Embora alguns autores e estudiosos definam as Crônicas de Nárnia como uma alegoria da Bíblia, algumas considerações a respeito de seu autor, C.S. Lewis, invalidam essa conceituação. Em primeiro lugar, uma alegoria é uma figura de estilo que personifica uma ideia abstrata.

Etimologicamente, a alegoria consiste num discurso que faz entender outro, numa linguagem que oculta outra. Pondo de parte as divergências doutrinárias acerca do conceito preciso que o vocábulo encerra, podemos considerar alegoria toda concretização por meio de imagens, figuras e pessoas, de idéias, qualidades ou entidades abstratas. O aspecto material funcionaria como disfarce dissimulação ou revestimento do aspecto moral, ideal ou ficcional. (MOISÉS, 1978, p.15)

Esse termo era utilizado para interpretar os mitos de Homero, entendidos na Antiguidade como personificações de princípios morais ou forças sobrenaturais. Uma vez que Lewis considerava os episódios narrados na Bíblia como fatos históricos e, por conseguinte, Jesus Cristo como uma personagem histórica, ou seja, que realmente existiu e que, portanto, não é uma ideia abstrata, seus contos não podem ser reduzidos a uma alegoria da Bíblia, tampouco Aslam a uma alegoria de Cristo. Segundo Thomas Howard (1980), a série está mais próxima de uma analogia do que de uma alegoria: "[...] the connection between what we find in Narnia and anything in our own story is closer to analogy, where we say, not 'Aslan equals to Christ', but 'as Christ is to this story, so, in a measure, is Aslan to that one."[1] (p.25).

Por outro lado, há uma forte ligação entre a estrutura narrativa dos contos de Lewis e a estrutura das histórias narradas na Bíblia. Northrop Frye (2004) atesta que a Bíblia, enquanto uma série de histórias de heróis e conquistas, pode ser vista como uma série de Mythos[2] que se repete.

Isto nos fornece uma estrutura narrativa que é, grosso modo, em forma de U: à apostasia se segue uma queda em desastre e cativeiro; a isto se segue o arrependimento, e por uma ascenção [sic] e liberação até um ponto que está mais ou menos ao nível do começo. Este modelo em U, mesmo por aproximação, é recorrente em literatura como a forma comum da comédia. Nesta, uma série de infelicidades e de incompreensões leva a ação a um ponto baixo e ameaçador; a partir daí uma reversão afortunada no enredo despacha a conclusão para um final feliz. (p.206)

Em seu livro, Frye analisa a estrutura do livro dos juízes, que retrata ascensões e quedas dos heróis de Israel, e atribui à Bìblia o sentido de uma "Divina Comédia".

A Bíblia em seu conjunto, vista como uma "divina comédia", está contida numa estória em forma de U. Nela, o homem [...] perde a água e a árvore da vida no começo do Gênesis e os recupera no fim de Apocalipse. Entre uma coisa e outra se conta a estória de Israel com uma série de quedas em mãos de reinos pagãos: Egito, Filistéia, Babilônia, Síria, Roma. A cada uma destas quedas segue-se um breve momento de ascenção [sic] e de independência relativa. (2004, p.206)

Temos então, no que diz respeito à narrativa bíblica como um todo:

      

Argumenta-se aqui que As crônicas de Nárnia apresentem essa narrativa em U, como a que Frye atribui à Bíblia, no que diz respeito à série como um todo: A Gênese de Nárnia, com a entrada do mal na terra encantada, seguida de sucessivos ataques de inimigos e diversas batalhas entre as forças do bem e do mal, bem como momentos de paz em Nárnia, e a grande queda, narrada em A última batalha, voltando a um estado de plena "paz" após a grande batalha:

 

O conto O sobrinho do mago, por sua vez, pode apresentar essa estrutura em U, no sentido da Bíblia, uma vez que conta justamente essa gênese da terra de Nárnia, ou seja, a primeira grande ascensão. Ao final do conto, fala-se do apocalipse de Charn, o mundo a partir do qual o mal entrou em Nárnia no momento de sua criação. Pode-se dizer então que a narrativa, após um momento estável, é levada a um momento de euforia (quando as crianças viajam entre mundos e chegam ao Nada, que se tornará Nárnia), passa por alguns altos e baixos após a criação do reino encantado (com a questão da tentação e do coroamento dos seus primeiros reis) e retorna a um momento estável, quando o mundo de Charn vira o Nada, as crianças voltam ao seu mundo de origem e encontram o final feliz:


