PAUL DALA ROSA SANTOS PINTO DA CUNHA

 

 

 

Resumo

 

Este estudo busca tratar o assunto da alteridade como um atributo essencial ao ser humano que, estando imerso em uma sociedade específica, se vê desafiado a conviver com o diferente, a despeito das influências a ele impostas desde a sua formação. Assim, faz-se necessária uma ética que perpasse toda a vida deste ser. Ética esta que será aqui estudada especialmente sob uma ótica Latino-americana, na tentativa de se evidenciar a identidade própria desta cultura, tão marcada pela dominação Européia, e que por vezes se vê como um valor secundário, descendente de outra cultura mais autêntica, sendo esta sua principal e indispensável referência. Com isso demonstraremos a urgência de uma libertação do “ser” Latino-americano, principalmente em vista da responsabilidade para com sua história e cultura, ainda que pautada no respeito com as outras sociedades, mas que não pode abster-se de sua essência. Por fim propomos um ideal de sociedade, fundamentada no amor-de-justiça, tendo como base características fundamentais como a Erótica, a Política e a Pedagógica, encontradas no ser humano.

 

Palavras-chave:

1 - Alteridade

2 - Analética

3 - Libertação

4 - Eticidade

5 - Justiça

 

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

 

 

Introdução..........................................................................................................................09

CAPITULO I: Exterioridade como reconhecimento do outro...............................12

1.1 A exterioridade metafísica do outro..............................................................12

1.2 Exterioridade e dignidade humana na América Latina..............................14

1.3 A razão do outro, a “exterioridade” e a comunidade de comunicação ...............................................................................................................................................15

1.4 Ensaio sobre a exterioridade meta-fisica do outro em E. Levinas   segundo Dussel..................................................................................................................17

1.5 A exterioridade como reconhecimento no face-a-face..............................21

1.6 O outro, o bem comum...................................................................................24

1.7 Exterioridade como transcendentalidade....................................................28

1.8 A exterioridade Metafísica do outro..............................................................31

CAPITULO II: A metafísica da alteridade...................................................................33

2.1 Totalidade como sistema totalizante............................................................34

2.2 A liberdade fundada na alteridade como a afirmação da exterioridade.......................................................................................................................35

2.3 Alteridade da finitude por determinação eletiva.........................................39

2.4 A Escuta como fator fundante.......................................................................42

2.5 Alteridade como mediação: Erótica, Pedagógica e Política ....................43

2.5.1 Erótica................................................................................................44

2.5.2 Pedagógica.......................................................................................47

2.5.2.1 Libertação Pedagógica....................................................51

2.5.3 Política...............................................................................................52

CAPITULO III:  Para um ethos na América Latina..................................................57

3.1 Eticidade de um fundamento........................................................................57

3.2 A modernidade como Totalização...............................................................58

3.3 O bem ético como justiça.............................................................................60

3.4 A consciência ética como ouvir a voz do outro.........................................62

3.5 Do ethos à ética meta-fisica latino-americana da libertação...................63 

3.6 A liberdade fundada na alteridade como mediação da ética..................65

3.7 Para um Ethos da Libertação latino-americana........................................69

3.7.1 O Ethos Da Dominação..................................................................69

3.7.2 Ethos Da Libertação........................................................................70

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................73

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................75

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

Observamos que a sociedade contemporânea é o resultado de séculos e séculos de presença do ser humano no mundo, convivendo em lugares distantes, em grupos heterogêneos, cada qual com um tipo de cultura, de costumes e línguas. Em nosso caso, vivemos inseridos em uma realidade toda própria, a Latino –americana, marcada por uma série de contrastes e belezas ímpares, diferentes de qualquer outra região do mundo. Uma cultura que foi se formando no decorrer de muitos anos, e que foi construída à base de muito sofrimento e exploração por parte de seus colonizadores, onde o homem latino, a partir de sua realidade, começou a refletir sobre os valores e anseios que lhe eram próprios

 

 

 

Podemos constatar que, em nossa história, vivenciemos ‘fases’, nas quais o homem começou a pensar e refletir sobre este ‘mundo da vida’ no qual se depositam todos os valores e desejos intrínsecos no homem e na mulher que constróem esta América Latina, mas esta construção não foi estabelecida através de uma proximidade amigável, foi marcado por violência e desigualdade, praticadas pelos colonizadores que dominaram esta América Latina, e que se alastra até os tempos de hoje, uma dominação que não é visível. Portanto, o problema existiu,  existe e todos reconhecem, uns mais, outros menos. Mas, afinal, como começar a solucioná-lo?

            Neste contexto de Mundo e principalmente de América Latina, de desestabilidade social, de esvaziamento do ser humano, encontra-se o filósofo, aquele que resiste ao sufocamento produzido pelos instrumentos de poder, aquele que insiste em pensar livremente, que teima em propôr uma sociedade justa, onde ninguém tenha tanto, a ponto de obrigar a muitos a nada terem, onde todos possam ser humanos livres, conscientes. Tomar uma atitude, por vezes utópica, é sempre contraditória em meio a massificação, em que não se encontra mais a singularidade da pessoa.

            Enrique Domingo Dussel, filósofo e teólogo Argentino e um dos fundadores da Filosofia da Libertação, que tem uma ampla visão e muitos escritos sobre a nossa América Latina, portanto Dussel, irá fazer de sua filosofia uma busca por um ethos de libertação, no inicio de sua construção de pensamento, fundamentou e apresentou através da arqueologia as razões de um “encobrimento” dos povos da América Latina, partindo então atualmente seus escritos se direcionam para uma ética mundial.

            Da leitura de suas obras, depreende-se facilmente que o filósofo já não pode mais ficar envolvido em uma elite, servindo aos dominadores. Ao contrário, critica a massificação imposta por europeus e norte-americanos, que exclui o pobre e isso vale para toda a América Latina e outras regiões periféricas, cabe ao filósofo o papel de trabalhar para que as pessoas possam ter uma consciência crítica a fim de atuarem de forma mais eficaz diante da realidade da qual fazem parte.

            O presente trabalho de conclusão de curso tem por fim apresentar uma alteridade a partir da ética do ser latino-americano segundo Enrique Dussel, como proposta para uma sociedade mais justa e igualitária baseada na da reestruturação do reconhecimento da exterioridade do outro.

            O trabalho de Enrique Dussel envolve uma nova proposta de sociedade livre, justa e solidária. Sua busca por um sistema social justo está pautada sempre na necessidade de o homem ser sujeito em condições iguais a todos, independentemente da cor, raça, sexo, religião, história ou geografia.

            O primeiro capítulo irá enfatizar a exterioridade, que é o reconhecimento do outro que é distinto, visando para o reconhecimento de uma metafísica não mais vigente, mas analética (aberta).

Iremos identificar a dignidade humana na América Latina, para se ter reconhecimento dos seres humanos, verificaremos alguns itens de Levinas[1] de quem Dussel retirou alguns princípios fundantes para a compreensão de exterioridade. Reconhecendo o Outro, podemos então finalizar o primeiro capítulo em busca de um bem comum.

         No segundo capítulo, iremos ressaltar a metafísica da alteridade, que é um deixar-se interpelar pelo outro, doar-se, comprometer-se, apresentando como que a totalidade, a partir de sistemas totalizantes, sistematizou a sociedade, ficando corrompida. A partir desta abordagem é preciso considerar o sentido da liberdade, fundada na alteridade como a afirmação da exterioridade, tendo como tutela a escuta como fator fundante, não mais a visão de domínio, um deixar-se reclinar pela necessidade do outro, daí em seguida partiremos para refletir sobre a alteridade.

            A proposta fundante é de um resgate da alteridade e de um re-construção das relações humanas, a partir das categorias fundamentais, a Erótica, a Pedagógica e a Política, por serem os pilares para a realização da justiça.

            Enfim, no terceiro capítulo, teremos como referência os cinco volumes de seu livro: “Para uma ética Latino Americana”, tendo como princípio a eticidade de um fundamento, não mais visto pela modernidade como Totalização, mas, sim,  de como ouvir a voz do outro. Tendo um ethos, ético à meta-fisica latino-americana da libertação que se reconhece em uma liberdade fundada na alteridade. Para não chegarmos a conclusões, mas como foi proposto a partir do tema que será pressupostos de um ethos de dominação para um Ethos da Libertação  latino-americana, mas a partir da hermenêutica situar o Ethos da dominação e como ter algumas fundamentações para um ethos da Libertação.

            E, finalmente, serão apresentadas algumas considerações finais, apontar algumas questões que devem ser postas em face do trabalho desenvolvido por Enrique Dussel. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

I – CAPITULO

Exterioridade como reconhecimento do Outro

Pretendemos neste primeiro capítulo tratar então dos seguintes temas: uma exterioridade e dignidade humana na América Latina contextualizar a realidade do povo da América Latina, que é a intenção de Dussel, a libertação do povo da periferia que foi esquecido pelo sistema totalitário, e para compreensão desse sentido de pertença do próprio povo, iremos situar a razão do outro, a “exterioridade” e a comunidade de comunicação, onde o diálogo tem prioridade para repensar os espaços de comunicação, observando este espaço de relacionamento, entraremos no campo metafísico que é o estatuto metafísico da exterioridade.

O Pensamento de Dussel tem uma grande influência de Levinas, a partir da exterioridade e metafísico, então faremos um subtítulo de “ensaio sobre a exterioridade meta-fisica do outro em E. Levinas”, para que possamos desembocar na a ”exterioridade meta-fisica do outro”, reconhecimento de um valor alterativo.

