Caronte, o barqueiro das moedas

     Caronte, filho de Érebo e da Noite, era um deus velho, mas imortal. A sua função era transportar para além do Estige e do Aqueronte as sombras dos mortos em uma barca estreita, feia e de cor fúnebre. Era não somente velho mas também avaro; não recebia na sua barca senão as sombras daqueles que tinham tido sepultura e que lhe pagavam a passagem. A soma exigida não podia ser menos de um óbolo nem superior a três; por isso os parentes punham na boca do defunto o dinheiro necessário para pagar a sua passagem.

      Da série, “senta que lá vêm histórias...” chega-se à mitologia grega, com um fato que marcou a vida muitas gerações: Caronte, filho da noite,  um deus velho e imortal. Sua função era transpor para o além desta vida aqueles terminavam a sua jornada na terra.

      Os que ali chegavam precisam estar habilitados, como nos dias de hoje, tinha um preço: uma moeda em cada olho, ou em situações mais adversas, uma na boca. Ali residia o sentido das moedas nos olhos: uma garantia de que tudo o que vira durante a vida física seria preservado, ou pelo menos protegidos para quando atravessassem o longo e caudaloso rio que separava os dois mundos; a moeda na boca, de lavor menor já que era uma apenas, garantia que as palavras proferidas ao longo da vida terrena seriam preservadas para uso futuro, de forma segura o suficiente para que a nova e eterna vida fosse mais confortável, menos duvidosas, mesmo perigosas...

      O lado prático das moedas, para o avarento barqueiro, o Caronte, era o seu pagamento: tem dinheiro usa a barca, tem não fique por aí vagando no lamaçal, que no mundo dos espíritos seria o umbral, à mercê da sorte. No espírito das analogias, vamos deixar o mundo mitológico Caronte,  que não recebia na sua barca senão as sombras daqueles que tinham tido sepultura e que lhe pagavam a passagem, com as moedas ali postas pelos parentes cuidadosos para garantir a travessia.

       Aqui, esses parentes cuidadosos, pais, responsáveis, educadores, orientadores têm tido esse compromisso para com a criança do hoje, adulto que fará a travessia onde é preciso um salvo-conduto, um passaporte, um diploma ou certificado de que todas as etapas de aprendizagem foram realizadas com êxito? Não entra no mérito o fato de que os pais precisam preparar a criança para o futuro.

       Eles têm feito quando a trata com carinho, quando lhe garante a proteção, a segurança e o sustento. Mas pela avalanche de dados novos e tecnologias cada vez avançadas que se assoberba sobre as famílias, disputando espaços e competências, o quadro se complica: em casa, os pais dizem o que deve ser feito, mostram como deve ser feito, acompanham reações, atitudes e comportamentos ajustando-os à idade e circunstâncias. Determinam o que precisa ser observado, monitoram o vocabulário, disciplinam a postura diante dos outros, os brinquedos que devem usados, os equipamentos que podem ser acessados, os valores que precisam ser respeitados. Os pais precisam sair para trabalhar. Os sites, os vídeos, youtubers, jogos e filmes são encantadores de serpentes, imagine-se de crianças...

         Deveres feitos, tarefas cumpridas, brinquedos guardados, a criança, como todas as outras, acessa canais e meios eletrônicos impostos pela modernidade. Ali, tem de tudo: pornografias, termos chulos, cenas chocantes, afetos insidiosos, danças insinuantes, gestos obscenos, espertezas ilícitas, lições de personagens que se dão bem em tudo...  A nossa criança, protegida e bem formada pelos pais cuidadosos, está consciente do que é correto e do que os seus pais certamente não aprovarão. Mas essa mesma criança tem que sair de casa, precisa se socializar, e para ficar no politicamente bem aceito nos seus grupos, precisa “trolar” com o mesmo linguajar daquelas crianças que não tiveram nenhum limite em casa, nenhuma orientação na igreja, agem livremente a partir do que aprenderam nas redes sociais repletas de armadilhas que anulam quaisquer possibilidades de uma educação formadora.

        Surge o impasse: se eu for “certinho” serei careta, se eu não seguir o nível que eles querem, serei isolado no grupo, se eu brincar de bonecas, minhas amiguinhas vão me chamar de boba, se eu não sei dançar como adulta, serei tida como alienada, se eu disser que nunca namorei, aos 10 anos porque meus pais disseram que criança não namora, serei tachada de “diferente”, de “estranha”, o melhor é entrar na onda, para ficar bem na fita: pintar  e bordar, falar palavrões, burlar na escola, queimar aulas, omitir informações importantes que resultem em punição ou disciplina... Se o menino, vai à igreja, porque sua família age assim, será visto de forma estranha por aqueles cuja família não vivem essas prática. Para ele, ou omite que vai, ou evita ir para não ter que ser julgado como carola, beato... Quanto mais palavrões o garoto sabe e usa, melhor ele é visto pela turma de amigos que estão sendo criados sem o rigor e o limite necessário a uma boa formação.

    "Minha filha tem vergonha e usar um laçarote no cabelo porque tem sido achincalhada por colegas que a chama de “bebê”, que não cresceu...Ela tem somente 10 anos, a escola precisa trabalhar esses valores com as crianças dizendo-as que é preciso viver a infância, a escola precisa realizar palestras sobre isso, etc, etc". A escola passa a ser responsável pela formação dessa criança, porque os pais trabalham?  Ou declaradamente a educação da família está sendo terceirizada para a escola? Que seja, até porque a escola é um espaço próprio para se discutir a formação de valores. Mas ali, não deveriam ser trabalhados os conteúdos programáticos do currículo formal de aprendizagem? A educação não deve acontecer no berço?