Como gênero, o conto O sobrinho do mago é definido, como já foi constatado anteriormente, como um Conto de Fadas. Bruno Bettelheim, em seu livro A psicanálise dos contos de fadas (1979), faz diversas considerações que podem ser aplicadas às Crônicas de Nárnia enquanto recurso didático e enquanto narrativa. O sobrinho do mago, resumidamente, conta a história de duas crianças que moram em Londres e, certo dia, encontram um mundo fantástico chamado Nárnia por intermédio da magia: há aí a presença da fantasia que é o elemento crucial dos Contos de Fadas. Após uma série de aventuras nesse mundo fantástico, elas retornam ao mundo 'real'. A esse respeito Bettelheim diz:

O conto de fadas, a partir de seu começo mundano e simples, arremessa-se em situações fantásticas. Mas por maiores que sejam os desvios [...] o processo da estória não se perde. Tendo levado a criança numa viagem a um mundo fabuloso, no final o conto devolve a criança à realidade, da forma mais reasseguradora [sic] possível. Isto lhe ensina o que mais necessita saber neste estágio de desenvolvimento: que não é prejudicial permitir que a fantasia nos domine um pouco, desde que não permaneçamos presos a ela permanentemente. (1979, p.79)

O fato de a narrativa ser iniciada em Londres e, portanto, com um momento estável e completamente aceitável enquanto realidade, e terminar novamente em Londres depois de conflitos e momentos de instabilidade, configura em O sobrinho do mago uma estrutura narrativa em forma de U, em que os momentos inicial e final são estáveis e semelhantes. Nos Contos de Fadas clássicos as histórias se dão da mesma maneira. Apenas como um exemplo pode-se citar a história de João e o pé de feijão, um Conto de Fadas de tradição oral: no início, a narrativa apresenta a vida cotidiana de um menino que vai ao mercado vender uma vaca. Ao invés de trocá-la por dinheiro, troca-a por feijões que ele descobre serem mágicos, pois depois de plantados crescem até o céu e o levam a um mundo onde vive um gigante que quer devorá-lo. Depois de lutar por sua sobrevivência, a criança retorna à sua vida normal, descendo pelo pé de feijão. Portanto, no que diz respeito aos Contos de Fadas, temos:

Prova-se então que As crônicas de Nárnia, além de apresentarem em comum aos Contos de Fadas o elemento maravilhoso, apresentam também uma estrutura semelhante.

Bettelheim diz que a Bíblia sempre foi um instrumento direcionador para o homem por trazer respostas às questões mais angustiantes em relação à vida, tais quais: de onde viemos? Para onde vamos? A que viemos? Mas nem durante os períodos teocêntricos as respostas oferecidas através da interpretação do texto bíblico foram suficientes para suprir todas as necessidades de conhecimento próprio do homem, assim como das crianças, tanto em seu lado bom como em seu lado 'mal', que pode ser entendido, em psicanálise, pelo inconsciente já que este é o responsável pelos impulsos instintivos do homem.

As estórias bíblicas sugerem essencialmente uma única solução para os aspectos associais do inconsciente: a repressão destes (inaceitáveis) impulsos. Mas a criança [...] necessita de estórias que permitam pelo menos uma satisfação fantasiosa destas "más" tendências, e modelos específicos para sua sublimação. (BETTELHEIM, 1979, p.66)

Levando em conta as considerações de Bettelheim a respeito do caráter pedagógico dos Contos de Fada como gênero, e da semelhança da estrutura das Crônicas de Nárnia tanto com a estrutura dos Contos de Fada clássicos como com a estrutura da Bíblia segundo Frye, pode-se dizer que Lewis tentou, à maneira dos Contos de Fada, familiarizar as crianças com as parábolas bíblicas e, ainda, apresentar alguns ideais de comportamento, ou mesmo valores, impostos pela Bíblia por meio de aventuras que envolviam crianças e que pediam escolhas próprias delas, sem a influência de um adulto. Pelo contrário, nas narrativas de Lewis, a criança age, em vários episódios, com mais sabedoria do que o adulto, como veremos mais adiante em O sobrinho do mago.