 Visando que “O outro”, o bem comum e o infinito, fazem parte um sentido metafísico para afirmar a exterioridade e para se ter à liberdade fundada na alteridade  que é a afirmação da  própria exterioridade.

 O objetivo deste capitulo é de abordar sobre a exterioridade metafísica do outro, reconhecendo o outro com um ser que não está dentro da minha razão ou até mesmo da minha vida como forma de escravidão. A comunicação é um fator necessário para o diálogo, é através da aproximidade que eu me represento e deixo o outro distinto se apresentar.

Utilizaremos algumas linhas de pensamento de Levinas que Dussel irá trazer para o seu contexto de América Latina observando o reconhecimento do face-a-face. Sempre visando o bem do outro, lembrando que o outro é para mim mistério. 

 

 

1.1 Filosofia da Libertação   

Ao refletir sobre uma filosofia da libertação e teorizá-la, devemos diferencia-lá da idéia da filosofia européia (as nações que estavam distante do centro "Mesmo" foram classificados com sem sentido).

...a América Latina constitui um objeto de dominação dos povos do hemisfério norte, mas precisamente dos europeus desde 1492 e, depois da 2ºguerra, também dos E.U.A. Mesmo assim, é preciso se propor a pensar e estabelecer uma filosofia autêntica. Mas, para isso, não se pode ficar limitado a estudar os pensamentos europeu e norte-americano, pois estão fundamentalmente vinculados às suas realidade. É necessário ir além, ultrapassar os limites do pensamento dominante e informar um novo pensamento, intrinsecamente ligado à realidade Latino-Americana, e, portanto, erigir a fundação de uma nova filosofia – Filosofia Latino-America, ou Filosofia da Periferia -, que atenda às expectativas das imensas maiorias vitimadas pelo sistema vigente. (MEIRELLES, 2005, p.19)

 

Enrique Dussel foi um dos pensadores que iniciou a necessidade de uma filosofia da libertação, e não o fez sem motivo. Preferimos começar nossa construção a partir deste ponto. O fato é que, ao pensar seu continente sob o prisma da filosofia clássica, percebeu a presença de elementos opressores nos fundamentos desta filosofia, elementos estes que impossibilitavam uma identidade entre ela e o continente latino-americano.

Olhando para a nossa história, conseguimos ver que temos um passado, e temos algo para contar de nós, como uma criança que nasce e começa a compreender o mundo, de um povo com suas crenças, culturas, que “começa” a balbuciar e a vislumbrar a realidade que se faz presente em nosso cotidiano.

Este minucioso trabalho a partir arqueologia buscando através de uma hermenêutica, observar a realidade dos antepassados.

Sendo uma filosofia do poder (centro) ela foi fundamentada e construída sobre uma metafísica ontológica, afirma Dussel, será necessariamente excludente ou, para utilizar termos mais próprios desta filosofia da libertação, totalitária (da totalidade) e opressora. “Na história da filosofia, cronologicamente falando, o último nome indicado por Dussel como sendo o de um representante da filosofia preponderante é o de Martin Heidegger” (ZIMERMANN, 1987, p. 190).

A necessidade de estudar uma filosofia própria é porque, ao considerar a Filosofia européia, corre-se o risco de se criarem filósofos latino-americanos inautênticos, isto é, integrantes de uma realidade, mas discursando com fundamento em outra.

 

1.2 Exterioridade e dignidade humana na América Latina

Quando falamos de dignidade humana na América Latina, é necessário ter em mente o que é no campo filosófico Dusseliano, a exterioridade: “[...] a categoria exterioridade foi introduzida, como noção forte e central, numa vertente significativa da filosofia latino-americana. Recolhida dos plantios de E. Levinas, replantada em um solo latino-americano [...]” (CEFIL, 1991, p.08). Sendo que o outro é para mim surpresa, mistério, devo respeitá-la, pois sua exterioridade é o seu valor e um valor para mim.

          Um dos bloqueios que encontramos em nossa sociedade atual é o mercado: “[...] no paradigma do mercado, o ‘homo economicus’ é o único a ter reconhecido aquela parcela de dignidade que corresponde a seu poder aquisitivo.” (CEFIL, 1991, p.12), é onde se encontra quase toda a diferenciação de uma sociedade desigual, que desde a chegada dos colonizadores na América Latina se iniciou um grande abismo entre os grandes e os pequenos, os senhores e os escravos, o centro e a periferia e essa realidade ganhou um formato imenso, e da América Latina: “transformou-se em meras engrenagens de automatismo institucionais” (CEFIL, 1991, p.10).

 

O direito do outro, fora do sistema, não é um direito que se justifique pelo projeto do sistema ou por suas leis. Seu direito é absoluto, por ser alguém. Livre, sagrado, funda-se em sua própria exterioridade, na constituição real de sua dignidade humana. (DUSSEL, 1977, p.49).

 

Por isso, é necessário repensar uma filosofia que possa libertar este povo que perdeu sua dignidade, ou tem uma dignidade, a tem camuflada. 

Portanto, quando reconheço o outro como mistério (o distinto) pode iniciar um reconhecimento fora do sistema que foi implantado pelo sistema europeu ‘Mesmo’, sendo que a exterioridade é a forma de reconhecimento, alguém que está fora do sistema totalitário.

 

  1. A razão do outro, a “exterioridade” e a comunidade de comunicação

 

Comunidade de comunicação não é somente uma comunicação América Latina, mas verdadeiramente um contato com a Europa. Mas essa comunicação tem uma ligação de “aproximidade” e respeito à exterioridade do outro. Uma razão que tenha como pressuposto uma comunicação direta, de diálogo e não monólogo:

[...] como latino-americanos, participantes de uma comunidade de comunicação periférica – dentro da qual a experiência da ‘exclusão’ é um ponto de partida ( e não de chegada) [...] precisamos obrigatoriamente encontrar o ‘enquadramento’ filosófico dessa nossa experiência de miséria, de pobreza, de dificuldade para argumentar (por falta de recursos), de ausência de comunicação ou, pura e simplesmente, de não-fazermos-parte dessa comunidade de comunicação hegemônica. (DUSSEL, 1995, p.60).

 

            Nós da América Latina temos uma grande dificuldade em dialogar com a Europa (Centro), infelizmente já criamos uma inverdade de consciência de sermos um “povo inferior”. Por ter sido colonizados, por sermos uma América “recém descoberta” apenas quinhentos anos, temos incutido em nós que a comunicação não é possível de acontecer entre o primeiro mundo e terceiro mundo, começando pela distância e observando a cultura, educação, e entre outros meios que se faz a diferenciação. Mas esquecemos de um fato muito importante, somos seres que pensamos, que utilizamos nossa razão, e somos reconhecidos:

...cada pessoa, de cada participante dessa comunidade, como sendo um outro em potência: o Outro, não ‘um outro’ diverso de sua razão, mas ao contrário como sendo a ‘razão’ do Outro; a outra razão que ‘interpela’ e a partir da qual um principio ou enunciado sujeito a ser desvirtuado pode chegar a ser retificado. (DUSSEL, 1995, p.61).

 

 Respeitando a sua singularidade e por não conhecer o outro completamente, se pode compreender o outro como espaço de comunidade, um ser “ratio” que pode dar contribuições,  não como se pensava há tempos atrás quando fomos colonizados: “[...] os índios são homens? [...] não apenas a mão de obra, se não irracionais, ao menos bestiais, incultos  - porque não tem a cultura do centro – selvagem [...] subdesenvolvidos”. (DUSSEL, 1977, p. 09-10).

Essa exterioridade é de encontro, para se chegar a um comum acordo, e não absolutizar nenhum dos dois lados:

 

Nenhum ‘acordo’ (seja ele ‘acordo absoluto’, nos moldes do ‘saber absoluto’ de Hegel; seria o final de toda e qualquer argumentação possível) [...] razão que se preze desse nome sempre estará aberta à ‘razão do Outro’, a outra razão: e somente esse tipo de razão é que se pode denominar de razão crítica e histórica e, muito mais do que isso é uma razão ética. (DUSSEL, 1995, p.62).

 

Sendo assim, partindo de uma razão pautada em uma ética poderia se chegar à conclusão de que uma comunidade de comunicação tem como plano de fundo reaproximar os dois pólos que estão distantes: o centro e a periferia Mas um dos grandes dilemas que se tem hoje é a aproximação através de um diálogo pautado dentro de uma conduta de relação pragmática:

[...] partindo de uma comunidade de comunicação, se abre – entre os indivíduos – para o mundo da vida cotidiana (Lebenswelt), pois é dentro deste que é emitido todo enunciado pragmático. (DUSSEL, 1995, p.63).

 

Não dá para pensar hoje sem uma comunidade de comunicação, sem estar pautado também na ciência, pois ela é uma necessidade para a modernidade, que de acordo com o processo histórico se foi denotando certas alterações nos paradigmas medievais. A partir do momento que o homo sapiens, iniciou seu exercício de reflexão, utilizando duas pedras para fazer fogo, aí se deu inicio as construções das nossas tecnologias dos tempos atuais, satélites e foguetes que se encontram neste espaço insondável.

À Filosofia da Libertação, in-teressa-lhe, sim, acima de tudo, a novidade e a descoberta ciêntifica, mas não como um fim, e sim, como um elemento do processo de autorealização da dignidade da pessoa. (DUSSEL, 1995, p.64).

