A festa do Natal: reprodução falaciosa ou reconstrução do sentido?

Josias Henrique Comin



"...tudo o que tinha que ser chorado, já foi chorado."
Raul Seixas/Paulo Coelho




Ano após ano nos deparamos com as mesmas mensagens natalinas que vão desde os cartões pré-fabricados aos modelos prontos, encontrados nos inúmeros sites, que abarrotam nossos e-mails e entopem as portas de acesso às nossas redes sociais. Coisa mais sem graça não há!
Mas isto não é nada diante das mensagens que se repetem nos púlpitos de nossas igrejas. Discursos, que chegamos a duvidar da certeza que existe no coração de quem prega, de que esta festa é de fato uma grande alegria.
Há algum tempo, com os estudos avançados de História e Teologia e com a proliferação de "novas" formas de se acreditar e viver a fé em Jesus Cristo, a banalização da data celebrada de seu nascimento ultrapassa a seriedade dos estudos e alimenta a transformação deste evento fundamental em mais uma festa profana.
O mercado agradece quando os cristãos andam mais preocupados com a ceia e os presentes do que com o compromisso que a data quer nos lembrar. Os cristãos, por sua vez, não se sentem ofendidos já que não se tem de fato a certeza histórica da data.
Mas, em que pese as controvérsias da data, é necessário recuperar o sentido da festa e escapar das armadilhas de que a encarnação de Jesus no natal é mais uma invenção católica, ao preço de perdermos de vista o evento maior para o qual ela aponta.
Trata-se da Paixão e Morte violenta e injusta de cruz do homem que um dia foi criança e nasceu no contexto histórico de seu povo, em meio às suas crenças e lutas como outro homem qualquer de seu tempo, mas que não era um homem qualquer.
Mais do que a morte cruenta, é necessário lembrar que Ele ressuscitou e este é um marco que transforma sua presença entre os homens em um evento ímpar na história da humanidade.
A má compreensão do significado da encarnação enfraquece o testemunho e empobrece nossa experiência cristã reforçando nossa ignorância teológica a respeito do movimento que Deus faz em direção a humanidade.

O desejo mimético e o sacrifício de Cristo

O francês René Girard, filósofo e crítico literário, grande pensador de nossos tempos, nos ajuda a compreender o tamanho da obra de Deus em Jesus Cristo. Girard talhou o conceito de desejo mimético revelando que a sociedade humana só poderia existir a partir da criação de um bode expiatório. O homem deseja ser o outro( que é seu modelo) e ter o que o outro tem. Quando se percebe que o objeto de desejo não é o desejo somente de uma pessoa, se instala a rivalidade que, nos seus limites, gera a violência.
Uma sociedade não se constrói e não se funda no caos da violência fratricida, na busca insana de seus modelos. Para que ela se instale e sobreviva, se descobre a necessidade de inventar um culpado (bode expiatório) que concentraria nele todos os sentimentos que conduz à violência para , uma vez sacrificado, "desafogue" as tensões e os conflitos geradores da violência que impossibilita a convivência social.
Estamos, bem a grosso modo , expondo a gênese da sociedade fundada na cultura religiosa do sacrifício, brilhantemente desvendada por Girard que buscou inspiração, entre outras fontes, nos escritos de Shakespeare.
Vale ainda lembrar que, o bode expiatório, depois de sacrificado, deixa de ser culpado e vira herói, um deus que tomou pra si todas as incompatibilidades da convivência social, mitigando a violência. Institucionou-a e circunscreveu-a ao universo do sagrado.
Mas seria a mimese uma condição humana ou uma rejeição da graça revelada em Jesus cristo?
Esta pergunta é oportuna quando percebemos a violência presente no mundo mesmo depois do sacrifício de Jesus. Quando nossas festas de natal, longe de representar a simplicidade e as implicações de um Deus que se torna humano, continuam sendo a festa de quem pode e de quem tem, alimentando uma leitura falaciosa da alegria que envolve o evento e camuflando a violência que não mais se restringe ao universo dos sacrifícios religiosos, mas habita o mundo dos homens em todos os seus meandros e com todas as suas nuances.

A lógica de Deus não é a lógica do mercado

Em Jesus, Deus supera a lógica dos sacrifícios cruentos para o equilíbrio social, pois se oferece como vítima inocente e o que emerge desta gratuidade não é o armistício, mas o rompimento com esta mesma lógica que, ainda hoje, continua a exigir sacrifícios.
Mas qual seria a diferença entre os sacrifícios do desejo mimético e o sacrifício de Jesus?
Para um melhor esclarecimento, citamos Júlio de Santa Ana, na obra de Benedito Ferraro, grande professor e assessor das comunidades de base no Brasil:
"...o primeiro é vitimário. O segundo é martirial. O primeiro preserva a iniqüidade do sistema. O segundo tem uma dimensão redentora". Um se impõe como obrigatório, o outro é gratuito, fruto de uma opção pelo amor.
Exemplos do rompimento com esta lógica, em sua vida não faltam:
"...vire a outra face...";"...a César o que é de César...";"...perdoe setenta vezes sete...".
Nesta perspectiva, os sacrifícios continuam a produzir seus bodes expiatórios no tempo presente, sejam os excluídos do acesso à tecnologia dos computadores e da internet ou os pobres que nem mesmo teto ou emprego têm.
Todos os seres humanos que são impedidos de ter ,ao alcance de suas possibilidades, condições materiais, psicológicas e espirituais para se dignificarem como filhos e filhas de Deus, são os sacrificados da nossa sociedade, cujo sangue é a indelével tinta da caneta com a qual assinamos nossa negação do presente de Deus.
Não romper com as injustiças do sistema econômico-político-social no qual vivemos é , na melhor das hipóteses, omitir o real significado da visita de Deus à humanidade através de Jesus. Na pior das hipóteses, é acreditar que todos os anos Jesus nasce , morre e é celebrado apenas como mais uma vítima entre tantas outras na história que são culpadas de nosso egoísmo e de nossa inveja.Precisamos acreditar que exista alguém ou algo melhor que nós mesmos, que o nosso mundo e que carregue consigo nossa frustração.
Perdemos a oportunidade de aceitar a tarefa profética de transformar nossa realidade através deste testemunho de amor. De inverter a lógica estabelecida que continua a fabricar sacrifícios . De virar a outra face, de buscar os pequenos, de acolher os estrangeiros,de cuidar dos enfermos , de dialogar e respeitar o diferente, de se alegrar com as pequenas coisas.
Enfim, ano após ano, perdemos a oportunidade de celebrar a paradoxal grandiosidade e singeleza do Natal.
A festa do nascimento de uma criança que, na ternura do colo de sua mãe, anuncia ao mundo de todos os tempos que o único sacrifício válido e verdadeiro já foi oferecido e que , a verdadeira alegria do Natal,se experimenta na construção cotidiana de relações que resgatem a dignidade humana, agradecendo ao presente que Deus nos faz quando se torna Emmanuel, quando vem morar em nossa carne e experimentar nossos limites.

Feliz Natal!

Referências

Assmann,Hugo(org),"René Girard com teólogos da libertação ? um diálogo sobre ídolos e sacrifícios", Petrópolis: Editora Vozes e Piracicaba: Editora Unimep, 1991.

BIBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus. 3ª impressão. 2004.

Ferraro,Benedito, "Cristologia em tempos de ídolos e sacrifícios", São Paulo, Paulinas, 1993.