ALTERIDADE NA EDUCAÇÃO DO CAMPO: presente nas políticas públicas e/ou na formação, prática pedagógica e representações dos professores (as)?
Gilnara Guedes dos Santos (Graduada em Ciências Biológicas Licenciatura / UNIT); Samara Guedes dos Santos (Graduanda em História Licenciatura UNIT/PROBIC) e Ada Augusta Celestino Bezerra (Dr. Em Educação NPED e UNIT).

RESUMO
Representações e práticas docentes na educação do campo e uma política municipal de educação desenvolvida em Poço Redondo (1998 a 2004), município do semi-árido sergipano, nordeste brasileiro, constituem o objeto de estudo da investigação. A pesquisa visa identificar nas políticas públicas e/ou na formação, prática pedagógica e representações dos professores e professoras, a presença ou a ausência da alteridade como condição para superação da dicotomia cidade/campo e garantia da educação como direito humano e do desenvolvimento científico, tecnológico e social do estado/região/país em favor do sujeito de direitos. A abordagem metodológica configura-se como pesquisa qualitativa contemplando o estudo de caso e a biografização, fundada na experiência e nos modos de narração na formação de professores, conforme Souza(2008), Josso(2008) e Passeggi(2008). Preliminarmente aponta-se para a necessidade de uma rede escolar própria e de políticas de distribuição de riqueza e reconhecimento para o campo, respeitada a dialética nacional/local, todo/diversidade, reforma agrária/redistribuição da terra, com fundamento na igualdade.
Palavras- chave: Alteridade; educação do campo; políticas públicas.

INTRODUÇÃO
As representações e práticas de professores (as) que atuam na educação básica de escolas do campo de um estado do nordeste brasileiro, bem como uma política pública educacional desenvolvida em um de seus municípios localizado na região do semi-árido, constituem o objeto de estudo da investigação que fundamenta este artigo. Trata-se de um dos produtos de uma pesquisa maior, em desenvolvimento desde 2006, sobre a formação do (a) professor (a) do campo, que envolve subprojetos, com a anuência do Comitê de Ética de Pesquisa da instituição e dos sujeitos abordados. A intenção é participar dos esforços em curso na área da educação do campo no sentido do desvelamento do princípio (neo) liberal de igualdade de oportunidades, do descompasso entre as políticas públicas educacionais, as práticas e as representações docentes nas escolas do campo, somando-se ao conjunto de experiências, estudos e leituras da complexa realidade brasileira, na perspectiva da educação como direito humano e do pesquisador como eterno aprendiz.
Considera a experiência vasta na formação de educadores (as), inclusive nos movimentos sociais, não se configurando como uma proposta neutra; tem como norte a justiça social e a dignidade humana, entendendo a educação do campo como direito humano. Sua base legal reside na Carta Magna do país (1988) que, em seu Art. 1º estabelece: o estado democrático de direito, do que se extrai como fundamentos a soberania (da nação, o nacional e, inclusive, o campo); a unidade na diversidade (como uma relação dialética); o regime de colaboração (muito pouco diante do real desafio da educação do campo e do ideal de uma união indissolúvel entre os entes federados) e a cidadania (princípio que se refere a limites dados no território nacional). Aprofunda o conhecimento a respeito da prática da educação do campo verificando as implicações da convivência com imposições (nacionais/internacionais), inclusive em detrimento da dignidade humana, da alteridade, dos valores ontológicos e sociais do trabalho.
O objetivo geral da investigação é identificar nas políticas públicas atuais para a educação do campo, nas práticas e representações dos professores e professoras das escolas do campo, sinais da presença ou ausência da alteridade como condição para superação da dicotomia cidade/campo e garantia da educação como direito humano, de modo a contribuir para o desenvolvimento científico, tecnológico e social do estado, da região e do país em favor do sujeito de direitos. São objetivos específicos: estudar as autobiografias/histórias de vida dos professores das escolas do campo de um estado do nordeste brasileiro, sob a ótica da alteridade na sua prática, na perspectiva social, econômica, ecológica e pedagógica, frente às políticas públicas e às perspectivas de redistribuição e reconhecimento; analisar uma política pública de educação voltada para a convivência com o semi-árido, visando identificar seu distanciamento ou proximidade da alteridade e do reconhecimento da educação como direito humano; identificar formas de educação, mecanismos de resistência e superação que se vão legitimando com a utilização de tecnologias sociais na educação do campo, destacando o papel da educação na construção da alteridade, da igualdade, no desenvolvimento local e na formação inicial e continuada dos professores e professoras das escolas do campo.