 

            Não podemos pensar neste tempo que estamos vivendo, como há dez anos atrás, ou até mesmo um pouco menos. Tivemos e temos, a cada dia, um entrosamento com os meios de comunicação e não tem como pensar o nosso tempo sem esses meios, que acabaram se tornando necessários, mas, a grande diferenciação está em como utilizar desses benefícios para poder auxiliar o homem, e não fazer desse meio, fim. São instrumentos necessários, pois a proximidade terá seu avanço através dos mecanismos técnicos. Pensar que é um estorvo é um grande risco, a ciência vem para contribuir no crescimento do homem, de sua humanização.

Portanto, o contato com a Europa é necessário pelo aspecto globalizante que nos encontramos neste tempo hodierno, pois a proximidade se dá na relação de comunicação,  através da linguagem e com a nossa inteligência, que é um dos grandes potenciais do ser humano. Através da comunicação podemos ter a aproximação, porque cabe a filosofia da libertação comunicar-se em favor daqueles que estão rejeitados.

 

1.4 Ensaio sobre a exterioridade meta-fisica do outro em E. Levinas segundo Dussel

 

Dussel, ao iniciar a sua filosofia da libertação, tem como auxilio e princípios alguns pensadores, como Heidegger, e Levinas de que irá utilizar alguns conceitos que fundamentarão sua visão, que lhe darão uma contribuição necessária, para iniciar suas reflexões:  “... mais um inspirar-nos em Levinas do que referir seu pensamento...” (DUSSEL, 1986, p.183), mas citar alguns aspectos relevantes que ele trata sobre a exterioridade.

É na exterioridade do face-a-face que se irrompe todo sentido. Diante do rosto do Outro, o sujeito se descobre responsável e lhe vem à idéia o Infinito:

 

A idéia do infinito produz-se na oposição do discurso, na socialidade. A relação com o rosto, com o outro absolutamente outro que eu não poderia conter, com o outro, nesse sentido, infinito, é, no entanto a minha Idéia, um comércio. Mas a relação mantém-se sem violência – na paz com essa alteridade absoluta. A ‘resistência’ do Outro não faz violência, não age negativamente, tem uma estrutura positiva: ética. (LEVINAS, 1988, p.176).

 

Quando falamos que o “ser está no mundo”, não estamos vislumbrando um holísticismo, ou até mesmo panteísmo, mas o outro, o ente “... está sempre concomitantemente com tudo o que habita no mundo”. (DUSSEL, 1986, p.183). É uma relação de valorização direta, co-dependentes de que tudo que está presente no mundo tem seu valor, mas não apenas o ser humano, as plantas, os vegetais, o que o homem faz e refaz. 

Se tudo tem seu valor, desde a pedra até o ser humano, o outro tem seu espaço de valor e compreensão mais elevado, sendo um ser com consciência e racionalidade, não apenas um “res cogita”, senão, seguiríamos o que os modernos dizem, o ser humano apenas um ser  racional, quem não é reconhecido como a mesma racionalidade (centro) está descartado. Se faz necessário o  compreender o que está a sua volta, a exterioridade do outro é algo a se descobrir:

Em que medida o outro é compreensível? Que é que compreendemos do outro? Não haverá no outro um resto sempre in-compreensível e, já não como a simples coisa real, mas como liberdade de algum modo incondicionado e, portanto imprevisível? (DUSSEL, 1986, p.183).

 

A ontologia dentro da filosofia, é a competência ou habilidade fundamental, mas que como pensar essencial deverá saber permanecer aberta diante do ser como ser, diante do nunca totalmente compreendido na cotidianidade, porque não se consegue conhecer a pessoa no todo, a pessoa é mistério:

 

O outro como mistério é o para onde, o mais além de meu mundo, que o movimento dialético não pretenderá compreender como totalidade totalizada, uma vez que, por sua estrutura finita, sabe que jamais conseguirá. (DUSSEL, 1986, p.187).

 

            Temos em nós uma finitude que nos limita o conhecer, se vê necessário ter um outro que nos auxilia. Portanto, não conheço o outro na sua totalidade, mas é preciso reconhecê-lo, por isso, que o outro se torna um mistério, pois desvelá-lo totalmente é impossível, sendo necessário a aproximidade:

 

A consciência não consiste em igualar-se ao ser pela representação, em tender para a luz plena, onde se busca tal adequação, mas em superar este jogo de luzes – esta fenomenologia – e em realizar acontecimentos, cuja significação última (ao contrário da concepção heideggeriana) não consegue desvelar. (DUSSEL, 1986, p.184).

 

            Levinás ao aproximar-se da tradição filosófica, busca a própria história, que irá encontrar nos gregos o verdadeiro sentido da palavra ser, que irá combater as idéias que vislumbra um saber absoluto, como a de Hegel, entre outros, que fazem uma leitura equivocada.

 

Levinas indica como no fundo de toda uma tradição filosófica segue primando o sentido grego do ser: o ser como “o visto” (idéia vem do verbo iden: ver); o visto é o compreendido (noein) e o definido ( lógos) o permanece ou eterno (aídion) e divino. Hegel imanentiza na subjetividade esse sentido do ser; o próprio Heidegger reduz a totalidade do mundo à compreensão. Enquanto o ético, para além da visão e da certeza, designa a estrutura da exterioridade como tal. (DUSSEL, 1986, p.184 - 185).

 

Para se chegar a esta compreensão se tem a necessidade de rever como foi compreendido alguns termos com os povos passados, utilizando assim do recurso emergente de rever através da tradição, a necessidade de abarcar, vários itens para a entender o sentido de cada palavra e se é necessário um fator fundamental, a linguagem que dá espaço ao discurso, onde surge o outro, que interpela e tem o desejo de argumentar:

 

A linguagem, a palavra, o discurso surge do outro, de sua exterioridade jamais englobada numa totalidade que eu possa ter, e ex-pressa (extrai de um dentro que é exterior ao meu mundo) seu próprio ser a partir de um além de seu rosto. (DUSSEL, 1986, p.185).

 

Sendo assim, o outro se expressa através de palavras discursivas, pelas quais se procura ter um diálogo e não apenas um monólogo. O mundo do outro sempre será o seu mundo, e não uma visão totalitária de apenas enxergar o meu mundo e ele dentro:

 

O outro, então, 'exterioridade' e a maneira de manifestar-se por seu rosto, não é, em verdade, uma manifestação de seu ser, mas uma mera aparência. Somente a palavra ex-pressa o mistério (de alguma forma sempre exterior, e jamais interiorizado em meu mundo) do outro. (DUSSEL, 1986, p.185).

 

Poderia se perguntar, afinal, onde se encontra a verdadeira essência do ser-humano, sabendo que a linguagem é um fator necessário, e ela se multiplica por onde quer que ela passe: “A verdadeira essência do homem se presentifica no rosto, onde ele é infinitamente outro”. (DUSSEL, 1986, p.186).

            O sistema clássico, principalmente com o pensador Platão e o sistema hegeliano estão dentro de uma perspectiva de mundo, utilizaram meios para explicar o raciocínio lógico:

 

Na reminiscência platônica, no sistema dialético hegeliano tudo já está dado, é necessário apenas que termine de advir (chegar). Na novidade do outro como exterioridade: no mesmo, no dado, irrompe o realmente novo. (DUSSEL, 1986, p.187)

 

Platão e Hegel procuraram dar respostas para resolver os questionamentos de suas épocas, contextualizando a própria realidade do momento, se vê necessário darmos respostas de nosso mundo atual, com compreensão de um itinerário que se dá através da própria história e um mesmo mundo, sabendo que sempre irá ter argumentos de melhorias para se “chegar” ao verdadeiro sentido de um realmente novo. Sempre será um ciclo.

Portanto o face-a-face levantado por Levinás utilizado por Dussel é uma das grandes possibilidades do reconhecimento de um outro; a revelação de valorização leva a pessoa a conceber o mesmo potencial de ser humano que cada individuo tem. O outro deve ser desvelado, sendo que na nossa história ele não foi reconhecido como igual, mas o diferente. Sendo assim, Levinás trouxe uma contribuição significativa para o pensamento de Dussel através do reconhecimento do rosto do Outro, em que Dussel irá complementar, por uma vivência de América Latina, o rosto pobre.

 

1.5 A exterioridade como reconhecimento no face-a-face

            Dussel tem uma preocupação pelo ser Latino-americano e sua filosofia vai ao encontro com daqueles que são irreconhecíveis pela sociedade, e desprezados. Partindo de uma filosofia para América Latina, se vê a necessidade de se re-pensar (ou recriar) a metafísica e, com isso, toda a filosofia, partindo da realidade repressiva do continente latino-americano. Em substituição à metafísica ontológica do centro esta nova, que deve ser re-criada, reconhecendo a exterioridade metafísica do outro, revendo esse termo de metafísica do centro fechada para uma metafísica aberta, como propõe a filosofia da libertação:

 

O pensar moderno vai introjetando “o Outro” em “o Mesmo”, até que a totalidade, como única substância, impossibilite uma alteridade real processo que culmina em Spinoza, mas com ainda maior coerência e sentido em Hegel (DUSSEL, 1977, p.103).

 

Vê-se necessário e urgente o “face a face”, que é a possibilidade de convivência e relacionamento, um esforço de reconhecimento do outro como distinto, sendo assim, é necessária a intersubjetividade, que reconhece o outro distinto de mim: “Face-a-face[2].

