestantes tradicionais e católicas romanas; acolhimento fraternal aos visitantes. Esses eram os elementos atrativos que permeavam os espaços improvisados para a realização de cultos, que em sua totalidade eram as casas dos próprios crentes. “Compreendo a vossa preocupação; tenho uma grande sala em casa, está à vossa disposição para realizar os cultos [...]” (BERG, p.42), disse um dos diáconos da Igreja Batista, que fez parte do grupo que fora expulso por dar ouvidos às pregações de Berg e Vingren.

Os novos convertidos não esperavam a chegada de um oficial. O culto é estabelecido em sua própria residência, onde quer que ela esteja estabelecida: nas cidades, vilas ou mesmo nas áreas rurais. O crente mais destacado é o pastor improvisado. Depois que o templo é construído ele é oficialmente ordenado, passando a ser legalmente o responsável por aquele rebanho. O crescimento é acelerado. A nucleação,[2]segundo Rolim, foi o processo que a denominação usou para seu rápido crescimento e expansão. O dinamismo da Assembleia de Deus está na iniciativa de cada novo crente. Não existia um projeto pré-estabelecido. O crescimento partia da base, informalmente. Segundo a arguta observação de Rolim (1985, p.47),

[...] na reunião informal começava a germinar o conhecimento mútuo, o sentimento de grupo, o desejo de ir adiante. A ajuda que traziam ia servir para alugar um salão ou alguma garagem largada num lugar qualquer. Quem decidia era o grupo – seus componentes.

           

            A Assembleia de Deus cresceu, e cresceu muito. É na esteira desse crescimento fenomenal que a presença marcante do dinamismo pentecostal, o empenho altruísta de gente simples e leiga que cedia sua residência e ofertava seus parcos recursos para a expansão do “Reino de Deus” na terra (REIS, 2010), mostra sua maior pujança. Não havia preocupação com o ensino formal, principalmente nos anos incipientes da denominação. A instrução doutrinária, fundamentalmente a ênfase na experiência do batismo no Espírito Santo e a atualidade dos Dons, encontrava fulcro nos textos bíblicos diretos, sem a preocupação com os rigores da exegese acadêmica. Mas o ensino, a despeito do formalismo ou estrutura acadêmica, estava lá, latente, incipiente.

Ensino Teológico na Assembleia de Deus: Fases

           

            O processo educativo gerido pela Assembleia de Deus no Brasil, segundo Rubeneide Fernandes (2006), se desenvolve a partir de três formas distintas: Em primeiro lugar, a Educação Informal, aquela em que o indivíduo “[...] adquire e acumula o conhecimento por meio das experiências dentro da própria comunidade, com o mundo, nas práticas religiosas e cotidianas” (2006, p.96). Em segundo lugar, a Educação Não-Formal, ou seja, aquela que, embora organizada e sistematizada, se efetiva fora do sistema formal de ensino. Em terceiro lugar, a Educação Formal, aquela que se desenvolve a partir de um sistema escolar devidamente “[...] institucionalizado, cronologicamente gradual e hierarquicamente estruturado” (loc. cit.). Partindo dessa observação, mas sem a amplitude do termo “educação”, podemos dispor a publicação dos Periódicos, a criação das Escolas Bíblicas e, finalmente, a fundação de Seminários, Institutos Bíblicos, Faculdades e Universidades como fases nesse processo educativo da Assembleia de Deus no Brasil.

 

            Ensino Informal: Os Periódicos

         PRIMEIRA FASE

 

Nos primeiros anos de sua existência no Brasil a Assembleia de Deus não teve como prioridade básica o ensino teológico formal, concentrou todos os seus recursos na evangelização e propagação da nova doutrina, afinal de contas, no processo gestativo o importante é a sobrevivência, a certeza plena de existência num novo contexto, os demais atos, fundamentalmente aqueles que dizem respeito à permanência, são oriundos do processo paulatino de crescimento. No prefácio de História das Assembleias de Deus no Brasil, publicado pela primeira vez em 1960, Emílio Conde (1901-1971) assim relata o interesse inicial dos pioneiros da denominação (1960, p.8,9):

Os dias primitivos foram tempos de expansão e de incessantes atividades, sem se pensar em sacrifícios, cansaços ou dificuldades. O entusiasmo dos pioneiros contagiava, animava e impelia a avançar em nome do Senhor. A única preocupação era evangelizar, mais importante do que roupas, dinheiro e alimentos, era testificar do poder salvador de Cristo, e bem assim o privilégio de poder ser cheio do Espírito Santo. A conquista das almas para Deus absorvia todos os momentos e determinava todas as ações.[3]

