Análise de fenômenos semânticos na obra A Procissão do Sayré, de João de Jesus Paes Loureiro

Camila da Fonsêca Aranha
Márcio Franco Barroso
Rebeca Luíza Abreu Pereira


Conforme os preceitos teóricos da semanticista Márcia Cançado expostos na obra Manual de Semântica, buscamos encontrar e analisar os seguintes fenômenos semânticos por ela apresentados: sinonímia, paráfrase, antonímia, contradição, polissemia, homonímia, ambiguidade, dêixis e anáfora. Entretanto, na obra em que analisamos, que consiste em um texto dramático, estão presentes apenas os fenômenos da sinonímia, antonímia, contradição, polissemia, homonímia, dêixis e anáfora ? sendo estes dois os mais recorrentes.
Gostaríamos de ressaltar que, em virtude do gênero do texto analisado ? isto é, uma obra dramática produzida para ser encenada ?, analisamos o próprio texto escrito e não como a obra seria caso estivesse sendo encenada; por exemplo, levamos em consideração as informações contidas entre parênteses, que correspondem às orientações quanto ao momento da encenação; cenário, personagens, sentimentos, etc.
No que concerne ao fenômeno semântico da sinonímia, encontramos apenas uma ocorrência, pertencente à cena I da peça.

As mulheres seguram o arco do Sayré, que é instrumento do cerimonial religioso de origem indígena amazônica e que tem a seguinte forma: [...] As mulheres do Sayré seguram a peça da seguinte maneira: [...]

A sinonímia, nesse exemplo, decorre da equivalência de sentido entre as palavras "instrumento" e "peça", ambas referentes ao "arco do Sayré". Conforme corrobora Cançado (2008, p. 41 e 42), "sinonímia é identidade de significados. [...] Além de terem a mesma referência , é necessário, também, que as expressões tenham o mesmo sentido.".
Com relação ao segundo fenômeno, isto é, o da antonímia, encontramos quatro ocorrências ao longo do texto. Ressaltamos que, dentre todos os exemplos encontrados, os antônimos são binários, isto é, "são pares de palavras que, quando uma é aplicada, a outra necessariamente não pode ser também aplicada" (CANÇADO, 2008, p. 46).
A primeira delas está presente no seguinte fragmento do texto (cena IV): Vejo que estes artistas pertencem a uma ordem muito antiga. Uma desordem, aliás.

A segunda ocorrência é a seguinte, presente na cena VII do texto: "Oh! Coisa igual desigual".
A terceira antonímia encontrada, por sua vez, refere-se ao trecho a seguir (cena X): Há uma hora de trevas/ em que a luz dói mais do que clareia.
Segundo o Dicionário Aurélio, a palavra "trevas" significa, dentre outras definições, "escuridão absoluta". Desse modo, fica clara a oposição de palavras existentes entre trevas/luz.
O quarto exemplo de antonímia, por sua vez, ocorre, na cena XV, pela utilização das palavras mais/menos e divide/multiplica:

Sou alguém, que por ser mais,
é de menos, só divide,
e multiplica as parcelas
do medo que, então, progride.


Quanto aos exemplos de contradição, verificamos seis exemplos no decurso do texto.
O primeiro exemplo encontra-se em praticamente toda a cena III, conforme exposto abaixo:

(Transição ? Canção da Felicidade)

O que eu vejo
não é o que eu vejo.
Tralalá, tralalá.
O que existe
não é o que existe.
Tralalá, tralalá.
O que é verdade
não é o que é verdade.
Tralalá, tralalá.
[...]

Percebemos, pois, que nesse caso a contradição ? que pode ser desencadeada de diversas formas ? foi acarretada pelo uso da negação da afirmação anterior. Os dois pares de sentenças descritos "não podem se realizar ao mesmo tempo e nem nas mesmas circunstâncias no mundo" (CANÇADO, 2008, p. 47). Dessa forma, aquilo que se vê não pode ser, ao mesmo tempo e em uma mesma situação, aquilo que não se vê; o que existe não pode ser ao mesmo tempo o que não existe; e também o que é verdade não pode ser, simultaneamente, o que não é verdade.
Assim como no exemplo anterior, a contradição a seguir (cena IX) também se fundamenta com base na questão de uma negação aplicada em sentença posterior:

Mesmo quem tudo pode
não pode tudo.

A terceira contradição é causada pela presença de palavras antônimas, que resultam em ideias contraditórias ? uma vez que nas trevas não pode existir a presença de luz: Há uma hora de trevas/ em que a luz dói mais do que clareia.
O quarto exemplo, presente na cena XIV, diz que:

Os rios morrendo de sede,
e ar morrendo sem ar.

A quinta ocorrência de contradição, por fim, presente na cena XV, é de uma fala da personagem de Dionísio, apontando que:

DIONISIO______Desgraçado de mim. Agora que estou cego, vejo mais claramente do que quando os olhos viam bem.

