Este artigo trata de explicitar a história do currículo na educação brasileira. A autora (1) aponta a intencionalidade dos governantes e as razões destes agentes formadores destas propostas político-educacionais, expondo o currículo na educação brasileira em várias épocas que se estende desde o período jesuítico até a década de 80, salientando que educação brasileira atendia ao longo do tempo os interesses políticos, militares e da Igreja.
Zotti (2004) inicia seu trabalho nos trazendo o significado da palavra currículo, que vem da palavra scurrere e significa correr, como um percurso a ser realizado, mas referindo-se a curso, carreira.
Para Sacristán (1998), citado por Zotti (2004) "o currículo real é mediado pelo contexto social, econômico, político e cultural", ou seja, fruto destes interesses. No decorrer da obra, isto só vem a se tornar claro.
A educação jesuítica (1549-1570), na época do Brasil Colônia e sob o comando de Manuel da Nóbrega, foi responsável pela catequização indígena, além de educar a elite colonizadora. Com características clássicas e humanísticas estabelece-se a hegemonia da Igreja Católica e fica claro o aprisionamento do homem, tanto o indígena quanto da elite colonizadora aos dogmas da Igreja. Em contrapartida, havia uma educação homogênea e igualitária, que trouxe uma nova identidade cultural ao Brasil colonial. Mas com a idéia de transplantar uma cultura européia portuguesa, os jesuítas foram expulsos do país e a reforma pombalina passa a questionar o poder que a Igreja tinha até aquele momento sobre a educação. A partir deste momento, razão e a ciência passaram a direcionar os rumos do ensino, principalmente, do secundário, no intuito de preparar os filhos da elite para o comando do país, o que segue até a atualidade.
No Brasil Império, ocorre a criação de vários cursos superiores voltados para a máquina estatal, dando ênfase a uma educação essencialmente voltada para a elite portuguesa, embora o discurso de caráter "nacional" se valesse quando convinha a esta classe dominante. Destacam-se a criação da Biblioteca Nacional e do Museu Real. Neste período, devido às mudanças que ocorriam na Europa - Revolução Francesa e início da Revolução Industrial, - o país ganhava novo corpo econômico e político, mesmo assim, o povo não era a preocupação maior. Com o advento independência do país, um movimento das elites, o Brasil se torna uma nação econômica e politicamente independente de Portugal, mas até este momento, o modelo de educação jesuítica continuava a direcionar a educação no país. Somente em 1827 foram criadas as escolas de primeiras letras por todo território nacional e de escolas para meninas nas cidades e vilas mais populosas, mesmo assim o Estado não parecia se importar muito com a questão do ensino e adota um método em que o ensino mútuo poderia disfarçar esta falta de interesse: o método Lancaster, de origem inglesa, que praticamente dispensava o ensino de professores, que ensinavam os alunos mais adiantados ? repassando os conteúdos aos alunos iniciantes. Dessa forma, o completo descaso com a educação das primeiras letras só fez piorar a qualidade de ensino nesta época.
Zotti (2004) enfatiza que a educação nacional sempre está acompanhada da dualidade entre a classe dominante e a educação do povo. Na Primeira República (1889-1930), a educação era mantida pelo Estado que continuava atendendo os interesses de uma elite dominante. A educação popular se torna uma possibilidade de acesso e passa a ser vista positivamente, embora a velha e aristocrática educação superior continuasse sem as mudanças necessárias. O ensino enciclopédico visava à modernização da formação de uma elite, um ensino erudito, baseado no experimentalismo e na racionalidade técnica, um estudo moldado pelo verbalismo. O currículo, portanto, favoreceu o ensino de humanidades, embora em alguns momentos o ensino científico surja no intuito de modernizar a formação da elite.
No período Vargas, que está entre os anos de 1930 a 1964, a economia é a norteadora da educação do povo. Alguns eventos se destacam: o colapso da bolsa de Nova York, nos Estados Unidos (1929), que gerou uma crise seguida por dez anos, a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), resultado de negociações com os EUA (1941), num momento decisivo para a indústria de base. A partir de 1930, a pedagogia da Escola Nova se fortalece nas novas bases econômicas e políticas, defendendo a escola pública obrigatória e gratuita. Sem dúvida, esta nova realidade brasileira exigia uma mão-de-obra qualificada, deixando clara a relação entre o modelo econômico e o modelo educacional vigente.