A pesquisa desenvolve-se na perspectiva da contribuição da educação do campo para o empoderamento daquele ou daquela que atua no campo, a partir do que se fortalece o Estado de direito, uma vez que todo poder emana do povo que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos. Sua hipótese de trabalho é que o modelo de "classe multisseriada", que caracteriza as escolas do campo, enseja o tratamento das diferenças para a construção da igualdade em sala de aula, o que implica a ética da alteridade. O pressuposto básico é que homens e mulheres devem ter condições de exercerem diretamente o poder nos termos da Constituição tanto no campo quanto na cidade, procurando superar a polarização campo/cidade uma vez que são espaços que se diferenciam em relação ao país e não estão um contra o outro, no que a educação é imprescindível.
As políticas públicas do país, em geral, não falam de desigualdades sociais, mas de desigualdades regionais, o que acaba por inviabilizar a discussão da educação como direito de todos; assim fica difícil construir a igualdade social no campo, se o Brasil não é capaz de reconhecer suas desigualdades, construídas ao longo da história, com uma origem social. Naturalmente todos somos iguais, mas não podemos confundir igualdade e diferença: iguais no gênero e diferentes nas particularidades dos sujeitos. A categoria maior que nos iguala o que é comprovado por Heller (2000; 2002) é a do gênero humano e a educação é um direito humano; cada um de nós tem sua particularidade sem perder a genericidade, nem sempre em convivência ativa, mas muda.
O princípio (neo) liberal trata como iguais os diferentes, daí a igualdade de oportunidades. Em que pese até mesmo a igualdade na idade, cada um é um sujeito diferente. Temos que salvaguardar a diferença e a diversidade; na questão da igualdade já são suficientes as pesquisas que permitem afirmar: todos aprendem, na cidade ou no campo; este é o desafio que requer algumas condições; as oportunidades devem ser tantas quantas necessárias forem. O pensamento cartesiano exerce ainda no imaginário de muitos políticos e até de educadores um papel legitimador; por exemplo, a Curva de Gauss (Curva Normal de Distribuição) é devastadora da igualdade. Não existem necessariamente percentuais de alunos médios, fracos ou excelentes; o que existe é a discriminação pelos resultados.
A pesquisa defende políticas de distribuição de riqueza e de reconhecimento para o campo, uma rede escolar própria para o campo, na defesa da sua identidade, mantendo a relação dialética entre o nacional e o local; não existem homens e mulheres do campo contra o mundo, embora o modo de produzirem sua existência no campo lhes dê uma identidade e ao campo. Diante do desafio de relacionar o todo e a diversidade, alguns defendem uma educação calcada na reforma agrária; outros defendem a educação na perspectiva da redistribuição da terra, sempre com o mesmo fundamento básico: a igualdade. O reconhecimento das identidades por si só é insuficiente; pode fragmentar. A educação deveria ser o fundamento do Estado de Direito. A discussão no contexto ideológico é um impedimento para que se garanta a efetividade da educação do campo. Dentre as categorias trabalhadas destacam-se: igualdade, diversidade, diferença e alteridade, desconsiderando a categoria da equidade, carregada da carga ideológica neoliberal. A condição humana, a realidade humana, tem como referência básica a igualdade. Do ponto de vista educacional a igualdade está fundada numa relação entre sujeitos onde cada um se reconhece no outro. Aí já o sentido da alteridade. Nas lutas políticas os diferentes setores sociais querem estar presentes e ser reconhecidos; o campo ainda não teve força para assegurar políticas públicas. A cidade ainda é um parâmetro interpretador do campo. O sistema de ensino teria que ser revolucionado para reconhecer identidades. Esta investigação analisa falas/histórias de vida dos sujeitos na busca de avanços na escrita da educação como um direito humano porque responde a uma necessidade permanente de aprendizagem do homem, daí porque aponta dois critérios para a educação do campo: reconhecimento e redistribuição.