            Ainda que não possuísse uma teologia propriamente normatizada e nem estivesse no topo dos interesses a formalização do ensino teológico, isso não significa que a Assembleia de Deus brasileira haja desprezado o estudo e o ensino das doutrinas cristãs. Segundo Gary B. McGee, desde o primeiro documento produzido no país, em outubro de 1917 – o jornal Boa Semente – a imprensa pentecostal mostra, através do artigo intitulado Jesus é quem batiza no Espírito Santo, que seu principal intento não é propriamente a notícia, e sim, a divulgação doutrinária; semelhantemente, o Boa Semente, jornal publicado em Belém, entre janeiro de 1919 e dezembro de 1929, foi o veículo do ensino doutrinário da Assembleia de Deus. No jornal O Som Alegre, impresso no Rio de Janeiro, e que circulou até outubro de 1930, McGee nota, logo no primeiro número, a preocupação de Gunnar Vingren em enfatizar as doutrinas pentecostais:

Em O Som Alegre anunciaremos as promessas gloriosas incluídas no Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, ou seja, a salvação completa e perfeita de todos os pecadores e tudo o que pertence à nova vida do cristão: o batismo no Espírito Santo, os dons espirituais, e a próxima e gloriosa vinda do Senhor.[4]

Na primeira Convenção Geral, realizada em 1930, na capital potiguá (Fortaleza), os dois periódicos – Boa Semente e O Som Alegre – foram suspensos para dar lugar a uma nova publicação: O Mensageiro da Paz. Sob a coordenação de Gunnar Vingren e Samuel Nyström (1891-1960), o Mensageiro da Paz logo se tornou o principal órgão de divulgação e ensino da denominação. Com uma ampla gama de estudos bíblicos, devocionais e notas homiléticas, o jornal se tornou não apenas um agente de evangelização, mas um professor silencioso e domiciliar que chegava onde nenhum seminário poderia ser instalado (McGEE, apud HORTON, 1997).

O Mensageiro da Paz ressalta dois centros básicos de interesse: a) A coesão interna e a burocratização da denominação – e isso se faz a partir dos noticiários sobre as principais atividades da igreja – e, b) A reafirmação dos princípios doutrinários em formação, seja através da transcrição dos vários testemunhos sobre curas divinas, conversões ou mesmo os batismos (nas águas e no Espírito Santo). Seja como for, o ensino teológico, via Mensageiro da Paz e demais periódicos anteriores, era informal. Portanto, ao que nos parece, é infundada a assertiva de alguns pesquisadores do pentecostalismo quando ventilam a inexistência do ensino teológico na Assembleia de Deus nas primeiras décadas. A questão, a rigor, deve girar em torno da formalidade ou informalidade, e não na esfera da existência ou inexistência. De qualquer forma, são nas páginas desses periódicos que os novos membros buscam informações sobre a nova doutrina e alicerçam a fé através dos incontáveis testemunhos ali impressos; são nelas que, informalmente, os novos obreiros adquirem e aprimoram seus conhecimentos bíblico-doutrinários, dispondo-se para o serviço litúrgico e implantação de igrejas quando e onde se fizesse necessário.

Ensino Não-Formal: As Escolas Bíblicas

SEGUNDA FASE

 

As Escolas Bíblicas, que nada mais eram do que verdadeiros Seminários não-Regulares, constituíram-se parte inerente à organização da Assembleia de Deus, aliadas indispensáveis no ensino teológico incipiente. Criadas em 1920[5] (SOUZA, 1969), em Belém, as Escolas Bíblicas, seguindo o modelo de Lewis Pethrus, duravam em média de quinze a trinta dias, e seguiam, de forma organizada e sistemática, mas fora dos quadros de um ensino formal propriamente dito, um currículo mínimo estabelecido, tendo como principais sistematizadores, num primeiro momento, Samuel Nyström, J. P. Kolenda (1898-1984), Euríco Bergstén (1913-1999), Lawrence Olson (1910-1993), João de Oliveira (1911-1980), José Menezes (1896-1972) e, num segundo momento, Alcebíades Pereira de Vasconcelos (1914-1988) e Estevam Ângelo de Souza (1922-1996). Sua criação foi relevante no progresso educacional, sendo a primeira tentativa de formalização do ensino teológico propriamente dito. Beatriz Muniz de Souza (1969, p.117), em A Experiência da Salvação: Pentecostais em São Paulo, observa que “[...] a Escola Bíblica [...] teve por objetivo, do ponto de vista didático e teológico, formar obreiros que colaborassem com os missionários na propagação do Pentecostalismo”.[6]

