A UNIVERSIDADE E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE LETRAS

Jocifran Ramos Martins

Resumo: Este artigo tem por objetivo propor uma reflexão sobre a dificuldade da Universidade em formar professores de Língua Portuguesa fomentadores da leitura e da escrita. Para tanto, busca explicações na maneira como é conduzida a formação dos futuros docentes, que, eivada de um tradicionalismo estéril ou consoante com os anseios da nova escola, vai ser reproduzida no futuro, quando da ação profissional de seus alunos.

O pensar, o refletir e o analisar para entender o que e como se apresenta um dado aspecto da realidade é típico da racionalidade do ser. E o que se propõe realizar aqui é uma reflexão sobre uma dada problemática que, longe da pretensão de verdade, busca-se, sim, por à luz inquietações suscitadas por observações assistemáticas, o que, nem por isso, devem ser invalidadas a priori. Para reforçar esta ideia, que sejam pensadas as palavras da professora Délcia Enricone: “Quando analisamos qualquer atividade humana, realizamos uma tarefa reflexiva que, por ampla e generalizada, pode ter focos destacados que não invalidam nem desconhecem outros igualmente ou até mais importantes.” Se pensarmos diacronicamente a educação formal, vê-la-emos sempre atrelada ao Estado, como um de seus aparelhos e, portanto, contribuindo decisivamente para a manutenção da organização social vigente. E essa educação, em qualquer dos seus níveis, do fundamental ao “superior”, ao repassar às gerações a ideologia implícita nas pedagogias e currículos adotados, está simplesmente contribuindo para cristalizar no inconsciente das massas o modelo social de que faz parte como divulgadora. É a educação reproduzindo a sociedade, e a sociedade produzindo para sua reprodução, segundo a visão marxista da análise de Althusser. Porém, em se tratando de Universidade, esta concepção de educação deve ser abandonada (ainda que este exercício não se tenha mostrado de fácil execução) para se tentar nova interpretação do que seja o ensino e respectivos resultados. Nesta visão, deve-se conceber a Universidade não como uma mera detentora de um saber que será repassado aos que a procuram. Some-se a isso o caráter de produtora de conhecimento e saber e também “como instância voltada para atender às necessidades educativas e tecnológicas da sociedade” (Parecer CNE/CES, 2001). Mas não deve nunca ser interpretada como mecanismo reprodutor, como “instância reflexa da sociedade e do mundo do trabalho” ( Parecer CNE/CES, 2001). A vida acadêmica, caracterizada pelo trinômio que fundamenta decisivamente o “fazer universidade”: o ensino, a pesquisa e a extensão, deve oportunizar a realização de cada um destes, para que, inter-relacionados, contribuam para o status de excelência da graduação universitária. Ademais, é com este objetivo que se prima pela liberdade de pensamento e expressão, pela análise e interpretação crítica, pela relação dialógica com os conhecimentos já produzidos, pela busca de sua representação/comprovação na realidade vivida, pelas relações possíveis com outras áreas das ciências afins. Assim, pretender-se-á na formação profissionais capazes de recepção, processamento das informações e, a partir daí, de produção do novo. É na produção de conhecimento que se encontra a identidade da universidade. Para se libertar do estigma de “escolão” com fama de ensino superior, é necessário, antes de mais nada, buscar respostas para os problemas e vislumbrar possíveis caminhos. Assim se projeta o modelo social que se pretende e qual o papel da universidade como sua mediadora. A Resolução 1, de 18 de fevereiro de 2002, do Conselho Nacional de Educação, que institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena, prevê : Art. 11. Os critérios de organização da matriz curricular, bem como a alocação de tempos e espaços curriculares se expressam em eixos em torno dos quais se articulam dimensões a serem contempladas, na forma a seguir indicada: I – eixo articulador dos diferentes âmbitos de conhecimento profissional; VI – eixo articulador das dimensões teóricas e práticas. (grifo nosso) Art. 14. Nestas Diretrizes, é enfatizada a flexibilização necessária, de modo que cada instituição formadora construa projetos inovadores e próprios, integrando os eixos articulados nela mencionados. §1º A flexibilidade abrangerá as dimensões teóricas e práticas, de interdisciplinaridade, dos conhecimentos a serem ensinados, dos que fundamentam a ação pedagógica, da formação comum e específica, bem como dos diferentes âmbitos do conhecimento e da autonomia intelectual e profissional. (idem) Apesar da previsão legal, no que