Alteridade é uma categoria ampla e utilizada em contextos diversos como: pedagogia, psicologia, sociologia, filosofia, economia, cristianismo, holismo e espiritismo, dentre outros; etimologicamente, significa colocar-se no lugar do outro na relação interpessoal - com consideração, valorização e identificação - e dialogar com esse outro. A prática da alteridade está conectada aos relacionamentos entre indivíduos e grupos culturais religiosos, científicos, étnicos, etc. Na relação alteritária, estão presentes os fenômenos holísticos da complementaridade e da interdependência, no modo de pensar, de sentir e de agir, onde o nicho ecológico, as experiências particulares são preservadas e consideradas, sem que haja a preocupação com a sobreposição, assimilação ou destruição destas. A investigação privilegia o sentido social, econômico e também pedagógico da alteridade.
No final da década de 1980, Oliveira (1988) denunciava o que se chama Welfare State (Estado-Providência) que se constituíra desde as décadas anteriores no padrão de financiamento público da economia capitalista, com a contrapartida social: medicina socializada, educação universal gratuita e obrigatória, previdência social, seguro-desemprego, subsídios para transporte, benefícios familiares (quotas para auxílio-habitação, salário família, hoje podemos falar também das bolsas família, bolsas escola, crescentes nos últimos anos etc.) e subsídios para o lazer, que representam salário indireto e contemplaram progressivamente as classes médias até o assalariado de nível mais baixo.
Esse modelo ainda inclui recursos para ciência e tecnologia, subsídios para a produção, sustentação da competitividade das exportações, juros subsidiados para setores de ponta, fortalece poderosos setores estatais produtivos, cristaliza a ampla militarização, sustenta a agricultura e o mercado financeiro e de capitais através de bancos e/ou fundos estatais, intervém na circulação monetária de excedentes pelo open market e mantém a valorização dos capitais pela via da dívida pública, dentre outros.
Este pode ser sintetizado na sistematiza¬ção de uma esfera pública onde, a partir de regras universais e pactadas, o fundo público, em suas diversas formas, passou a ser o pressuposto do financiamento da acumulação de capital, de um lado, e, de outro, do fi¬nanciamento da reprodução da força de trabalho, atingindo globalmente toda a população por meio dos gastos sociais. (...) O padrão de financiamento público do Estado-Providência é o res¬ponsável pelo continuado déficit público nos grandes países industrializa¬dos. É este padrão que está em crise, e o termo "padrão de financiamento público" é preferível aos termos usualmente utilizados no debate, tais co¬mo "estatização" e "intervenção estatal". (OLIVEIRA, 1988: 8)
Ao falar da crise do Estado-Providência, de fundo ideológico, Oliveira (1988) indica como conseqüência a "crise fiscal do Estado" (o que um ganha é o que o outro perde) nos termos de O'Connor (1973), fruto da disputa entre fundos públicos destinados à reprodução do capital e aqueles que financiam a produção de bens e serviços sociais públicos, já no contexto da internacionalização produtiva e financeira da economia capitalista. O padrão do financiamento público (que se constituiu como esfera pública) "implodiu" o valor como único pressuposto da reprodução ampliada do capital, desfazendo-o parcialmente enquanto medida da atividade econômica e da sociabilidade em geral. Trata-se de antimercadorias sociais, pois potencialmente visam elevar a potencialmente a qualidade de vida e não gerar lucros, nem a extração da mais-valia.