Torna-se evidente a preocupação da Igreja católica, até então monopolizadora do ensino médio pago pelas elites, mas que agora com a formação de uma sociedade urbano-industrial se via ameaçada. Neste contexto político não se pode deixar de citar o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova que fortalecia a idéia de que a luta era contra a escola tradicional (conservadora) e não contra o Estado burguês, mas que contribui muito para os rumos da educação no país.
A Constituição de 1934, embora tenha adotado quase todas as propostas dos liberais, deu vez à participação dos católicos, com a possibilidade de retorno do ensino religioso facultativo no currículo escolar. Com a Ditadura de 1937, a política de Vargas se volta para um dirigismo estatal e o Estado passa a direcionar o debate sobre a política educacional. A política liberal favorece a indústria e procura realizar uma "revolução burguesa" centralizada no aparelho do Estado. Na segunda fase da ditadura militar que vai de 1937 a 1946, surgem as leis orgânicas do ensino, centralizadoras e burocráticas: ensino industrial, ensino primário e secundário, comercial, normal, agrícola; os ricos proveriam seus estudos como convinham: escolas públicas ou particulares; os pobres nas escolas profissionalizantes.
Com a Reforma Capanema, realizada pelo então ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema Filho em 1942, através da Lei Orgânica do Ensino Secundário, fortalece o caráter elitista, formando assim as individualidades dirigentes. Já a Lei Orgânica do Ensino Primário, propõe que o aluno deveria elevar o nível de conhecimentos voltados a família e ao trabalho. Em conseqüência, a escola se torna formadora da grande massa trabalhadora e assim se consolida a estrutura de classes, reforçando a dualidade entre ricos e pobres, não se manifestando o Estado sobre a gratuidade do ensino após o primário, concedendo a liberdade do ensino secundário para as escolas particulares e religiosas. Está claro que a democratização do ensino, com oportunidades iguais se tornou cada vez mais distante de se concretizar. Com o retorno de Vargas ao poder em 1951, as classes populares e a burguesia industrial exercem forte pressão sobre o governo em busca de seus interesses particulares; e após sua morte, os presidentes que o sucederam não fugiriam do desenvolvimentismo, supervalorizando o ensino profissionalizante, a "educação para o trabalho".
De acordo com a LDB n. 4024/61, elaborada em um período de relativa democracia, torna-se uma das mais importantes leis em favor da educação brasileira, a primeira legislação da educação no Brasil. No que diz respeito ao ensino primário, praticamente não houve mudanças, e com relação ao currículo do ensino médio, a LDB passa a mesclar um projeto pedagógico humanista clássico e com alternativas profissionalizantes. Houve a inserção de algumas disciplinas, como a filosofia e a sociologia, visando formar o indivíduo em sua plenitude. De modo geral, a formação pré-universitária era essencial, embora tenha se dado maior flexibilidade nas matrizes curriculares dos programas de ensino nas escolas, tendo em vista que a sociedade urbano-industrial exigia um maior número de acesso ao ensino.
Tentar entender como a sanção da LDB 4.024 em dezembro de 1961 pelo presidente João Goulart, vista por muitos intelectuais da época como "um presente de Natal", é refletir sobre as lutas que ocorreram na sociedade brasileira desde a época de Vargas, uma luta de interesses privados, de um lado a burguesia industrial e das camadas médias e de outro uma oligarquia agrária exportadora e de capital estrangeiro, sem contar com a participação ativa da Igreja, no combate as idéias liberais, socialistas ou comunistas, afinal, uma escola pública de qualidade atrairia a classe média, que deveria buscar o ensino médio e superior através de escolas e universidades católicas.