A "lógica da exterioridade", segundo Dussel, tenta organizar seu discurso a partir da liberdade do outro. A origem deste discurso (desta lógica) está no outro como pobre, oprimido, ignorado e no seu não reconhecimento como ser. Esta lógica em Dussel recebe o nome de analética, isto é, "fato real humano pelo qual todo homem, todo grupo no povo se situa  ‘além’ do horizonte da totalidade".

 

Eu-Outro não é a imediatez do saber absoluto hegeliano, mas é a imediatez negativa de duas exterioridades que se tocam. [...] Até o rosto do Outro chega a luz, a vista, o mundo, a ordem da com-preensão (aquilo que capto ou prendo no circulo do mundo. Para além do rosto visto, no “face-a-face”, vislumbra-se, abre-se uma exterioridade “meta-fisica”. (DUSSEL, 1977, p.114-115).

 Segundo Dussel, na analética, o outro se apresenta como alteridade quando irrompe como o estranho, o diferente, aquele que está à beira do caminho, fora do sistema e mostra seu rosto sofredor e grita por justiça dentro de um mundo que tem como possibilidade a mediação. A proximidade só se dá neste tempo e se tem a necessidade de um mundo com sentido:

Sua própria relação é um entre eu e o outro que na origem não deixam ‘espaço’ nem fissura para um mundo do sentido; é proximidade. Tal mundo, desde já e sempre, servirá de mediação: falarão entre si das coisas do mundo. Todavia, tal mundo foi organizado a partir da Alteridade: intrauterinamente o Eu-fetal começou a dia-logo com o primeiro Outro: sua mãe (posição primeira, originária). (DUSSEL, 1977, p.116)

 

           

A abertura de escuta (ação de escutar, de ouvir com atenção) é a necessidade de saber declinar e ouvir a voz que vem do outro, a outra realidade que está fora de si, em que surgirá o “espanto”, em saber que além de mim, existe o outro, que tem seu sentido de mundo e de vida, que difere das minhas idéias e contribui para o crescimento tanto dele quanto meu, então, o outro sempre será novidade:

 

O novo vem do outro; devo saber ouvir a sua palavra que constitui em mim o inesperado; trata-se da Alteridade criadora, não já poiética, nem sequer como a “vontade de poder” artística de Nietzsche. Porque a invenção artística na produção de novos valores não será para o autor de Assim falou Zaratustra mais do que “o eterno retorno do Mesmo”: assim, não há novidade, não há criação, não há Alteridade, nem “o Outro”; há somente “o Mesmo” como re-pro-dução sobre si de “o Mesmo"... (DUSSEL, 1977, p.119).

 

Quando saímos do sistema totalitário, iniciamos um espaço de proximidade, aceitando o exterior, inicio de uma nova noção de entendimento, em que não será o “Mesmo”, mas “o Outro”. A ética da alteridade deixa que o outro seja realmente o outro, e não apenas reflexo de um pensamento e atitudes que condiciona o que está fora do meu enquadrante:

 

A ética da alteridade abre-se agora, por sobre o projeto da totalidade mundana, para o Outro: o Eu pessoal abre-se ao Outro, o Nós histórico ao Outros, e o Nós definitivo como humanidade ao Outro absoluto, ao infinito que garante a impossibilidade de mediatizá-lo: a abertura perene e escatológica da história. Quando o outro é mais outro, mais propriamente sua irrupção na mesmidade é criação; o Outro absoluto cria, não só o novo em “o Mesmo”, mas também o próprio “Mesmo”. (DUSSEL, 1977, p.120)

 

            Existe uma grande diferença em haver um monólogo, partindo de minhas idéias e sugestões pessoais, que compete somente eu intervir e fazer as próprias indagações, sem a participação do “diferente”, isto é manter a totalidade no poderio regido por apenas um grupo da classe que domina e desfigura o diferenteExiste também a possibilidade de entrar em acordo com o Outro, quando se tem abertura de espaço, proximidade e escuta, se pode dizer que acontece o diálogo, sendo um discurso que não esgota a realidade de nenhum contribuinte, mas fomenta a necessidade de conhecer a cada dia mais os seus anseios e desejos.

 

Da mesma forma, quanto mais outro é ‘o Outro’, mas nada é com relação à Totalidade da mesmidade e por isso mais livre [...] Na Totalidade só há monólogo de ‘o mesmo’; na Alteridade há diálogo entre ‘o Mesmo’ e ‘o outro’, diálogo histórico progressivo na novidade, curso criativo, dis-curso [...] A história, o dis-curso, é o entre ‘o Mesmo’ e ‘o Outro’ como exterioridade cujo mistério nunca se esgota nem se revela inteiramente nesse dis-curso. (DUSSEL, 1977, p.120).

 

Desde a concepção (nascimento) inicia-se um mundo de compreensões, de sentidos e mudanças, onde se criará valores de pertenças e principalmente uma liberdade pautada em direitos, justiça, de livre acesso a encontros e desencontros, com à realidade a sua volta, é o verdadeiro “mundo da vida”:

 

Desde o seu nascimento, como geração intra-uterina, o homem é um pólo de liberdade dis-tinto, aparecimento no mundo dos Outros, ex nihilo, de uma nova exterioridade, negativa; alguém que exige justiça, que tem seus direitos; um ser ético, meta-fisico. (DUSSEL, 1977, p.120)

 

            Ao nascer o homem é distinto, tem sua singularidade e por isso merece todo respeito, já nasce com seus direitos fundamentais, que são salvaguardados e tutelados pelos princípios universais. Se encontrará com o  que está próximo, é onde também se funda e se inicia a vida: “O primeiro modo da relação de Alteridade, do Eu-o outro, do ‘face-a-face’, é a do  homem-mulher: relação esponsal que pro-cria e alberga toda outra possível alteridade humana”. (DUSSEL, 1977, p.121)

            A família tem seu espaço próprio para o reconhecimento do filho que é distinto da mãe e do pai, sendo aqui o primeiro elo de amizade, de uma verdadeira alteridade por meio de um diálogo e escuta.

 Partindo desses princípios esboçados acima, não partimos mais de uma metafísica fechada como que colonizadores tiveram, mas uma metafísica em que  possa reconhecer o outro que está fora de meu mundo que é o ‘novo’. Após dar-se por entendida a realidade de um distinto, poderíamos abrir para o relacionamento que nos leva a um diálogo que não mais acontece dentro de um campo subjetivista, mas que ultrapassa essa realidade, se torna intersubjetiva.

Enfimo sistema dialético é deixado e se toma como uma visão necessária a analética. Quando me deixo interpelar pelo o que se aproxima, para reconhecer o mundo de sentido do distinto, que será sempre uma novidade, temos de nos pautar em uma ética da alteridade, para se evitar que a classe dominante reprima por completo o nosso país.

 

1.6 O outro, o bem comum

Para Dussel, a verdadeira filosofia iniciou-se e inicia-se na periferia, é onde o que sofre exige seu espaço e vez.  A sua preocupação é com esse outro que está esquecido e abandonado. É na práxis analética que se tem sua origem de sentido e reciprocidade, não na ordem estabelecida pelo centro onde é imposto uma visão equivocada, unilateral, mas deve ser no Outro, portanto, foge à legalidade. O ir além do projeto vigente, escutar a voz do Outro que clama por justiça, constitui a sua ilegalidade: “A voz-do-Outro é analética [...] A lógica da Totalidade é unívoca; a lógica da Alteridade é análoga”. (DUSSEL, 1977, p.71).

A conversão para o pensamento ana-lético ou meta-fisico é a exposição a um pensar popular, o dos outros, o dos oprimidos, o do Outro fora do sistema, e é pensando nesse Outro que Dussel pressupõe uma filosofia que se torne realidade na política, para que possa responder e gerar compromisso, para que se supere o antigo sistema totalitário:

A filosofia se torna real na política; a política sem a critica filosófica realiza uma tarefa imoral. A filosofia sem incidência e compromisso políticos é uma utopia, é irreal, é sofistica. O filósofo pensará o caminho que abrirá a Totalidade ao Outro, mas era a Totalidade aberta dialeticamente que servirá efetivamente ao Outro ao incluí-lo na nova Totalidade eticamente justa. Trata-se de uma nova Totalidade histórica que supera a antiga Totalidade. (DUSSEL, 1977, p.71).

 

            Tanto a filosofia como a política deve caminhar juntas, para que se chegue a uma conclusão única: o compromisso para com aquele que está à margem do sistema visto que a indiferença é o resultado da desigualdade na qual  a América Latina se encontra atualmente. O não reconhecimento gerou o distanciamento.

  Dussel, através da abertura e reconhecimento da exterioridade do outro, postula um Outro que transcende os interesses vislumbrados por alguns pensadores, como um sistema fechado:   

 

[...] ‘O Outro’ transcende o todo dos interesses (que inclui os fins do ‘pacto’ de Hobbes, Rousseau ou Hegel, mas igualmente o to koinòn agathón do próprio Aristóteles) da Totalidade como ‘o Mesmo’. Se o interesse comum é o télos de uma Totalidade fechada, não é na realidade um ‘bem’ mas o simples interesse ou o ‘ser’ do Tudo como  o único, o divino, o eterno, o Absoluto (desde a polis grega até o Nation de Hitler), um projeto sem Alteridade. (DUSSEL, 1977, p.72).