Embora Oliveira (1988) considere a construção da esfera pública e a democracia representativa como irmãos siameses, reconhece que o Estado de Bem-Estar não deixou de ser um Estado classista, instrumento poderoso para a dominação de classe. Entretanto não se confunde com o Estado marxista "comitê executivo da burguesia". É o Estado que Poulantzas chamou de "Condensação das lutas de classe". Nesse contexto destaca-se como:
característico da construção da esfera pública: a construção e o reconhecimento da alteridade, do outro, do terreno indevassável de seus direitos, a partir dos quais se estruturam as rela¬ções sociais. (...) o resultado surpreendente é que a esfera pública e a democracia contemporânea afirmam, de forma mais peremptória que em qualquer outra época da história, a existência dos sujeitos políticos e a prevalência de seus interesses so¬bre a pura lógica do mercado e do capital. (OLIVEIRA, 1988: 14)
A relação dessa esfera pública com a democracia representativa consiste na transformação das relações entre as classes sociais, não mais subsumidas no Estado, anulando a velha irredutibilidade entre Estado e sociedade civil. Essas relações entre as classes sociais não mais
buscam a anulação da alteridade, mas somente se perfazem numa perequação ? mediada pelo fundo público ? em que a possibilidade da defesa de interesses privados requer desde o início o reconhecimento de que os outros interesses não apenas são legítimos, mas necessários para a reprodução social em escala ampla. (...) tanto a esfera pública como seu corolário, a democracia representativa, afirmam as classes sociais como expressões coletivas e sujeitos da história. (OLIVEIRA, 1988: 12).
Nesse sentido emerge a importância dos partidos políticos, cuja função não é a de identificar-se com determinadas classes sociais, mas com modos de processar essa relação social de preservação da alteridade, a partir do que se fala de esquerda ou de direita.
Para Oliveira (1988) a crítica da direita e a passagem à ação, na linha das políticas thatcheristas e reaganianas, dirigiu-se aparentemente ao Estado Moloch, embora seu objetivo fosse dissolver as arenas específicas de confronto e negociação, para deixar o espaço aberto a um Estado Mínimo, livre de todas as peias estabelecidas no nível de cada arena específica da reprodução social, o que considera uma verdadeira regressão. Assim, busca-se a manutenção do fundo público como pressuposto apenas para o capital e não como o discurso da direita afirma, de reduzir o Estado em todas as arenas; na verdade limita-se àquelas em que a institucionalização da alteridade se opõe a uma progressão do tipo "mal infinito" do capital.
É típico da reação thatcherista e reaganiana o ataque aos gastos sociais públicos que intervêm na nova de¬terminação das relações sociais de produção, enquanto o fundo público aprofunda seu lugar como pressuposto do capital: veja-se a irredutibilida¬de da dívida pública nos grandes países capitalistas, financiando as frentes de ponta da terceira revolução industrial. (OLIVEIRA, 1988: 12).
Lévinas (1997) propõe uma ética que se opõe à ética individualista fundante do anti-humanismo contemporâneo. Essa nova ética, da alteridade, volta-se para o outro como prioridade sobre o eu, valorizando a subjetividade e a ontologia. Nesse contexto a ética também é uma prática encarnada; é vida e não um discurso vazio; é interiorizada, introjetada e vivida, daí porque cria laços e não separa ou rompe; defende a ética como filosofia primeira, dialogando com filósofos como Husserl e Heidegger, ultrapassando-os, uma vez que ambos não abrem mão da supremacia do sujeito. Para Lévinas (1997) o movimento em direção à alteridade do mundo, ou à intencionalidade, habita o coração da consciência; a correlação sujeito-objeto dá-se no nível da consciência; essa correlação vai além, pois deve vir da exterioridade, enquanto autêntica transcendência, a qual é manifestada no rosto do outro. A interioridade e a individualidade emergem da concreta relação do eu com um mundo exterior, concreto, real, palpável. Cada ser é totalmente separado do outro (psiquismo/egoísmo) do que surge a necessidade do outro. Para que possa acolher o outro, é preciso estar mergulhado no mundo material, concreto, econômico, e ser indivíduo singular; é pela via da "alterpercepção", do estar no mundo, que se torna possível perceber o outro.