Se Dionísio está cego, como pode ver mais claramente?! Claro que não estamos levando em consideração a licença poética do texto.
No que diz respeito ao fenômeno semântico da polissemia, encontramos apenas um exemplo, presente na cena VIII:

DIONISIO______Não, meu caro...Tu não! És um fiel amigo e conselheiro.

Nessa situação, temos a palavra "caro" como polissêmica, uma vez que tem, pelo menos, dois sentidos; um ligado a noção de algo que possui preço elevado e o outro relacionado ao tratamento de alguém por quem se possui alta estima (caso do exemplo acima citado). Percebemos, porém, que ambos os sentidos nos remetem à noção de algo valioso. Dessa forma, os possíveis sentidos da palavra ambígua têm alguma relação entre si, originando, assim, o fenômeno da polissemia.
Já com relação à homonímia, foram verificadas cinco ocorrências desse fenômeno semântico. A homonímia, diferentemente da polissemia, "ocorre quando os sentidos da palavra ambígua não são relacionados" (CANÇADO, 2008, p. 63). Ou seja, todas as homonímias abaixo não apresentam relações entre os seus diferentes sentidos ? um sentido é independente do outro.

(Cena II) DIONISIO________ (Cortando) Cale-se! Ainda não ordenei que parassem de dialogar. Sem disciplina não há diálogo.


(Cena II) EMISSÁRIO________ [...] Bateram em retirada e não há perigo iminente para a República de V.Exa.


(Cena IV) DIONISIO________ [...] Depois baixarei o decreto que regulará a sua produção.


(Cena VIII) DIONISIO________ [...] Mas de que meios poderia lançar mão para, em última instância, garantir a autoridade?

(Cena VIII) ASSESSOR________ V.Exa. está correndo o risco de sacrificar gerações presentes, fazendo a República progredir em benefício das gerações futuras.

Sobre os fenômenos da dêixis e anáfora, foram encontrados 11 do primeiro e 19 do segundo. A dêixis consiste em uma referência feita a partir do contexto, identificando elementos por meio de pronomes demonstrativos, pronomes pessoais, tempos de verbos e advérbios de lugar e de tempo ? isto é, os denominados de elementos dêiticos.
Dentre os 11 exemplos, optamos por demonstrar os elencados abaixo:

(Cena VI) O MENINO________ Eu não vejo a hora da gente chegar. Por isso vou cada vez mais animado, espantando os maus espíritos do nosso caminho, com esta bandeira branca do nosso protetor São Tomé.


(Cena VI) VELHO PAJÉ________ Já vivi muitos anos, mas uma viagem como esta nunca vi.


(Cena XI) DIONISIO________ [...] (Mostrando o robô-alegre) Aqui está o modelo para todos vocês.


(Cena VIII) DIONISIO________ [...] E essas coisas dependem hoje da tecnologia. Disso estou certo.


(Cena XI) DIONISIO________ Sei que esta é uma época difícil.


(Cena XV) UM MISSIONÁRIO________ Aqui só existe lugar para todos, igualmente.

A anáfora, por fim, consiste na devida referência entre elementos anteriormente citados e aqueles que posteriormente fazem a retomada com eles, sendo que isto ocorre em nível puramente textual ? não necessitando, diferentemente da dêixis, do contexto. Ou seja, na anáfora existem as relações de correferência (geralmente indicadas pelo uso das letras i, j e k) entre um termo anteriormente posto e aquele que o retoma mais a frente no texto.
Cançado (2008, p. 54) aponta que: "A anáfora também consiste em identificar objetos, pessoas, momentos, lugares e ações, entretanto, isso se dá por uma referência a outros objetos, pessoas, etc, anteriormente mencionados no discurso ou na sentença.".
Dentre os 19 exemplos, optamos por apresentar apenas os que seguem:

(Cena II) DIONISIO________ [...] Nossa fábrica é a número 1! A número 1! E dela vem toda a nossa segurança e a força de nosso poder.


(Cena II) FINANCISTAS________ A República de todos. Por isso todos são responsáveis diante dela.


(Cena VIII) ASSESSOR________ As conseqüências da poluição da fábrica já começam a se fazer sentir. Como ela está erguida nas margens do rio Tocarena [...]


(Cena XI) DIONISIO________ [...] Se os livros começam a atrapalhar, queimo-os. Queimo-os antes que eles me queimem.


(Cena XI) UM DOS SIM-SENHORES________ Não. Essa água, não. Ela está contaminada.

(Cena XI) DIONISIO________ [...] (Apesar do comportamento solene de Dionísio, deve ficar bem claro que ele, pouco a pouco, vai ficando cego.).


Referências:

CANÇADO, Márcia. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008.

LOUREIRO, J. J. P. A procissão do Sayré. Rio de Janeiro: Inacen/MEC, 1977.