 

 

É necessário refazer o sistema totalitário, não ter a pretensão de fazer um novo sistema, pois todo sistema tende a totalizar, mas que possa através do mesmo sistema, rever o que é prioridade e buscar a verdadeira justiça.

Para Aristóteles é a virtude de bons e justos cidadãos para se ter o bem, que parte também do pensamento de Dussel, sendo que a sistematicidade não deixa a pessoa demonstrar a sua transcendência. É necessária a abertura para o reconhecimento:

O ‘bem comum’, realmente ‘bem’ e não mero fundamento de uma Totalidade institucionalizada na dominação e a injustiça do definitivamente fechado é o que perenemente avança para o Outro para servi-lo na justiça, instaurado um novo Todo. (DUSSEL, 1977, p.72)

 

            Através da exterioridade e reconhecimento para com o outro, inicia-se um novo caminho meta-fisico, no qual a Totalidade que era predominante, começa a se refazer e abrir possibilidades de espaço, mas sempre pautada em um aspecto político, para que possa acontecer a mudança. É a filosofia impregnada no social:

 

[...] ‘O Outro’, enquanto exterioridade, é condição de possibilidade meta-fisica do futuro autêntico, criador, novo. ‘Dar espaço’ para que o Todo pro-crie um novo Todo historicamente inesperado é uma função analética, privilegiada do Outro. O que constitui efetiva e praticamente o novo Todo, por mediação de uma práxis libertadora, e a realidade política. (DUSSEL, 1977, p.73).

 

           

            Partindo de sua exterioridade, o homem pode ter seu espaço e até mesmo agir por si só com seu livre arbítrio, mas de acordo com a persuasão do sistema Totalitário, pode se perder a liberdade que se tem e cair novamente em um regime que oprime e deixa novamente o ser humano em segundo plano:

 

O homem na Totalidade pode ter ‘livre arbítrio’, mas no fim se reduz à pura espontaneidade, auto-determinação, auto-diferenciação eletiva. [...] queremos indicar é que o Outro como outro é liberdade meta-fisica, para além da espontaneidade solipsista da Totalidade, para além da fysis (seja astrológica, vegetal, animal ou humana) é história e criação. (DUSSEL, 1977, p.110).

 

            Os pensadores modernos se equivocaram por elaborar um sistema que  abarca uma certa totalidade do ser humano para mostrar a exterioridade que se têm: 

...Marx (Sujeito do trabalho) ou Kierkegaard (sujeito da fé diante de Deus) [...] Todavia, não puderam descrever adequadamente a exterioridade ou fizeram de tal maneira que, no fim, ficaram novamente presos na modernidade: o pensamento de Schelling fecha-se numa totalidade divina que somos por natureza; a intenção de Feuerbach não supera a Totalidade da Humanidade (que inclui como um ‘nós’ o ‘eu-tu’); o pensamento de Marx nunca vai além da Totalidade cultural antropológica; a mediação de Kierkegaard reduz a alteridade àquela de um individualismo diante de Deus: é um solipisismo teológico e não chega a descrever uma posição alterativa solidária e antropológica... (DUSSEL, 1977, p.111).

 

            O outro, para se afirmar, não é necessário englobar dentro de um sistema, pois, o ser humano, por si só, já tem o valor em si, é inato:

O Outro é aquele que pode afirmar-se a partir dele mesmo como outro, e tal ato é revelação, criação, novidade, pro-vocação, interpelação. Esta negatividade não é ôntica nem ontológica: é meta-fisica. (DUSSEL, 1977, p.113).

 

 

            Quando negamos o outro, como o sistema totalitário nega, quando se tem um interesse, “o Ser é o não ser não é”, parto para o sentido de negação de essência, principalmente na realidade que encontramos hoje em nossa América Latina, um grande individualismo e hedonismo que se encontra em todos os campos sociais, culturais e econômicos:

 

Negar o Outro é negá-lo como livre; é negar a sua liberdade. Negar a sua liberdade é a totalização da Totalidade; é o único mal. Negar a liberdade do Outro é afirmar a Totalidade como única [...] é transformar toda a relação em pura relação econômica do homem-natureza. (DUSSEL, 1977, p.114).

 

            Para diferenciar esta realidade de cultura sem fundamentos e princípios de reciprocidade, Dussel faz a diferenciação do serviço através da práxis e o serviço libertador, sendo que o verdadeiro serviço deve levar o ser humano à verdadeira liberdade, que abarca o outro na mesma totalidade e não diferenciada e excluída:

 

O serviço (do hebraico habodáh) é meta-fisico, ao passo que a práxis é somente ôntica [...] O ‘serviço’ é práxis libertadora. A práxis conquistadora é a dialética enquanto inclui o Outro dentro da Totalidade (Pizarro conquista os Incas). A práxis libertadora ou ‘serviço’ parte do Outro (analógico) já que sua palavra que pro-voca à justiça é Ana-lética; a resposta da Totalidade que cresce dialeticamente para servi-la já não é conquistadora, não inclui unicamente o Outro na própria Totalidade, mas cria uma nova Totalidade que é analógica [...] (DUSSEL, 1977, p.115).

 

           

            Se vê necessário uma nova ordem, mas que possa pensar e ter uma práxis tendo como ponto principal o serviço, pois a totalidade tem um aspecto de olhar e velar pelo seu próprio sistema, diferenciando outros aspectos relevantes que é a abertura do ente para com o ‘sistema’.

            Portanto uma verdadeira filosofia deve visar e partir daqueles que estão necessitados de um reconhecimento. A filosofia da libertação irá dar a contribuição, um reconhecimento de um Outro, e especialmente Dussel olhando para a América – Latina, ter a obrigação por velar pelos pobres, pois são eles que sofrem as conseqüências tomadas pelos sistemas totalitários.

            A práxis analética é necessária, o sistema visto pelos grandes pensadores era dotado de uma dialética apenas dentro de um núcleo que vislumbrava um paradigma visando a própria realidade e a filosofia da libertação vem demonstrar uma outro fundamento.

            Portanto, a filosofia de uma verdadeira libertação só será possível quando a política e a filosofia entrarem em comum acordo para rever os interesses de um povo que elegeu candidatos para legislar e não comandar e trabalhar de forma independente, imaginando que sejam coisas distintas, mas que é algo que está intimamente ligado.

 

1.7 Exterioridade

Quando falamos de uma realidade exterior, temos a consciência de que estamos falando de algo que está fora de si. É o que Dussel faz: buscar uma resposta para que o Outro seja visto dentro de um procedimento de inclusão e não de exclusão e aproveitamento. A exterioridade indica o âmbito onde o outro homem, como livre e incondicionado por meu sistema e não como parte de meu mundo, se revela.

Além do ser, existe ainda a realidade. O outro “homem da periferia”. Não é algo fechado, mas de um ir e vir, em que cada homem constitui uma totalidade: a lógica da totalidade, é a lógica da alienação da exterioridade. A lógica de exterioridade é histórica, é analética: “Transcendentalidade interior ou exterioridade têm a mesma significação neste discurso filosófico". (DUSSEL, 1977, p.46).

             Quando tratamos o outro com indiferença, e me vejo como único, e não possibilito a abertura ao ser que pede ajuda, passo a não respeitar o mesmo direito que tenho para com o outro que tem seus direitos: “Mesmo na extrema humilhação da prisão, no frio da cela e na total dor da tortura , mesmo quando seu corpo não era senão uma chaga viva, podia exclamar: “- Sou outro; sou homem; tenho direitos!” (DUSSEL, 1977, p.47).

            Cada homem tem sua autonomia, e não é necessário ser controlado por um outro sistema que venha inverter nos valores já constatados nesse individuo, ele é por si só livre: “Somente o livre, cada homem, é uma totalidade auto substantiva autônoma, outra: exterioridade metafísica, realidade realíssima além do mundo e do ser”. (DUSSEL, 1977, p.48).

            Na América Latina temos uma realidade falseada, onde dentro da realidade de “mundo”, a convicção de que cada vez mais seguimos por caminhos do individualismo que são procedimentos de auto-defesa. Um preocupar-se com o que é necessário o que falta para o próprio indivíduo. Portanto, o sistema injusto inicia com a própria sociedade que perdeu sua referência de sentido, também de um estado que através de suas burocracias “não encontra” meio para suprir a realidade alarmante na qual se encontra, partindo do micro (Brasil) para o macro (América Latina): O oprimido tem necessidade não teórica, mas sim, prática e existencial:

 

Tudo isso assume realidade prática quando alguém diz: ‘Estou com fome!’ A fome do oprimido, do pobre é um fruto do sistema injusto. Como tal não tem lugar no sistema [...] saciar estruturalmente a fome do oprimido é mudar radicalmente o sistema. (DUSSEL, 1977, p.48).

 

Na perda de sentido coletivo passou para uma realidade difusa e sem brilho, ofuscante para quem está contra este sistema, e Dussel pressupõe que existem reflexos da revolução burguesa nesses aspectos apresentados: “A individualização desta experiência pessoal-coletiva é uma das deformações euro-péias dependentes da revolução burguesa”. (DUSSEL, 1977, p.50).