Lévinas (1997) supera o intelectualismo e fala de uma intencionalidade da encarnação, o ser erigido como corpo sobre um mundo de felicidade e sensibilidade. A consciência não encarna, mas é antes uma desencarnação. A morada para o corpo é a referência para ele, para o mundo e do mundo para a morada. É a casa que propicia o acolhimento necessário para que a natureza humana possa ser representada e trabalhada (ser cidadã). É na família (familiaridade), com o choque do rosto, que irrompe a necessidade, o trabalho como ação do corpo, visando o provimento material na exterioridade. Nesse processo, desejo e necessidade podem se confundir na busca pelo gozo (felicidade).
(...) o eu é antes de tudo constituído pela separação, é vivido antes que representado e erguer-se a partir de uma verdadeira exterioridade. Tal experiência, quando acumulada pode propiciar abertura para o entendimento de que o outro lhe falta. É da alteridade que irrompe um apelo heterônimo que o ser e o saber não podem circunscrever, apelo que incessantemente transgride os parâmetros ontológicos pelo questionamento que introduz e pela exigência que exprime. O eu percebe-se criticado e investido pela alteridade irredutível, a partir daí será possível criar o humanismo do outro homem, com relações melhores e instaurar o humano como reino do Bem para além do ser (LÉVINAS, 1997: 15-16)
Na práxis pedagógica, em todas as áreas do conhecimento, essa proposta está fundamentada na possibilidade de que esta seja a ética capaz de dar conta das relações humanas. A ética da alteridade é, na prática, o respeito pelo diferente, considerando que o rosto do outro nos convoca, nos interpela e nos convida, revelando no rosto do outro o seu infinito. O outro é decisivo para minha identidade; é no seu rosto que muitas vezes encontro a minha própria identificação. A prática da escola excludente choca-se com este paradigma: é preciso ensinar a apreender o sentido e o infinito no rosto do outro; esta é a ética da alteridade: os alunos aprendem a respeitar o outro, a ver e perceber o rosto do outro. Que tipo de fala (teoria ética) está fundamentando a prática em educação do campo? Que discurso e que ética está sendo teorizada e manifestada em sala de aula? Porventura serão discursos antagônicos de éticas reducionistas ou discursos que revelam uma prática excludente? Como construir a escola inclusiva, se, geralmente, professores e alunos são excludentes em suas interações e ferem a ética do diferente. Educar hoje não é mais doutrinar e excluir o diferente, por isso centra-se em um comportamento e uma atitude ética de alteridade; assim busca a superação dos preconceitos em favor da solidariedade e do profundo respeito ao diferente, ao outro. Trata-se de uma ética empática que estabelece relações de inclusão.
Nesse contexto emerge outra categoria básica: a autoridade. Como pode um professor fazer juízo de valor e definir o que é e o que não é? Com que autoridade? Se o seu discurso estiver embasado numa ética reducionista, certamente a sua prática pedagógica de ensino-aprendizagem será excludente do diferente. Todavia, se o seu discurso e vivência tiverem como parâmetro uma epistemologia da ética da alteridade, a sua prática pedagógica será libertadora em relação aos estereótipos, pré-julgamentos, pré-conceitos e exclusão do diferente, pois sua prática será face a face, olho no olho, tendo como resultado o respeito pelo outro como ser humano único e especial. É, antes de tudo, uma questão de paradigmas. Os alunos percebem se o professor é coerente ou não, se está fazendo um bom trabalho ou se é um professor mal resolvido... Fazer uma reflexão e uma auto-avaliação é fundamental para que o professor ou educador possa rever seu discurso, sua postura ética e conseqüentemente sua prática pedagógica. A coerência entre teoria e prática é fundamental na educação. O grande desafio é formar uma consciência crítica "autoconsciente" e "alterconsciente", e estabelecer uma coerência entre a epistemologia da ética da alteridade e a prática desta ética no cotidiano das relações interpessoais, seja dentro da comunidade escolar ou na própria vida. Desse modo, vem à tona a questão da autonomia e da "heteronomia".