se refere especificamente ao curso de Graduação Plena de Letras, cujo objetivo é formar futuros professores que pretensamente irão desempenhar a árdua missão do magistério, vislumbra-se séria lacuna. O que comumente se tem como resultado é um profissional com razoável formação teórica, porém com pouca ou nenhuma habilidade de leitura e/ou produção escrita. E serão esses mesmos profissionais a quem serão confiados os nossos jovens para que os orientem e os despertem para a beleza da palavra escrita, para a combinação delicada das idéias de um texto bem cuidado... Mas eles nada ou muito pouco conseguirão. Se não for exagero afirmar, conseguirão, sim, transmitir aos seus futuros alunos seu enfado, sua insensibilidade ou sua aversão às duas práticas que deveriam ser seus mais preciosos instrumentos de trabalho: a leitura e a escrita. Mas a culpa não é inteiramente deles: o mecanismo de formação a que foram ou estão sendo submetidos não privilegiou estas modalidades, ainda que previstas legalmente. Como resultado de observação direta de quatro períodos do curso de Letras notou-se até este momento que os alunos de graduação, que se preparam para o exercício do magistério, têm suas atividades discentes presas unicamente ao verbalismo teórico predominante, sem vivenciar a proposta satisfatória de uma saudável “aventura” na prática da leitura e da produção escrita. Longe de se tomar esta aventura com a inconseqüência e a irresponsabilidade dos devaneios ditados pelos impulsos, mas como a inovação pensada por Hernandez et al (2000, p29) para quem “Inovação é uma série de mecanismos e processos que são o reflexo mais ou menos deliberado e sistemático por meio do qual se pretende introduzir e promover certas mudanças nas práticas educativas vigentes”. Cabe aqui uma reflexão: até que ponto se chegou ao tratar a leitura e a escrita como inovações em plena era de conquistas tecnológicas impensáveis há cinco mil anos, quando os primeiros rabiscos registravam na argila a passagem do homem sobre a Terra! Somente no primeiro período – Língua Portuguesa I - ensaiou-se uma tímida ação neste sentido, traduzida em exercícios-registro de variação lingüística. Porém, não houve a continuidade necessária e esperada, tendo em vista o propósito do curso: formar professores de língua portuguesa. O esboçado neste primeiro período ficou frustrado nos três seguintes, os quais se centraram na análise – Língua Portuguesa II e III – de aspectos fonéticos e fonológicos, embora se tivesse disciplina específica para tanto (Lingüística I e II), o que resultou, em dada medida, numa repetição desnecessária; em Língua Portuguesa IV, privilegiam-se os aspectos essencialmente teóricos na análise morfológica do ponto de vista das gramáticas normativa, estrutural e gerativa. Mais uma vez abandona-se a prática da língua, como ela se efetiva no dia-a-dia, nos textos da vida. Enfim, nega-se, em certa medida, a realidade que se vai encontrar no cotidiano das salas de aula, como se esta não fosse importante. E neste ambiente, toma forma e nos turva o horizonte uma futura prática docente que tem a Gramática da língua como finalidade primeira das aulas, sem se buscar o necessário equilíbrio. Dessa maneira, o futuro professor, embora eivado de boas intenções, estará fazendo gramatiquice e ajudando a edificar o principal obstáculo para o efetivo aprendizado e devida fruição das possibilidades do idioma. É necessário tomarmos estes dois termos – gramática e gramatiquice - para que se vislumbre bem suas diferenças. Como gramatiquice, estaríamos tomando a Gramática Normativa, autoritária, estéril e artificial por não se ligar à pratica. Como Gramática, a organização intuitiva e necessária aos falantes que fazem de sua língua um eficiente instrumento de comunicação, tornando-a veículo das realidades, por abstrair os fatos e possibilitar aos indivíduos sua análise e conseqüente tomada de posição frente à construção social. Nesse sentido, professor Odenildo Sena (2001, p.690) nos esclarece que: “a gramática parte da realidade lingüística do falante, identificando seus deslizes frente à norma padrão e trabalhando no sentido de que à sua variante sejam acrescidos elementos que se compatibilizem com a norma; a gramatiquice, arrogantemente, oferece ao falante uma verdadeira língua nova, em completa dissonância com o contexto de sua família, de seu bairro, de seu meio”. Estudar gramática não deve, pois, ser a finalidade. Deve-se estudá-la como forma de aprimorar a variante dominada, desenvolvendo-se a sensibilidade das adequações de discurso conforme bem ressalta Bechara (1985, p.13), ao afirmar: “cada falante é poliglota na sua própria língua”. O aprendizado, portanto, está ligado às realidades vividas e ingênuo seria que se pretendesse dissociá-lo sem a antevisão do fracasso na formação do profissional do magistério, especificamente do da graduação de Letras. Ainda segundo Sena (2001, p.61), “É possível aproveitar a produção escrita dos alunos para daí extrair exercícios ilustrativos de que as diferenças básicas entre a sua variante e a variante culta não são radicais.”