A partir do iluminismo a razão teve como objetivo racionalizar o mundo, sendo assim, a Razão tornou-se a capacidade de se abarcar o fundamento e a diferença. Dussel relata que é necessário na exterioridade ter um além, e esse além seria a Fé, como o dar um passo no escuro, pois é acreditar no outro. Exterioridade: “Aceitar a palavra do outro porque ela o revela sem outro motivo senão porque ele a pronuncia, é a fé. O que me revela não tem outro critério de certeza a não ser a própria realidade do outro como outro”. (DUSSEL, 1977, p.53).

            Mas, a dúvida surge: por que acreditar no outro? É um risco que corremos, mas vale lembrar que:

 

Aceito porque atrás de sua palavra se encontra a própria realidade de alguém [...] Crer é lançar-se no vazio porque o outro afirmou que no fundo do abismo há água e não se corre perigo. Relação metafísica por excelência, proximidade, revelação, fé racionalidade histórica suprema, humana. (DUSSEL, 1977, p.53).

 

 

A transcendentalidade interior é a esperança de transcendentalidade realizada. Ninguém é de maneira absoluta do sistema, todos têm transcendentalidade, até mesmo o burguês tem sua necessidade de transcender ao sistema:

O próprio burguês é vitima do Capital, e a superação do capitalismo libertará o burguês da escravidão que se exerce sobre o nível, verdadeiramente, humano de sua existência. Esta transcendentalidade interna é a exterioridade do outro como outro; não como parte do sistema. (DUSSEL, 1977, p.53).

 

Assim, a ontologia se move à luz do mundo sob o império da razão. Pensa o mundo de dentro. A metafísica pensa o mundo a partir da negatividade ontológica (exterioridade): “A filosofia com a ontologia é um refletir-se, um olhar-se no espelho (speculum); é procurar a identidade como origem do mesmo que já se é”. (DUSSEL, 1977, p.54).

Dussel, através de sua filosofia da libertação, pretende retratar o seu pensar em uma perspectiva metafísica: “A metafísica, no sentido que lhe damos no presente discurso da filosofia da libertação, é o saber pensar o mundo desde a exterioridade alterativa do outro”. (DUSSEL, 1977, p.54).

            Olhando para o outro que é mistério, se tem a necessidade de ter de falar, e escutar é motivo de atingir a própria realidade: “A metafísica não só está em jogo na fé diante da palavra interpelante, mas na pulsão que mobiliza, transforma, subverte a própria realidade”. (DUSSEL, 1977, p.55).

Quando vejo o outro e me aproximo, a relação eu e tu, se transforma em um nós, surge, então, a possibilidade de conhecê-lo e o desejo de deixar-se conhecer: “Quando o outro fala a partir de si [...] revela sua exterioridade, sua alteridade que a razão nunca poderá perscrutar desde si mesma”. (DUSSEL, 1977, p.52).

O outro tem seu momento de fala e reconhecimento quando não está sendo persuadido por um terceiro, daí surge as condições de possibilidade de mostrar a liberdade do individuo e desvelar a sua exterioridade, reconhecendo os seus direitos e demonstrando a permanência em um campo de diálogo.

A perda de referência de sentido faz com que afundamos em um subjetivismo e não transcender o sistema vigente que colabora na fragmentação do ser humano.

Portanto, a exterioridade é uma realidade que a razão não consegue captar na sua amplitude e na sua totalidade, por isso, é necessário conhecer a liberdade que procede do outro. A alteridade deve se tornar o campo das mediações, que está em um plano metafísico.

 

1.8 A exterioridade Metafísica do outro

            Quando Dussel diz que “todo sistema tende a totalizar”, sabemos que durante a história todos que assumiram ou fizeram projetos para o poder, o argumento era de apaziguar, como vemos o exemplo do Marx, Hegel, Comte e até mesmo Hitler, entre outros, que procuraram fazer um sistema que se aplica em toda a realidade, mas sabemos que o fim ao qual se chegou não era o esperado. Quando partimos da hipótese de uma exterioridade metafísica, temos como pressuposto os aspectos positivos, o que propomos aqui, é um novo despertar que procura reconstruir esta realidade, colocando, na relação do “face-a-face” entre duas pessoas, a possibilidade da convivência e relacionamento.

Como Dussel pretende fazer uma arqueologia, vemos que a história de toda a humanidade até nossos dias não foi mais do que a história das lutas de classes, traduzida em discurso. Discurso é o pensar meditativo e dialético que avança na descoberta do significado.

 

Heidegger supõe, exatamente, o pensar ‘o Outro’ como o distinto, sem um ‘o Mesmo’ idêntico, originário no âmbito a partir do qual procede a diferença. A superação da modernidade, da ontologia do sujeito, não se alcança ainda na transcendência homem-mundo que funda o sujeito-objeto, mas no descobrimento de que a Totalidade homem-ser, como ser-no-mundo, se abre e é fundamento do prévio: ‘o Outro’. Se a Totalidade mundana em seu último horizonte, o ser, é o ontológico, trata-se agora de algo que se encontra além do ontológico (a fysis grega), e por isso poderia denominar-se: o metafísico, o transontológico; ‘o Outro’ como além, sempre exterior de ‘o Mesmo’. (DUSSEL, 1977 p. 113)

 

Dussel faz a diferenciação de sua nova ontologia, que é metafísica e alterativa, para a de Heidegger, na qual a sua totalidade se fundava no projeto adveniente como compreensão do ser.

A ética Dulsseliana da alteridade abre-se agora por sobre o projeto da totalidade mundana, para o Outro: o eu pessoal abre-se ao outro; o nós histórico, aos outros, e o nós definitivo como humanidade ao Outro Absoluto, ao Infinito que garante a impossibilidade de mediatizá-lo: a abertura perene e escatológica da história: “Na dialética da totalidade só há relação homem-natureza e por isso é ontologia ou economia; na analética da alteridade há relação irrespectiva, encontro de liberdade-liberdade e por isso é metafísica ou ética” (DUSSEL, 1977, p.120). A liberdade frente à liberdade do outro gera um agir que leva a transcender a visão subjetivista, que é a metafísica ou a ética.

Enfim, sabemos que o exercício de vontade e poder é a forma com que o poderio de um determinado grupo possa perpetuar. Observando esta falha Dussel irá argumentar a favor de reconhecer o distinto, se preocupando com o Outro, não mais o Outro de um sistema único, mas de algo que abrange uma ‘totalidade’ não mais fechada, mas aberta em processo de reconhecimento. Para isso é necessário o face-a-face, que se dá através do relacionamento de indivíduos, que nos leva a uma coletividade de reconhecimento mútuo. Enfim que gere um compromisso de libertar os que estão clamando por uma América Latina mais justa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

II – Capitulo

A metafísica da alteridade

 

Neste segundo capítulo iremos abordar como que se dá a metafísica da alteridade, visualizando primeiramente como é o sistema de totalidade que faz do sistema totalizante massificando os povos da América Latina. Após vermos esta forma de agir, iremos abordar um meio para que a liberdade deva ser fundada na alteridade, como a afirmação da exterioridade, sabendo que quem clama é quem está à margem do sistema.

Portanto, partindo de uma escuta, reconhecer o fator fundante para se ter a alteridade como mediação, através da erótica que é a relação do varão com a mulher, dando uma ênfase pedagógica, mostrando uma verdadeira libertação, que se dá em um âmbito familiar que culmina na política, cujo sistema deve reger utilizando uma verdadeira justiça para a libertação do povo da América Latina.

 

2.1 Totalidade como sistema totalizante

            O homem é um ser no mundo e com o mundo. Vive em um contexto histórico determinado dentro do qual e a partir do qual abrem-se as possibilidades de realização. Suas transgressões dependem de sua forma de se envolver no mundo. Somente transgride quem procura sair de uma totalidade fechada e exaurida de todos os benefícios que se encontra:

 

A totalidade, quando totalizada plenamente, por uma lado nega a liberdade humana e sua transcendência em relação ao mundo [...] A liberdade humana se dá entre o dado (o que recebeu ao nascer) e o buscado (transcendência), o "poder-ser". (AMES, 1992, p.41-42)

           

A partir desta totalidade (compreensão do ser como fundamento, identidade, totalidade) na filosofia Européia, as nações que estavam distante do centro, o "Mesmo", foram classificadas como sem sentido, periféricas. Neste sentido, a filosofia da Libertação procura detectar a origem da situação de dependência, e dominação da América Latina; também procura identificar a origem do sofrimento do povo Latino Americano e sua aparente incapacidade de desenvolver-se. Mas chega-se à conclusão a respeito dessa totalidade de que:

[...] os entes que compõe a totalidade são diferentes entre si, mas todos os entes se fundamentam na identidade do Ser [...] não são novidade, mas apenas ponto de partida do movimento dialético, uma vez que se trata somente de um desdobramento dialético no interior da mesma totalidade. Num outro sentido, constatamos que tal totalidade ‘nunca está totalmente totalizada; ao contrário, é essencialmente aberta, inclausa, fugidia, fluida, dialética’ graças à temporalidade, ‘que reúne o faticamente dado-já, como estar sendo no horizonte [...] (AMES, 1992, p.29-30)

Quando se está situado no “Mesmo” acontece sempre a repetição. Sem abarcar o diferente não se têm novidades, é sempre uma mesma coisa, diferente do homem que está em uma realidade distinta. O homem é sempre um poder-ser, com possibilidades de ir além, não é um ser dado, o homem está sempre na perseguição de seu ser que é o ser no mundo com suas potencialidades e não atrofiado dentro de um sistema fechado totalitário. (cf. AMES, 1992, p.30).