Neste momento inicial do ensino, dois nomes se destacam: Orlando Spencer Boyer (1893-1978) e Emílio Conde. Responsáveis pela confecção das lições bíblicas e de livros que irão esboçar as doutrinas da denominação, O. S. Boyer e Emílio Conde ocupam uma posição de fundamental importância no estabelecimento definitivo do ensino teológico na Assembleia de Deus.

Ensino Formal: Os Seminários e Institutos Bíblicos

TERCEIRA FASE

A discussão acerca do ensino teológico formal havia sido colocada em pauta pela primeira vez em 1943, por ocasião da IV Semana Bíblica, realizada em Brasília/DF. Na ocasião, Lawrence Olsen propôs a criação de institutos bíblicos e seminários que, gestados pela denominação, preparariam obreiros para a causa pentecostal. Tendo como principal oponente Paulo Leivas Macalão que, repudiando a ideia, asseverou ser “[...] perigoso investir muito na educação teológica do obreiro” (DANIEL, 2004, p.194), a pauta foi encerrada com a permanência do ensino teológico não-formal.[7] Três anos depois, desta vez em Recife/PE, J. P. Kolenda retoma a discussão acerca da fundação de institutos bíblicos pela Assembleia de Deus no Brasil. O assunto foi encerrado com a contraproposta do missionário norte-americano, Virgil Frank Smith (1902-2000), que sugeriu que a Convenção Geral (CGADB[8]) autorizasse o próprio J. P. Kolenda para que, percorrendo as Assembleias de Deus nos EUA, levantasse ofertas para a aquisição de um terreno ou prédio para a instalação de um instituto bíblico (DANIEL, 2004). O fato é que, segundo observa Fernandes (2006), a despeito de haver concordância acerca da criação de institutos bíblicos pela denominação, havia a relutância em seguir os moldes adotados pelas igrejas tradicionais, ou seja, instituições que formassem pastores.[9]

Em 1948, por ocasião na Convenção Geral reunida na capital do Rio Grande do Norte, a fundação de institutos bíblicos é novamente levantada, desta vez pelo missionário norueguês Gottfred Leonard Pettersén (1907-?) que, contrário à criação de institutos de ensino teológico pela Assembleia de Deus, associou sua criação à quebra dos princípios bíblicos referentes a preparação de obreiros. Os debates sobre o ensino teológico formal foram intensos. E, mais uma vez, sem uma definição institucional.

O ensino teológico formal só foi estabelecido definitivamente em 15 de outubro de 1958, quando o casal de missionários, João Kolenda Lemos (1922–) e Ruth Dorris Lemos (1925-2009) fundaram, na cidade de Pindamonhangaba, interior de São Paulo/SP, o Instituto Bíblico das Assembleias de Deus (IBAD), onde foram formados importantes expositores do pensamento teológico da denominação no país. A instituição, inicialmente, encontrou muita resistência por parte da liderança da própria denominação, pois temiam que os estudantes dessem prioridade ao academicismo teológico em detrimento da ação do Espírito Santo. É a réplica da resistência sueca em vincular o pastorado com a formação teológica (FRESTON, 1993), eis o eixo gerador dos receios e das discussões. Quatro anos depois da fundação do IBAD, o missionário Lawrence Olson estabelece, no Rio de Janeiro/RJ, o Instituto Bíblico Pentecostal (IBP), instituição que, à semelhança do IBAD, dedicou-se à formação de obreiros nacionais.

A rigor, a criação do IBAD e do IBP, à margem e a contragosto da liderança nacional da Assembleia de Deus, deslocou as intermináveis discursões que, desde 1943, giravam em torno da criação ou não de institutos bíblicos, para o apoio ou não a estes. É na convenção de 1966, realizada na cidade de Santo André/SP, que a pauta “Deve a Convenção Geral apoiar ou não os institutos bíblicos?” foi levantada. Na ocasião, diante do plenário lotado, João Kolenda Lemos dissertou sobre o significado, valor e atividades dos institutos bíblicos, defendendo a criação e a manutenção dos mesmos pela denominação (DANIEL, 2004). E, mais uma vez, a assembleia convencional foi encerrada sem uma definição oficial.