É indiscutível o fato de que vivemos na companhia de outras pessoas e não sozinhos. A realidade é este mundo material, onde criamos a linguagem, a ética, a moral. Quando o outro se revela através do rosto e da linguagem, cabe-nos conservar ou rejeitar esta exterioridade. Esta forma do outro buscar o meu reconhecimento, de manifestar-se de maneira incógnita Lévinas (1997) chama de "enigma". Nessa perspectiva, todo falar é enigma, que diz respeito à subjetividade, abertura original ao outro, base da ética da alteridade na relação professor-aluno e aluno-aluno. O outro nos impõe a necessidade de uma "alterconsciência" que não subjuga ou anula a autoconsciência; essa consciência do outro impõe a ética da alteridade como filosofia primeira, pressupondo uma relação ou inter-relação norteada pelos princípios do diálogo e da reverência. A ética da alteridade condena a segregação, a exclusão, os pré-conceitos e pré-juízos, e contempla o acolhimento do outro, a solidariedade, a diversidade e a justiça, não apenas como um discurso retórico, mas como atitude moral de comprometimento com o diferente, incluindo nesta classificação a nós mesmos, e conseqüentemente com outro, sujeitos totais. A ética da alteridade tem seu pressuposto fundamentado na heteronomia sem a exclusão da autonomia. Assim, o que importa é a relação ética que fundamenta as ações e o comportamento diante do rosto de outrem e dele para o nosso. O rosto do outro, do excluído, é grito e súplica, e é ao mesmo tempo manifestação ética e exigência ética. O rosto do outro nos convoca à alteridade na qualidade de filosofia primeira. E como filosofia primeira, a alteridade se manifesta na ética em sua mais pura essência e forma. A educação como direito humano, independente do local de residência, é uma verdade absoluta.

MATERIAIS E MÉTODOS
A investigação apóia-se em Souza (2008) no que se refere aos conceitos operativos de biografização, experiência e modos de narração na formação de professores. As entrevistas já foram realizadas e as narrativas já se encontram transcritas. Na análise preliminar do material obtido a partir de diálogos construídos sobre a formação, a partir das lembranças de escolarização das professoras em processo de formação construído ao longo da vida, emergiu de imediato a categoria: alteridade; nesse sentido a entrevista narrativa funciona como aprendizagem, a partir da reconstituição de sua trajetória pessoal, onde o sujeito relata experiências, tendo como pressuposto teórico-metodológico que tornar-se professor é uma aprendizagem continua.
Para Souza (2008) a biografização é um trabalho biográfico que partilha experiências formativas na vida-formação, engloba formas mentais, verbais, comportamentais, centrada no social e em histórias onde os indivíduos se inserem. Assim, supõe que a produção dos modos de vida cotidiana se encontra nas histórias de vida e nos modos de narração. Recordar a própria vida é fundamental para nosso autoconhecimento, fortalecendo ou recapturando a autoconfiança. A formação é um aprendizado ao longo da vida e as histórias de vida/entrevistas narrativas marcam aprendizagens da vida pessoal a profissional. As referências contidas nas entrevistas narrativas e nos modos de formação revelam formas para compreender a formação, os saberes e as aprendizagens da profissão, por conterem experiências de vida e da sua formação.
Segundo Josso (2008), existem tanto territórios acessíveis quanto invisíveis nos quais as representações simbólicas dão sentido, como topologias experienciais. Os relatos de vida centrados na formação estão, geralmente, associados a questões de pertencimento e, por conseqüência, questões de identidade. Os relatos de vida, centrados sobre a perspectiva das experiências formadoras e fundadoras de nossas identidades em evolução, de nossas idéias e crenças mais estabilizadas, de nossos hábitos de vida e de ser com relação a nós mesmos, aos outros, ao nosso meio humano e natural, têm essa particularidade de serem territórios, por vezes tangíveis e invisíveis.
O trabalho de pesquisa a partir dos relatos de vida, efetuados na perspectiva de evidenciar e questionar heranças, continuidades e rupturas, projetos de vida, múltiplos recursos, ligados às aprendizagens da experiência etc., caracteriza-se pela reflexão, a partir de uma descrição da formação de si permite ter a medida das mutações sociais e culturais nas vidas singulares e relacioná-las com a evolução dos contextos de vida profissional e social. A pesquisa coloca em evidência a exigência metodológica de pensar as facetas existenciais da identidade com uma abordagem multirreferencial que integra então os diferentes registros do pensar humano (crenças científicas, religiosas, esotéricas).