Ao lançar mão de personagens infantis em situações que demandam coragem e sabedoria, Lewis consegue promover uma identificação da parte das crianças com suas personagens, de maneira que, posteriormente, elas poderão usar aquilo que entenderem da leitura como modelo para resolver situações cotidianas. Tendo a realidade como ponto de partida, a criança facilmente percebe que no mundo em que ela vive podem não existir feiticeiras más, mas há seres humanos muito parecidos com essas bruxas, monstros e gigantes que podem querer seu mal, assim como há a possibilidade de ela própria praticar o bem ou o mal, pois o autor assinala que "como é muito provável que [as crianças] venham a encontrar inimigos cruéis, convém que pelo menos ouçam falar de audazes cavaleiros e da coragem heróica". (LEWIS, 2005, p.748).

Bettelheim afirma que "o conto de fadas nos ajuda a entendermo-nos melhor, já que na estória os dois lados de nossa ambivalência são isolados e projetados em personagens diferentes" (1979, p.107). A partir do reconhecimento das ações considerados do "Bem" e das ações consideradas do "Mal", a criança tem condições de decidir por si só que lado de seu inconsciente deixará transparecer e que lado reprimirá, ou seja, fará uso de seu livre-arbítrio, tendo como modelo o final feliz ou não dessas personagens no Conto de Fadas.

Tanto para Tolkien quanto para Lewis, os Contos de Fada não são simplesmente histórias contadas por ou a respeito de fadas nem simplesmente uma história irreal, falsa. Tolkien (2006) afirma que esses contos falam sobre ou se passam em Faërie, ou Belo Reino[3], que é o lugar onde as fadas e todos os seres fantásticos que o imaginário humano já criou existem. Levando em consideração a obra de Lewis, pode-se afirmar que Nárnia é Faërie, já que é o lugar onde existem ninfas, anões, duendes e a magia puramente dita e que tem tempo e espaço próprios.

Tolkien afirma que o criador da narrativa que se passa em Faërie pratica um ato de subcriação, ou seja, "concebe um Mundo Secundário no qual nossa mente pode entrar. Dentro dele, o que ele relata é 'verdade' [pois] está de acordo com as leis daquele mundo" (2006, p.44). Porém, as características desse mundo secundário sempre terão sua origem na realidade.

O fato de essas narrativas possuírem sua própria verdade dá abertura à fantasia, ao elemento maravilhoso, ou seja, trazem imagens de coisas que não podem ser encontradas no "mundo primário", que nada mais é que o mundo real em que todos vivem. A presença do maravilhoso pode causar uma estranheza por ser, segundo Cristiane Madanêlo de Oliveira, a expressão de "todas as situações que ocorrem fora do nosso entendimento da dicotomia espaço/tempo [...] [e que] não obedecem às leis naturais que regem o planeta[4]". Para Tolkien, a fantasia é uma atividade humana natural e, ao contrário do que alguns estudiosos pensam, não ameaça a razão ou abranda o apetite pela verdade científica. Pelo contrário, como esse tipo de literatura traz alguns dilemas existenciais comuns a todos os seres humanos, pode ter uma grande participação na resolução de conflitos interiores decorrentes da infância e na formação ética das crianças.



[1] A ligação entre aquilo que encontramos em Nárnia e qualquer coisa em nossa própria história está mais perto da analogia, onde dizemos não que "Aslam é igual a Cristo" mas que "Cristo está para essa história como Aslam está, em certa medida, para aquela" (Tradução Nossa)

[2] Mythos; Do latim: história, fábula: "A palavra mito significa história: um mito é um conto, uma narrativa; [...] mito é uma literatura e deve ser considerado como uma criação estética da imaginação humana". (CHASE, 1949 apud MOISÉS, 1978, p.346)

[3] O nome Belo Reino remete à palavra Fair do Inglês (da qual originou-se Faërie), que significa belo.

[4] Artigo "A importância do maravilhoso na literatura infantil" disponível em http://www.graudez.com.br/litinf/marav.htm

Referências

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. 2ªed. São Paulo: Paz e Terra, 1979.

FRYE, Northrop. Código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Tradução de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo, 2004.

HOWARD, Thomas. "Narnia, the forgotten country". In: ______. The achievement of C.S. Lewis: a reading of his fiction. Illinois: Harold Shaw Publishers, 1980. pp. 21-52

LEWIS, Clive Staples. "Três maneiras de escrever para crianças". Ensaio. In: ______. As crônicas de Nárnia. Volume único. São Paulo: Martins Fontes, 2005. pp. 741-751.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 2ªed. São Paulo: Cultrix, 1978.

TOLKIEN, John Ronald Reuel. Sobre histórias de fadas. São Paulo: Conrad, 2006.




Siglas (Esquema 2):
SM: O Sobrinho do Mago
UB: A Última Batalha