Dentro do pensamento grego não se aceita o diferente, “não pode haver novidade” (AMES, 1992, p.31), somente há espaço para a repetição.

Será então diferente do pensamento semita-cristão que Dussel irá argumentar: “fruto de um ethos dramático (que vê o homem como alguém tentado) e não trágico como o grego (que vê o homem como condenado), elabora uma doutrina da pessoa como alguém livre”. (AMES, 1992, p.31).

 

 

2.2 A liberdade fundada na alteridade como a afirmação da exterioridade

 

            Após termos visto a questão da exterioridade que não é reconhecida pelo fato de quem tutela, é um poder Totalizante que não abre espaço para o novo, o “Outro”, partimos agora para a questão da liberdade que se funda a partir da exterioridade, tendo como pressuposto a alteridade, em que Dussel irá conceitualizar que há dois limites que negam a liberdade humana:

 

O primeiro é a totalidade plenamente totalizada que reduz o homem á factibilidade, ao dado, negando qualquer transcendência em relação ao mundo. O segundo é o da alteridade puramente gratuita. Desaparece a totalidade, sendo atribuída ao homem uma liberdade infinita. Também nega a liberdade porque já não é mais humana. (AMES, 1992. p. 41).

 

Sendo assim, a liberdade humana está entre a factibilidade e a transcendência, por isso é finita (cf. Ames, 1992, p. 41). Mesmo estando dentro de um sistema - pois sempre existirá o sistema -  poderá conviver em sociedade a partir de sua liberdade, verificando sua singularidade:

 

Desde o outro como outro, o pobre, liberdade incondicionada por quanto se despreza sua exterioridade como nada (como incultura, analfabetismo, barbárie), como o nulo, é que surge na história o novo. (DUSSEL, 1977, p.51)

 

            Quando se fala de liberdade, é deixar aparecer o respeito que se deve ter pelo o outro que é livre. Quando é respeitado na sua exterioridade e reconhecido não no coletivo, a liberdade e libertação acontecem através da singularidade e individualidade de cada um, pois não é o povo, multidão que se revela, mas o homem no meio de uma sociedade. (cf. AMES, 1992, p. 41-44).

            Para construir seu pensamento, Dussel parte do pensamento semita, que abarca um aspecto valorativo de grande expressão:

 

No pensamento semita, o rosto assume contornos importantes na construção de uma ética; o rosto revela a dimensão inesgotável do ser, remetendo para um pensamento que descreve a grandeza da pessoa humana, que exige de uma pedagogia conseqüente uma atenção toda especial, quanto na relação frente-a-frente, mestre e discípulo. (DUSSEL, 1977, p.45)

 

Os semitas, ao contrário dos indo-europeus, que atribuem o mal a um deus ou ao corpo, escrevem um relato sobre a origem do mal para mostrar que este mal nem é feito por Deus nem é um deus, mas tem causa na liberdade do homem, em Adão. Não se apresenta um Adão tragicamente acorrentado, mas um Adão dramaticamente tentado, tentado em sua liberdade. “Para o semita não é o corpo, mas a liberdade que é a origem do mal. Como se vê é um ethos distinto: não é um ethos dualista, mas um ethos da liberdade e da libertação”. (ZIMERMANN, 1987, p.45).

            A liberdade humana é um compromisso de uma ação que liberta, que acontece dentro do tempo e de uma história. Mas existem dois limites da liberdade que elas se negam, que são a Totalidade, que sistematizada de tal forma se fecha e totaliza ou a total naturalização do homem, e o outro lado é a alteridade puramente gratuita que poderá haver o desaparecimento da totalidade, que já não seria o homem, mas sim o próprio Deus, não se teria uma liberdade finita, humana:  

A liberdade humana desenvolve-se, então, entre a natureza e a divindade, sem ser uma nem outra, aproximando-se do físico (o mal) enquanto Totalidade fechada; aproximando-se do Outro (o bem) enquanto ‘serviço’ meta-fisico. (DUSSEL, 1977, p.116).

 

Tem-se um aspecto metafísico. Percebe-se que não poderia ser reduzido como objeto de manuseio, como foi feito no começo dos primeiros povos que habitavam a América Latina, e hoje é feito com as pessoas que se reduzem em meros objetos de uso, pois cada homem enquanto distinto é livre. Porque sem a exterioridade não há liberdade nem pessoa.

            Dussel além de falar e tratar da liberdade pessoal vai além, se preocupa com a liberdade do outro: “A liberdade real do Outro é para mim, para nós, para a Totalidade, um momento meta-fisico...”. (DUSSEL, 1977, p.112).

            Dussel diferencia a liberdade sua com a liberdade de Kant e até mesmo de Levinas, pois através de seu livre arbítrio tem responsabilidade por si mesmo:

 

A liberdade meta-fisica do Outro não é, contudo, o noumenon de Kant. Como para Kant é o real que transcende o horizonte da representação objetual; mas, para além de Kant (e mesmo de Levinas), o Outro pode revelar-se desde sua liberdade (ou pode delatar-se na tortura) que é irrupção Ana-lógica de sua palavra na Totalidade. (DUSSEL, 1977, Vol. II, p. 113).

 

É por isso que a proposta da filosofia da libertação de Enrique Dussel tem um fundamento ético e antropológico, pois parte da realidade concreta, que é o outro. É intrinsecamente ‘ética e analógica’ porque quer buscar o sentido ou o significado para além do mundo dado ou apresentado.

Através da liberdade e de uma razão vigente, a inteligência fica como que perplexa, o que nos falta seria reconhecimento, sendo que o outro é semelhante partindo de uma posição de confiança, como Dussel mesmo diz: “... semelhante mais jamais igual, do próximo mas nunca o mesmo [...] o Outro como  criador, interpelante, pro-vocador justiça”. (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 114).

            Segundo Dussel, a razão não conseguirá explicar o ser humano por inteiro, pois não somos formados somente através da razão, apesar de ela ter um predomínio fundamental, é o que nos diferencia dos animais.

Mas com o seu auxilio (racionalidade) é necessário o ‘acreditar’ no que está distante e ir contra o sistema totalizante:

 

Diante daquilo que a razão não poderá abarcar, o mistério do outro como outro, somente a fé pode adentrar-se. Na proximidade, no “face-a-face”, alguém pode ouvir a voz do outro e acolhê-la com sagrado respeito. (DUSSEL, 1977, p. 52). 

           

            A fé que Dussel diz, não parte apenas do campo religioso, mas também de um ato da inteligência, que é uma realidade meta-fisica, que vai além do físico, pelo qual não se encontram respostas, é um reconhecer que vai além da visão do rosto: “A fé é dialética como compreensão e, por isso, é histórica [...] Não se tem outro sentido para aceitar a palavra reveladora do outro senão a fé”.  (DUSSEL, 1977, p.21).

            Quando Dussel diz que a filosofia nasceu da periferia, é porque somente   reclama quem está fora do sistema, que não é reconhecido, e falando de uma realidade de América Latina, ela é vista apenas por interesse, mas desconhecida pelo centro.  É necessário saber reconhecer o distinto o diferente o “outro”:

O outro, que não é o diferente (como afirma a totalidade), mas distinto (sempre outro), que tem sua história, sua cultura, sua exterioridade, não foi respeitado; não se lhe permitiu ser outro. Foi incorporado ao estranho, à totalidade alheia. Totalizar a exterioridade, sistematizar a alteridade, negar o outro como outro é a alienação. (DUSSEL, 1977, p. 28)

 

A estratégia usada pela Ontologia da Totalidade na América Latina foi esta para matar, previamente é preciso destruir o outro em sua exterioridade sagrada e reduzi-lo a um ‘inimigo’.

            Quando o sistema oprime, acontece a dominação e uma alienação em todos os campos sociais, político, econômico e até mesmo religioso. A América Latina chegou a um certo esvaziamento de sentido da sua realidade,  de ir contra os valores que são apresentados dentro de “um papel de presente”, mas que na verdade é assustador quando se abre, é pura repressão do sistema. Quando menos se espera está determinado dentro do sistema de opressão: “O homem normal é hoje um reprimido” (DUSSEL, 1977, p.60).

            Mas o sistema trabalha de tal forma que acaba persuadindo a pessoa, que a realidade não tem como pensar sem ser a que está implantada:

 

[...] esta violência institucionalizada é justificada pela ontologia e pelas ideologias do sistema. É até consagrada pela virtude. O homem viola a mulher, prende-a em sua casa e a consagra ‘dona-do-lar’ [...] (DUSSEL, 1977, p.61-62)   

 

Portanto, a liberdade fundada na alteridade somente será a afirmação da exterioridade quando concebemos o outro como alguém: “O rosto do homem se revela como outro quando se apresenta em nosso sistema de instrumentos como exterior [...] Não é algo; é alguém”. (DUSSEL, 1977, p.47). Participa e está comprometido com a construção da humanidade, da pessoa humana, da história e do conhecimento, que também tem a sua contribuição e influência no meu mundo. Diante do que Dussel nos coloca, parece-nos que a liberdade só se torna viável e possível, quando reconhecemos o outro: “A alteridade como categoria filosófica na ética está embasada na relação face-a-face [...]” (MARIA, 1996, p.125). 