Conforme Josso (2008) o trabalho de reflexão, a partir de uma narrativa de formação de si, permite ter a medida das mutações sociais e culturais em vidas singulares e relacioná-las com a evolução dos contextos de vida profissional e social. A história de vida narrada é, assim, uma mediação de conhecimento de si em sua existencialidade, que oferece à reflexão de seu autor oportunidades de tomada de consciência sobre seus diferentes registros de expressão e de representações de si, assim como sobre as dinâmicas que orientam a formação.
Passeggi (2008), fala da relação com o corpo e com a sensorialidade na história de vida: por uma abordagem somatopedagógica do acompanhamento, para o que recorre a Jeanne-Marie Rugira. Questiona o lugar da relação com o corpo e com a sensorialidade, na perspectiva do acompanhamento e no seio de um processo de pesquisa-formação em intervenção psicossociológica. Assim, a relação com o corpo constitui-se um pilar incontestável dos processos de formação e de criação coletiva do sentido, do conhecimento e da saúde; a relação com o corpo restitui nossas capacidades de aprender, adaptar e reagir. Portanto, desenvolver as competências perceptivas e de atenção para aprender, compreender e agir torna-se inevitável em um procedimento experiencial utilizado nas práticas biográficas. Nesse contexto fala da atenção à percepção como um trajeto formador entre o ver e o agir na intervenção psicossociológica. Formar, intervir ou fazer pesquisa em psicossociologia consiste em percorrer caminhos que vão de possibilidades em possibilidades, caminhos que levam ao desvelamento do sentido por meio da aprendizagem da atenção, da percepção, da reflexão, do diálogo e da compreensão de si, dos outros e do mundo. Para acompanhar as pessoas trabalhando no processo de mudanças, é preciso aprender e formar-se para ver (apreensão visionária da atividade).
A metodologia da pesquisa adotada no projeto tem levado pesquisadora e bolsistas de iniciação científica a aprender a compreender uma subjetividade em ato, com algumas condições pedagógicas. É uma oportunidade de se perceber diferentemente, de compreender os outros de uma maneira verdadeiramente renovada, sobretudo, constantemente renovada. É assim graças à reeducação da atenção, o aprendente vai melhor ver, ouvir, perceber e captar elementos que até então não estavam acessíveis à sua consciência, porque não eram percebidos. A pessoa vai descobrir uma melhor escuta, uma observação mais aguçada e, sobretudo, uma relação com seu corpo que não suspeitava. Penetra numa esfera de atividade subjetiva desconhecida, da qual estava privada. Descobre que existe em seu corpo. Esse projeto de reeducação implica para o professor o esforço para fazer tudo para despertar, mobilizar e desenvolver a atenção dos seus estudantes. Desse modo rompe com a atitude de abordar a realidade de sua experiência; essa educação da atenção somente é possível de fato se o estudante for colocado em condições extracotidianas, porque são não-naturalistas, porque não se parecem de forma alguma com aquelas da vida corrente. È através desse quadro extracotidiano que a pessoa aprende a captar em tempo real na sua experiência a articulação entre o sentir e o pensar, quer dizer, a interação recíproca entre a percepção e o pensamento. Começa-se então a aprender a deixar-se pensar ou deixar-se refletir em vez de pensar ou refletir a propósito de um conteúdo particular cuidadosamente escolhida.
De fato, a ação e a interação no cerne do trabalho biográfico representam um caminho para sentir-se e compreender-se. O procedimento biográfico passa por uma pedagogia corporificada. Uma prática que visa à relação do sujeito com sua experiência, seu projeto e seu processo. A relação com o corpo sensível e a atualização das capacidades de atenção, perceptivas e reflexivas constituem as condições prévias à enunciação biográfica. A relação com o seu corpo e com o movimento interno é o suporte primeiro do processo de transformação e de prática biográfica na formação, na pesquisa e na intervenção. A relação com o corpo dá uma consciência em movimento. Uma consciência que traz em si um potencial de percepção, de ação, de qualidade de expressão que pede apenas para se manifestar, bastando que uma atenção treinada se detenha sobre ela.