É somente em1977, na Convenção Geral reunida em Recife/PE, que a liderança assembleiana nacional assinalou positivamente sobre a educação teológica formal quando, através da Resolução nº04/77, ampliava a competência da Comissão de Educação e Cultura Religiosa da CGADB para que, entre outras atribuições, reconhecesse os cursos teológicos implantados por igrejas da Assembleia de Deu em território nacional. A partir de então, começando pelo IBAD e IBP, os institutos bíblicos posteriormente criados foram oficialmente reconhecidos e outros, à semelhança destes, foram sendo implantados pelo Brasil afora,[10] ratificando de forma indelével, o que Alan Ricardo de Sousa Araújo (2011), num oportuno texto encomendado pelo departamento de pós-graduação da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), chamou de “voos mais altos” da Assembleia de Deus no Brasil, referindo-se à guinada da denominação no que se refere ao investimento na educação teológica mais sofisticada, ou seja, o incentivo à titulação do corpo docente de seus educandários, a publicação de trabalhos científicos em revistas especializadas, bem como a criação de faculdades e universidades que, alçando outros níveis, não se restringem à esfera teológica, como por exemplo, a Faculdade Boas Novas de Ciências Teológicas, Sociais e Biotecnológicas, em Manaus/AM, a Faculdade Evangélica de Ciências, Tecnologia e Biotecnologia da CGADB (FAECAD), no Rio de Janeiro/RJ e a Universidade das Assembleias de Deus no Brasil, também no Rio de Janeiro/RJ, e que, entre outros, oferece os cursos de Administração, Pedagogia e Ciências Jurídicas.

Conclusão

A Assembleia de Deus não é mais a mesma. De um simples ajuntamento de crentes na orla periférica de Belém, em 1911, torna-se a maior denominação pentecostal do Brasil e uma das maiores denominações do mundo. Se no início era vista como movimento carismático a espera do fracasso embrionário e do desencanto de seus membros, hoje, cem anos depois, ostenta uma estabilidade institucional capaz de lhe proporcionar o desenvolvimento e, fundamentalmente, garantir sua permanência e expansão neste instável, confuso e difuso campo religioso brasileiro.

O ensino teológico, seja em nível de graduação ou pós-graduação, já é uma realidade na Assembleia de Deus no Brasil. A preocupação com a preparação de líderes conscientes de sua realidade histórica, política e cultural, e a instrução dos membros, no sentido de torná-los elementos gestores de transformação, acima de tudo sócio-cultural, tem conduzido a Assembleia de Deus na construção de uma identidade acadêmica e comunitária sólidas. O anti-intelectualismo que, conforme indica Rick Nañez (2007), faz parte da história do movimento pentecostal moderno, tem cedido lugar à consciência acadêmico-científica, culminando na fundação de seminários, institutos bíblicos, faculdades, universidades e na produção literária por parte de seus expoentes, sejam eles líderes ou não, inserindo definitivamente a Assembleia de Deus no Brasil entre as denominações produtoras do conhecimento.

A rigor, é na esteira dessas mudanças que a Assembleia de Deus no Brasil vai assumindo novas posturas e adquirindo novas características, e mesmo que, a despeito de seu gigantismo e em comparação com as igrejas históricas, essas mudanças não tenham ainda causado um impacto visível (ARAÚJO, 2010), isso é uma questão de tempo como, aliás, tudo no campo religioso, seja brasileiro ou não.

 

 

 

Bibliografia

 