      Voltando à mitológica história que iniciou esta reflexão: que moeda será colocada na boca ou nos olhos da criança de hoje, para fazer a transposição dos “rios” que a vida lhe imporá? Que valores serão entregues, impostos, passados, ensinados como forma de tornar a criança preparada para os desafios que, se não tratados de forma madura e segura transformar-se-ão em problemas de difícil solução?  Caronte repelia impiedosamente as sombras daqueles que haviam sido privados de sepultura, e deixava-as errar durante cem anos sobre as margens do rio, onde em vão estendiam os braços para a outra margem.

        Na analogia com essa sombria história, a sepultura, lugar limitado, próprio para conter restos morais de quem um dia foi livre para fazer escolhas e ter um fim previsto, pelo menos seguro. Na sua luta diária pela manutenção de sua família, houve essa delimitação de meios e cristalização de fins para cada atitude, para cada, lição, para cada ensinamento, para cada rebeldia, ou contestação de limites? São questionamentos que só podem ser respondidos por aqueles que se comprometeram com a vida presente, em preparar o homem do futuro.

       Na história, consta que o barqueiro mitológico foi severamente punido e exilado por muito tempo, nas profundezas do Tártaro, por ter “quebrado o galho”, permitindo que Hércules fizesse a passagem na sua barca, sem que esse deus estivesse munido do valor simbólico que o tornaria digno de fazer a travessia, materializada na história, como as moedas, identificadas no nosso posicionamento, como valores inalienáveis ao caráter justo daqueles que se formam a partir de exemplos, lições, limites e orientações que compõem o grande mister de um pai. “Onde estão sendo formados os pais de hoje”?. Burlar a vigilância de Caronte, na vida real e atual é o mesmo que simular uma construção feita com quaisquer materiais, uma formação a partir de quaisquer valores, regras e determinações que valem por um testemunho, por um exemplo, por uma lição perene de fatos que formam, informam, conformam transformam e preparam para a inevitável travessia da vida de criança-aprendiz-aluno, para a vida adulta, cidadã, responsável capaz de perpetuar tudo aquilo que será mantido nas próximas gerações.

       Caronte: “Esse piloto dos Infernos é representado como um velho magro, grande e vigoroso; os seus olhos vivos, o seu rosto majestoso e severo, têm um cunho divino; a sua barba é branca, longa e espessa; as suas vestes são de uma cor sombria e manchadas do negro limo dos rios infernais; ordinariamente representam-no de pé sobre a sua barca, segurando o remo com as duas mãos”.

    Os pais de hoje: Esses heróis do dia a dia da era, onde a tecnologia assume o comando de tudo, e parece atropelar todas as emoções, todos os sentimentos em nome de uma inteligência que fica em um “HD” externo, insensível, eletrônico, que aos poucos tornou atrofiado o sentido de percepção que as crianças cultivam tão bem. Esses pais ficam divididos entre o agir em nome de sua convicções ou delegar que a modernidade forme seu filho. Vítimas de um processo social em que vale mais o ter, em detrimento do ser, os pais e educadores se sentem, vezes por outras, impotentes quanto à forma de aferir limites e tomar decisões. Mas os tempos são outros, as crianças mudaram, a velocidade da luz não é mais medida por intensidade, mas por amperes, por aplicativos, por mega-bites, pela robótica e, muito raro, respeito, sentimento, o outro, a vida, os desafios, os limites, os “Caronte” representados pelo tráfico, pela influência das drogas, do sexo fácil, da banalização da morte, do viver perigosamente, da depressão, como resultado do não saber lidar com o ”não”.

      As crianças: perdidas entre a beleza que a vida as presenteia e as lições que o mundo dos equívocos apresenta, julgam que o novo é o melhor; os valores, são ultrapassados; os pais, amiguinhos de confidências; a escola, um lugar cheio de regras e cobranças; as igrejas, um festival e simulações; a música, uma explosão de excessos; a poesia, cafonice; a família, algo do passado... Como enfrentarão  Caronte?

      Estamos procrastinando e assumindo a condição de rendidos diante a vida, colocando em cheque, quem serão os futuros juízes, os futuros gestores, os futuros detentores de um legado tão valioso com a vida. Quando se afirma de forma genérica “”estamos” usa-se a perspectiva de que quando um age, muitos pagam pela sua ação. Quando alguém deixa de cumprir o seu papel, muitos outros têm que responder pela omissão daquele. A unidade é a medida em que a vida nos coloca: somos todos um: uma criança má formada, uma sociedade comprometida com a qualidade plena do seu papel. Se, de repente, faltarem passageiros para  a barca de Caronte, o lado de cá vai ficar superlotado de mortos-vivos, o rio da vida perderá o seu papel, não haverá futuro além daqui, além do hoje, e quem sabe, em um tempo perdido nas galáxias, alguém encontrar um elo perdido da história de Caronte, nós do século XXI sequer teremos registros de que por aqui passamos, ou algo fizemos pela formação de crianças que foram postas em nossas mãos para as travessias da vida.

  • Sebastião Maciel Costa