As idéias pedagógicas e o concurso público

As idéias pedagógicas dominantes, em qualquer época, são as das camadas dominantes. Os melhores alunos, no geral, são provenientes delas. São herdeiros naturais da cultura erudita. Em toda história da humanidade, sempre foi assim. Herdaram também o tempo para dispor do ócio benéfico à alma. Ocupam os melhores cargos no setor público, principalmente. Aliás, o Estado é privativo das camadas dominantes. Enquanto isso, às camadas subalternas, já dizia Aristóteles: "Escravos e animais domésticos atendem com o corpo às necessidades da vida". Ponto final. O sucesso escolar ou o fracasso dependem das condições educacionais oferecidas pelas camadas dominantes, em última instância. O pensamento pedagógico crítico desenvolveu várias teorias a respeito do fenômeno educativo. Destaque para a escola francesa com Althusser, com a teoria da escola enquanto aparelho ideológico do estado; Bourdieu e Passeron, teoria da escola enquanto violência simbólica e Baudelot e Establet, a teoria da escola dualista. Paulo Freire, Álvaro Vieira Pinto e os demais educadores populares compreenderam aqui e em outros cantos além mar, a cultura das camadas subalternas e as possibilidades da ascensão das mesmas numa perspectiva dialógica centrada na transformação da sociedade. Educação para libertação, completamente oposta àquela enaltecida nos bandolins dos vendedores de ilusão. Sentiram, sobretudo. É pertinente o convite: uma incursão daqueles que segregam os não letrados, que os consideram de segunda categoria, para uma visita à compreensão do fenômeno educativo. Momento que entenderão que as camadas subalternas, em quase totalidade, não têm acesso à cultura da camada dominante, não só por culpa dos maus governos. É um projeto de classe, de exclusão de outra. Evitaria uma visão incorreta que leva a teoria do povo brasileiro como preguiçoso, que tem medo de concurso porque não se preparou. Em artigo no jornal Meio Norte, 22/02/2003 uma procuradora afirmou: "Tem medo do concurso público quem não tem condições de vencer pelos próprios esforços, quem não dá valor aos estudos e à profissionalização, quem se acomoda com uma situação abaixo até a escravidão." Diferente da procuradora, de tantos outros que pensam a (in) capacidade dos servidores analfabetos, demais trabalhadores, o grande educador Vieira Pinto afirma: "O adulto analfabeto é em verdade um homem culto, no sentido objetivo (não idealista) do conceito de cultura, posto que, se fosse assim, não poderia sobreviver... não significa que se trate de indivíduos mal dotados, de preguiçosos, de rebeldes as estímulos coletivos, em suma, de atrasados." Diferente de como quer crer o artigo, acredito que não foi a intenção da procuradora, a não ser moralizar o serviço público, fundamentada na Constituição. Feita por um grupo de notáveis representantes, quase na totalidade de latifundiários, banqueiros, industriais. A constituição é sagrada, aceitar que ela foi elaborada para proteger as camadas subalternas, é outra história. As diversas problemáticas das camadas subalternas: analfabetismo, falta de moradia, escolas, saneamento, acesso aos bens culturais, são produtos de condições históricas. Toda a história das camadas subalternas foi de medo da (in) justiça e sofreram muito mais que Moisés na travessia do deserto. Os defensores da função messiânica da educação desconhecem: grande parte dos trabalhadores, "analfabetos", a vida toda, cotidianamente, faz concurso: não ser selecionado para morrer de fome. Sobreviver, sem resolver as "equações diferenciais", morando em condições sub-humana, sem escola de qualidade social para os filhos e muito mais. Apesar de não ler o nome do ônibus em Teresina (administrada por um médico) na parada simbolizada por um pedaço de pau, os iletrados aqui e os de lá do mundo, tem uma experiência riquíssima de vida.
Renato Uchôa
(Educador)