. Denota-se aí a importância da produção escrita na formação dos futuros professores de Letras. Os alunos, percebendo-se também como autores, estarão tentando um caminho, vivenciando aquilo que pretensamente ensinarão num futuro próximo. Agora, deve-se buscar uma aproximação do real e concreto, a fim de que se construa uma prática profissional que não mais iniba a riqueza latente dos futuros alunos pela preocupação com a sintaxe pura e simples, prejudicando consideravelmente o desempenho lingüístico. Aos professores de Letras, caberá despertar no aluno o gosto pela palavra, principalmente pela palavra escrita. Deve-se fazê-lo ver que ela, a palavra, veículo de cultura, é diretamente responsável pelo construto social e seus possíveis destinos. A este respeito, Bordieu (1983, p.160) é incisivo ao afirmar que “A palavra não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo de conhecimento, mas um instrumento de poder”. E este poder é e será exercido por quem dela souber fazer uso, veiculando e afirmando a ideologia mantenedora da situação vigente. Ao contrário do que ocorre, deve-se preparar o professor para a leitura dos textos da vida, para que desperte em si e que oriente a criticidade dos futuros alunos. Que ele, o professor, seja fomentador do discernimento, que não limite sua prática ao isolamento intelectual puro e simples, que se leiam as “intempéries” sociais e leve seus alunos a fazê-lo também. Que mostre aos seus alunos que não há neutralidade no fazer humano, pois toda ação está contaminada com as ideologias que visam aos objetivos de uma classe, de um grupo social, ou da classe ou grupo social hegemônicos na organização e reprodução da sociedade. Desta maneira, não estaremos sendo e nem levando nossos alunos a se transformarem em atores ingênuos que contribuem para efetivar os projetos de outrem, ou seja, os explorados ajudando decisivamente com sua própria exploração. Fazendo gramatiquice, o professor de Letras estará inibindo o potencial transformador e criador seu e futuramente de seu aluno, como bem exemplificou Sena (2001, p. 35): “Recentemente perguntei ao nosso escritor Milton Hatoun se era capaz de classificar uma oração subordinada substantiva objetiva indireta reduzida de infinitivo. A resposta foi não. Isto não lhe impediu, entretanto, de ter escrito o premiado romance Relato de um certo Oriente e de já ter trazido a público um segundo, chamado Dois Irmãos”. A gramatiquice turva a visão para a realidade em que o aluno-professor bem poderia atuar efetivamente, de modo a transformá-la e não somente absorver passivamente o que lhe é comunicado. É necessária, portanto, uma mudança real e concreta nas ações. Ou seja, deve-se pensar e repensar para onde leva o modelo de formação adotado. Está ou não de acordo com os novos rumos que se pretende dar à escola. Como será o profissional formado dentro destes atuais conceitos? Urge encetarmos desde já a inovação, pois, conforme salientou Luckesi (2001, p 143): Para que a Universidade se concretize, em sua missão fundamental de consciência crítica da realidade, é preciso que cada elemento componente de sua realidade – professor, aluno – assuma postura de leitor-sujeito, de leitor-autor. Ao fazermos esta reflexão, cabe-nos certamente as palavras do professor Celso Pedro Luft para quem (1985, p.26): “O clássico professor de português entende tudo de Gramática, tem tudo o que é necessário para massacrar com nomenclaturas, regras e exceções. Em compensação, escreve mal (quando escreve) e esquece que ensinar a língua é fazer falar e escrever com clareza e eficiência”.

REFERÊNCIAS

BECHARA, Evanildo. Ensino da Gramática. Opressão? Liberdade? São Paulo: Ática, 1985.

BORDIEU, P. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

ENRICONE, Délcia et al. Ser professor. Porto Alegre, DIPURCS, 2002.

RESOLUÇÃO 1, de 18 de fevereiro de 2002, do Conselho Nacional de Educação http://www.mec.gov.br/ene/ftp/CNE/CPO12002.doc site visitado em 25.05.03

LUFT, Celso Pedro. Língua e liberdade. Porto Alegre: L&PM, 1985.

LUCKESI, Carlos Cipriano et alii. Fazer universidade: uma proposta metodológica. São Paulo, Cortez, 2001.

SENA, Odenildo. Palavra, poder e ensino da língua. Manaus: Valer, 2001.