AQUIETAR

Maria Eunice Gennari Silva

 

Do ouvido direito não se ouve nada. Do esquerdo é possível ouvir sons, mas sem compreender, com clareza, as palavras. No entanto, prestando atenção no movimento da boca, aprende-se a decifrar e ouvir o que não se escuta.

Algumas palavras, dependendo do som que sai da voz e da dicção, facilitam a compreensão do que foi dito. Por isto, é que este som tem tudo a ver em como são pronunciadas as sílabas de cada palavra, para que elas cheguem até o ouvido de forma limpa. E, assim, mesmo só decodificando uma ou outra palavra, a frase aparece frente aos olhos, como um outdoor que chama atenção bem antes de se aproximar dele. Pronto. Ouve-se o que, certamente, não teria como escutar.

Isso pode parecer confuso para alguns, mas, na verdade, creio que é real na vida de muitos surdos e para quem passa a conviver com a perda parcial auditiva. Diante desta realidade, há uma definição que caracteriza um perfil muito especial neste universo - o surdo oralizado. Ele não quer a linguagem de sinais, nem aparelhos e nem intérprete de Libras. Que fique claro, da minha parte, nada contra com quem prefere utilizar todos estes recursos.

O surdo oralizado apenas quer continuar utilizando da facilidade com a leitura, porque ele é familiarizado com a sua língua, o seu idioma. Ela é a sua base linguística, o seu alicerce na escrita e na fala. Então, ele aquieta e vai aprendendo a viver na mansidão, e, quando necessário e oportuno, no silêncio da sua surdez.

Só que, para aquietar, ele precisa estar em uma posição confortável, que lhe dê uma visão privilegiada para ouvir e compreender o outro que, enquanto fala, também o respeita. O respeito, aqui, significa falar calmamente e sempre voltado para o surdo oralizado – é o olho no olho que leva o som para quem sabe como quer ouvir. Há uma troca de gentileza.

O surdo oralizado ouve sem precisar, na maioria das vezes, da audição para ser comunicado. A palavra tem um propósito definido na sua vida, porque ele lê e escuta ao mesmo tempo em que os olhos joga a palavra para a sua mente. E mais, quando a escreve ele aprende o seu movimento silábico para ouvir na leitura labial. 

Muito doido, mas é fantástico!

Estas observações foram verificadas em um aprendizado ao longo de mais de 30 anos. E só foi possível aprender porque, primeiro, ouvi e li, continuamente, a respeito da palavra Aquietar. Mas por que?  Porque a perda auditiva de forma gradativa pode ser assustadora e angustiante, além de provocar ansiedade para resolver o que já está resolvido.   

A primeira vez que fui na otorrinolaringologista, para ouvir dela o porquê que, cada vez mais, não escutava bem ou não entendia o que as pessoas me diziam, após as devidas explicações e resultado dos exames, ela foi taxativa: Gradativamente você vai ficar surda, mas tem alternativas para seguir em frente.

Ótimo. Saí de lá decidida a buscar estas alternativas, mas contando que elas estivessem próximas de uma qualidade de vida que desse continuidade à alegria de viver. Aquela alegria que permanece. Que não é interrompida pela tristeza que passa, que atravessa no tempo. 

Pensando muito a respeito, cheguei à conclusão de que lidar com uma possível surdez, total ou parcial, era fácil, principalmente, para quem crê na força que vem do alto. O difícil e desagradável era responder aos que tentavam, gritando, te convencer de uma tristeza eterna, com frases do tipo: Que pena! Eu soube que você está surda. E aí, era preciso também, responder em alto e bom som: Eu não estou surda. Eu estou ficando surda. E até ficar, e se ficar, quero seguir esse caminho em quietude, ouvindo na medida em que posso ser e fazer como surda ou quase surda.

Por outro lado, desde o início houve uma outra prioridade nesta luta, a de manter a boa relação que sempre tive com a música. Consciente da perda auditiva e sem a possibilidade de revertê-la, confesso que foi a minha maior preocupação, ou melhor, tive medo. A ideia de ficar surda e não mais ouvir música tomou conta do meu pensamento ao sair do consultório até chegar em casa. Como não faz meu gênero ficar massageando problema e, muito menos, adiar solução, não tive dúvidas quanto a quem recorrer. 

Na Sua total dependência, continuo pedindo a Deus que não me tire a alegria de ouvir música. E como um Pai que conhece o coração da filha e, por isso, tem prazer em presenteá-la, vou escutando todas as músicas que fazem parte do bom gosto para o meu ouvido. Nem pergunto por que isto acontece. Só aquieto e recebo, porque sei onde e como Ele quer me levar.

Hoje, muito mais surda, com menor entendimento do que se fala comigo e maior compreensão da leitura corporal afetiva, o verbo aquietar fala aos meus ouvido em todo tempo.

 

“E ele, despertando, repreendeu o vento, e disse ao mar: Cala-te, aquieta-te. E o vento se aquietou, e houve grande bonança.” Marcos 4:39