No período que vai de 1964 a 1985, a ditadura militar permanece 21 anos no poder, no qual passaram cinco generais. Ela se manteve no poder com a ajuda da tecnocracia militar e civil, a burguesia nacional e as empresas multinacionais. O ensino nesta época se voltou para um modelo behaviorista (2), baseado em estímulo-resposta
O objetivo do Estado capitalista militar, no que diz respeito à educação, era fortalecer os interesses econômicos e com a nova Constituição de 1967, este direito estaria assegurado com o fortalecimento do ensino particular e a escassez de verbas para a educação pública.
A nova lei n. 5.692/71 não se distanciou do que já havia sido proposto pela LDB anterior, reforçando a direção do ensino para um tecnicismo, pois havia uma preocupação com as camadas populares. Uma adequação aos interesses da ditadura militar, tentando transformar a idéia de um Brasil atrasado em um Brasil-potência, reflexo de uma política norte-americana. Enquanto que a lei n. 4024/61 visava a formação integral do indivíduo, esta nova lei fortalecia o ensino privado, o que causa uma ruptura dos sistemas de ensino (SAVIANI, 1996 apud ZOTTI, 2004). A erudição que a lei anterior buscava não deveria existir, a idéia era "qualificar para o trabalho", embora tenha ocorrido o fracasso na imposição deste ensino pelo contexto da ditadura, pois não havia profissionais qualificados para exercerem este tipo de ensino nem os materiais necessários para tal.
A lei 7.044/82 visava "preparar" o indivíduo para o mercado de trabalho, com propostas baseadas na Teoria do Capital Humano (3), não havia o interesse do ensino profissionalizante oferecido pelo Estado para os empresários, pois estes possuíam as próprias estratégias de ?capacitação?.
Concluindo, ao nos depararmos com os diferentes períodos da história do Brasil e a educação brasileira, não se pode deixar de considerar os interesses da classe dominante sobre a educação. Desde a época jesuítica, os currículos se voltam para os interesses particulares dos que comandam a sociedade em seus períodos históricos, predominantemente elitistas. De qualquer forma, sempre houve e ainda há resistências e críticas aos modelos implantados, como forma de atuação mais consciente e responsável dos setores envolvidos e isto deve ser o palco de discussões de todo o educador envolvido com os rumos da educação no país.
Zotti (2004) traz a possibilidade de uma compreensão maior do que seria este pensamento dominante sobre a educação, das políticas sociais e dos valores desenvolvimentistas que produziram novas leis e possibilidades para que fosse implantado um modelo de educação de acordo com o pensamento dirigente das épocas referenciadas no texto. Sem dúvida, entender o que está por trás da formação dos currículos oficiais de cada época traz à luz as vias condutoras da política e dos modelos sociais que são implantados para a condução das massas.

NOTAS

(1) Solange Ap. Zotti - Possui graduação em Pedagogia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (1993), graduação em Artes Práticas pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (1990), mestrado em Educação e Ensino ? UNC/UNICAMP (2002) e Doutorado em Educação pela UNICAMP (2009). Professora da Fundação Universidade do Contestado e Coordenador Pedagógica da Cooperativa Educacional Magna - CEM. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Metodologia da Pesquisa, Didática, Filosofia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, sociedade, legislação, história e currículo oficial.
(2) Derivada da psicologia científica, século XIX-XX, todo comportamento é de origem animal ? incluindo o homem ? estudado em termos de estímulo e respostas, formando de hábitos, assim é possível conhecer e controlar a conduta na medida em que os estímulos permitem prever respostas e vice-versa.
(3) O conceito de capital humano tem origem na década 50, com Theodore W. Schultz, (1902 a 1998). As políticas educacionais incentivam o treinamento no trabalho pelas empresas, por exemplo. O Estado fica desobrigado da formação profissional que a maioria da população pobre deseja obter, dentro do pensamento neoliberal, os seres humanos são considerados um "capital" que se reverte em lucro para as empresas.


Bibliografia

ZOTTI, Ap. Solange. Sociedade, Educação e Currículo no Brasil ? dos jesuítas aos anos de 1980. Campinas: Autores Associados, 2004.