Nesse sentido, o mover no coração da ação e do diálogo é uma via para compreender e se compreender. Segundo Ricoeur (1995), o corpo é o lugar onde habita e se exprime esse grande querer, que não é fruto de determinismos. Ele é movido pela vontade a qual o anima e guia nas decisões. Ou seja, uma forma de vontade em movimento, uma vontade que move o corpo que age: moção voluntária provocada por um querer mestre de seu corpo; corpo que motiva o querer se possui esse corpo. A vontade anima o corpo e baseia o agir pensado. A perspectiva biográfica sempre teve uma dimensão autocompreensiva e uma dimensão intercompreensiva.
A abordagem biográfica permite, nos dois sentidos do termo, "conhecer com a experiência". Para PASSEGGI (2008) o sujeito é considerado sujeito "ator de sua vida", construindo seus conhecimentos e suas representações em resposta às situações problemáticas encontradas. A via privilegiada é a da sua apropriação da capacidade de produzir sentido, interrogando-se sobre si mesmo e sobre a sua situação, via trabalho reflexivo, permitindo-lhe o trabalho de narração e de troca a partir de sua história pessoal.
Bourdieu (2001) levantou questões de maneira bem fina: na "ilusão biográfica", interroga-se sobre a pertinência da abordagem histórias de vida, sublinhando o fato de que os atores sociais estão, geralmente, cegos em relação às determinações sociais que agem sobre eles e à necessidade de encontrar novas formas de intervenção para tentar melhor compreender os problemas de violências individuais, coletivas, organizacionais e societais com as quais estamos, atualmente, confrontados. É provável que práticas sociais utilizando a abordagem biográfica em grupo, apoiando-se em referenciais pluridisciplinares e abarcando, em boa parte, o co-investimento dialético entre participantes e pesquisadores-facilitadores possam contribuir eficazmente para uma análise e consideração de certas manifestações atuais da violência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como resultados parciais da investigação já se identificam na política pública estudada na área da educação do campo, nas práticas e representações dos professores e professoras das escolas do campo, sinais da ausência da alteridade no seu âmbito, mas de presença no seio do corpo docente (práticas e representações), um dos elementos imprescindíveis à superação da dicotomia cidade/campo e garantia da educação como direito humano, de modo a contribuir para o desenvolvimento científico, tecnológico e social do estado, da região e do país em favor do sujeito de direitos.
Certo dos limites da pesquisa e do seu caráter não conclusivo, até pela inviabilidade de contemplar todos os questionamentos que o desenvolvimento do tema tem feito emergir, pretende-se seja ela um referencial modesto, mas significativo que possa vir a representar ponto de partida para outras investigações, no sentido de elucidar as questões pertinentes à educação inclusiva, especialmente sobre a educação do campo, considerando sua função social e política, bem como as concepções político-pedagógicas vigentes nessa área. Dentre os resultados parciais já apresentados deste Projeto de Pesquisa destacam-se, além desta comunicação e do pôster que a bolsista de iniciação científica estará expondo nesse encontro de pesquisa, reuniões com os órgãos oficiais, IES locais e organismos da sociedade civil organizada que lidam com a questão da educação do campo; palestras sobre o tema em encontros promovidos pela UNIT e/ou pelos órgãos gestores da educação do campo; cursos e/ou minicursos sobre a temática da pesquisa e/ou sobre a metodologia qualitativa adotada bem como relatórios parciais da pesquisa e contínua socialização dos resultados junto aos sujeitos da pesquisa.
A expectativa em termos de produtos deverá alcançar progressivamente a socialização ampla dos resultados junto à agência financiadora, ao Conselho Estadual de Educação, ao Comitê Executivo Estadual da Educação do Campo e Prefeituras Municipais.

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