  1. ALMEIDA, Abraão de. História das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2ª ed., 1982.
  2. ARAUJO, Israel de. Dicionário do Movimento Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1ª ed., 2007.
  3. ARAÚJO, Alan Ricardo de Sousa. Educação Teológica Pentecostal no Brasil: Origens, Avanços, Dificuldades e Perspectivas. São Bernardo do Campo (Obra não Publicada).
  4. BERG, Daniel. Enviado por Deus: Memórias de Daniel Berg. São Paulo: Publicação Particular, 1ª ed., s/d.
  5. COMBLIN, José. Para uma Teologia do Catolicismo no Brasil, in: REB, vol. XXVIII, fascículo I (Março/68).
  6. CONDE, Emílio. História das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 1ª ed., 1960.
  7. DANIEL, Silas (organizador). História da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 1ª ed., 2004.
  8. FERNANDES, Rubeneide Lima Fernandes. “Movimento Pentecostal, Assembleia de Deus e o Estabelecimento da Educação Formal”. Dissertação de Mestrado. Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). 2006.
  9. FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: Da Constituinte ao Impeachment. Universidade Estadual de Campinas, 1993 (Trabalho de Doutorado).
  10. HORTON, Stanley M. Teologia Sistemática: Uma Perspectiva Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2ª ed., 1997.
  11. OLIVA, Margarida. O Diabo no “Reino de Deus”: Por que Proliferam as Seitas? São Paulo: Editora Musa, 1ª ed., 1997.
  12. MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O Celeste Porvir: A Inserção do Protestantismo no Brasil. São Paulo: Editora Pendão Real/ASTE/Ciências da Religião, 1ª ed., 1995.
  13. MENDONÇA, Antônio Gouvêa / VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola / São Bernardo do Campo: Ciências da Religião (UMESP), 1ª ed., 1990.
  14. NAÑEZ, Rick. Pentecostal de Coração e Mente: Um Chamado ao Dom Divino do Intelecto. São Paulo: Editora Vida, 1ª ed., 2007.
  15. ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil: Uma Interpretação Sócio-Religiosa. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1ª ed., 1985.
  16. REIS, Roberto dos. Celebração no Centro da Comunidade: Pressupostos e Características de Teologia Eucarística da Assembleia de Deus no Brasil. Taubaté: Edificar Editora, 1ª ed., 2010.

 



[1]Igreja Batista Sueca.

[2]Na definição de Cartaxo Rolim, “nucleação” é a germinação de pequenos grupos, composta por poucas pessoas, entre 3 e 9.

[3] Grifo Nosso.

[4]Na Casa Publicadora não existe nenhum exemplar deste jornal. O texto é extraído do livro Teologia Sistemática: Uma Perspectiva Pentecostal, de Stanley Horton, publicado pela CPAD, 2ª Ed., 1997, p.37. 

[5]Embora tenha sido criada em 1920, a oficialização propriamente dita, só veio duas décadas depois, na Convenção Geral (na época chamada de Semana Bíblica) de 1943, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Entre os assuntos discutidos naquela assembleia, de 16 a 23 de maio, estava a questão do ensino teológico formal.

[6]Grifo Nosso.

[7]A proposta levantada por Lawrence Olson, e endossada por J. P. Kolenda, foi substituída pela criação de cursos de teologia por correspondência. Sugerida por este, a ideia foi acatada pelos convencionais, tendo Samuel Nyströn como responsável pela criação e gerenciamento.

[8] CGADB – Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, sediada no Rio de Janeiro/RJ.

[9]Samuel Nyström, tomando a palavra numa das sessões da Convenção de 1946, afirmou que os institutos bíblicos deveriam ser “[...] um cadinho onde os futuros obreiros não seriam propriamente formados, mas, sim, iniciados, como uma pequena planta que sempre se desenvolve” (DANIEL, 2004, p.228).

[10]Entre os institutos bíblicos reconhecidos pela CGADB, citamos, além do IBAD e IBP, Instituto Bíblico das Assembleias de Deus no Estado do Paraná (IBADEP), Instituto Bíblico da Assembleia de Deus no Amazonas (IBADAM), Instituto Bíblico da Assembleia de Deus de Imperatriz/MA (IBADI), Instituto Bíblico da Assembleia de Deus do Espírito Santo/ES (IBADES), Instituto de Ensino Teológico de Campo Grande/RJ(IETC), Instituto Bíblico da Assembleia de Deus do Estado do Rio de Janeiro (IBADERJ), Instituto Bíblico Pentecostal do Maranhão (IBPM), Instituto Bíblico Amazônico das Assembleias de Deus (IBAAD), Instituto Bíblico Estrela de Davi (IBED), Instituto Bíblico da Assembleia de Deus em Joinville/SC (IBADEJ), Instituto Bíblico Missionário Canaã (IBMC), Seminário de Educação Teológica das Assembleias de Deus/SP (SETAD), Seminário de Educação Teológica da Assembleia de Deus de Cruzeiro/SP (SETADC), Escola de Educação Teológica das Assembleias de Deus/SP (EETAD).