Este reconhecimento obriga-nos a respeitar, compreender e nos relacionar com o outro, como alguém que nos é distinto, mas que tem suas potencialidades, seu sentido valorativo, seus conhecimentos, sua história, sua própria maneira de ser e de viver as experiências particulares, que são diferentes das nossas. É o distinto, mas sempre igual enquanto mistério e particularidade incondicional na sua singularidade. Desse modo a liberdade fundada na alteridade é a afirmação da exterioridade.

 

 

 

2.3 Alteridade da finitude por determinação eletiva

 

Após termos visto que não vivemos no mundo de forma individualista, onde eu não basto a mim mesmo, mas que existe o outro, que é a exterioridade, podemos nos aprofundar agora algo que Dussel irá chamar de alteridade.

Uma das inquietações e preocupações de Dussel é a alteridade. Poderia se dizer que seria o ponto chave de sua filosofia da libertação, pois, sendo assim, ele privilegia o face a face, que é o contato primeiro, que antecede e dispensa as mediações, sendo essas mediações os entes que permitem a imediatez, a distância originária. “O ‘face-a-face’, como experiência originária, seria o ponto a partir do qual a ordem ontológica fica aberta” (DUSSEL, 1980, p.45). Portanto, quando saímos da nossa totalidade subjetiva e nos abrimos para o reconhecimento do outro, temos uma experiência fundamental do ser humano: o face a face – o encontro de um “eu’ e um “tu” igualmente pessoas.

A alteridade, tem seu início, não quando já estamos crescidos e formados que é quando aproximamos uns dos outros para se ter um relacionamento, mas a partir do momento em que somos concebidos, pois já acontece um contato com o outro, assim a alteridade acontece através de uma anterioridade:

 

Nascemos para a luz do mundo no parto. Nós não nos autocriamos. Mas o Outro, (o casal) é a nossa origem. E é também o Outro (pais, irmãos, mestres) que nos introduzirá em nosso próprio mundo como ‘totalidade de sentido’. Por isso, podemos dizer que o horizonte ontológico de nosso mundo foi aberto a partir da Alteridade. (AMES, 1992, p. 37).

 

Lembrando sempre que quando Dussel cita sobre esse aproximar, é a aproximação que acontece de uma forma simples e sem nenhum motivo de prepotência e rivalidade.

Não é um aproximar como Hobbes diz no Leviatã, o homem só busca companheiros por interesse, por necessidade, não se esgota no conhecimento: “[...] o poder-ser como ser-dado é essencialmente im-possivel, jamais o poder-ser dará uma Totalidade totalizada”. (DUSSEL, 1977, Vol. I, p.80).

Dussel, quando faz sua filosofia da libertação, se baseia na perspectiva de uma tradição semita, em que sua concepção é distinta da tradição ontológica fechada, partindo de uma perspectiva que transcende:

 

Se, na tradição filosófica ocidental, a ontologia  subjacente é a da Totalidade, negadora do Outro como outro, há uma outra tradição, a semita, que permite pensar um âmbito além do ontológico, da Totalidade: “o meta-fisico, o trans-ontológico; ‘o outro’ como além, sempre exterior de ‘o Mesmo’. (AMES, 1992, p.35).

 

            Temos como meta em nossa vida, seguir algumas determinações que são coerentes com o nosso agir finito. Seguimos fases em que quando nos encontramos crianças, agimos como crianças, adolescentes que teremos será a fase do descobrimento de uma realidade que está à nossa frente, e depois por ter passado uma fase de brincadeiras e compreensão da realidade, começamos os relacionamentos maduros com o devir a ser adulto, logo depois, irá se chegar a velhice; dentro desse espaço curto de existência, que é a finitude humana, mas dentro desse processo, teve algo que não mudou a essência própria o “ser homem”:

 

Desde o nascimento até a morte o homem é o mesmo, e, contudo tal mesmidade não é inalterável, ou seja, vai se verificando uma alteridade que não é mais do que o advento de sucessivos e históricos horizontes do fugidio poder-ser. (DUSSEL, 1977, p. 79).

 

As coisas não são como aparecem de imediato, mas sim, é através do relacionamento que acontece a “alteridade”, em que temos metas a serem alcançadas, pois o homem se constrói sobre um alicerce de relacionamentos, de convívios:

 

O homem não permanece na imediatez; as mediações se vão “depositando” e assim surgindo “outro” – alteridade dentro da totalidade. Essa alteridade é um sinal da finitude. Se o homem fosse o absoluto-infinito não deveria determinar-se numa direção, convertendo em impossíveis todos os restantes possíveis-passados; poderia ser totalidade. (DUSSEL, 1977, p. 80).

 

            Dussel, além de filósofo, é Teólogo. Traz consigo, em seu contexto de América Latina, uma base religiosa, pois utiliza passagens bíblicas para fundamentar suas teses. Dussel, conhecendo a realidade da América Latina e um povo místico, faz uma filosofia embasada na teologia ou vice-versa: “[...] ‘Javé falava com Moisés face-a-face como homem que fala com um intimo’. O ‘face-a-face’ é uma característica fundamental desse novo pensar”. (AMES, 1992, p. 36).

            Dussel diz que a alteridade acontece através de uma ação política, em que a filosofia deve exercer seu papel de reflexão e a política o papel de agir a própria práxis, onde que deverá tutelar o povo, e que se faz necessário o equilíbrio para que possa acontecer o bem comum para todos:

 

O ‘rei’ sem ‘profeta’ é um dominador de uma Totalidade fechada, injusta, violentamente assassina o Outro. O ‘profeta’ sem o ‘rei’ é um anárquico ou utópico de um projeto inexistente e irrealizável. [...] A filosofia sem incidências e compromissos políticos é uma utopia, é irreal e sofistica. (DUSSEL, 1977, Vol. II, p. 71).

 

            E esse compromisso leva o homem a agir no mundo, para que o seu pensar esteja condicionando ao objetivo pensado por si mesmo e não mais pensado e determinado pelo sistema que o manipula. As possibilidades de compreensão de mundo acontecem quando o sujeito inicia seu itinerário, tendo sempre em sua frente à liberdade como principio fundante:

 

O homem, por sua essência finita, tem a trágica necessidade de dever empunhar uma possibilidade. É essencial não perder nenhum dos termos complementares e antitéticos: a liberdade como indeterminação e a escolha como determinação. (DUSSEL, 1977, p.82).

 

            Sendo que o face-a-face necessita de algo que o fundamente, o que acontece quando já rejeitamos a idéia de Totalidade do ‘Mesmo’ e inicia a aproximidade com o ‘Outro’, mas para se ter essa proximidade, temo que utilizar a linguagem, é o que veremos a seguir.

 

 

2.4 A Escuta como fator fundante

 

Na grande era do Eurocentrismo, aconteceu que a proximidade não foi respeitada, pois o poder do Centro não reconheceu o diferente e aconteceram as atrocidades que a história, até muitas vezes, esconde.

O distanciamento da proximidade (Homem - Homem) cede lugar à cercania da proxemia ( Homem-Natureza), em que ocorreu um fechamento, sendo a metafísica dos clássicos uma pseu-metafisica, o outro se torna objeto, possibilidade de coisificá-lo.

Na filosofia da libertação de Dussel, o reconhecer e desvelar somente acontecem quando deixamos o “eu” saber em relação ao outro.  É que é o que ele me revela por meio da escuta:

 

O órgão humano privilegiado metafisicamente não é mais a visão (como os gregos), onde o ser é a fysis como totalmente vista, mas o ouvido. Só quem ouve o Outro, pode abrir-se à sua revelação e ao mundo por ela revelado. (AMES, 1992, p.37).

 

O desvelar do outro para  conosco, acontece então somente quando o escutamos, o ouvido sendo o órgão metafísico privilegiado e não mais a visão – como na ontologia da totalidade. Quando se olha para o negro, que é diferente do branco, e utilizamos uma metafísica clássica, que “reconheçamos” somente aqueles que estão conosco, o indiferente não é pessoa, “não tem alma”, é o não ser. Mas existe uma função para ele, ser servo, obedecer aos seus senhores.  

Dussel revela que quando a Totalidade se fecha, não se encontra espaço para o outro, que está fora da realidade que é apresentada, partindo de uma mesma concepção de Heidegger, que nos recorda que devemos pensar no outro:

 

Heidegger supõe, exatamente, o pensar ‘o Outro’ como o distinto, sem um ‘o Mesmo’ idêntico, originário no âmbito a partir do qual procede a diferença. A superação da modernidade, da ontologia do sujeito, não se alcança ainda na transcendência homem-mundo, se abre e é fundamento do prévio: ‘o Outro’. Se a Totalidade mundana em seu ultimo horizonte, o ser, é ontológico, trata-se agora de algo que se encontra além do ontológico (a fysis grega), e por isso poderia denominar-se: o metafísico, o transontolôgico; ‘o Outro além, sempre exterior de ‘o Mesmo’. (DUSSEL,1980, p.113)

 

Essa forma diferente de olhar o outro seria quando escuto o outro. Portanto, poderemos abrir-nos à sua revelação e ao mundo por ele revelado. O ponto de partida não é a unidade do Mesmo, mas a distinção, reconhecimento de um outro, e para Dussel, a filosofia da libertação acontece a partir da periferia, pois é lá que a libertação deve acontecer, porque quem está no centro, não sente tanto a necessidade do sistema, como os que passam como povo que está à margem, na periferia (América Latina).

 

2.5 Alteridade como mediação: Erótica, Pedagógica e Política

 

Ao passar da história, o homem foi se aperfeiçoando, saindo da caverna e criando novas formas de agir e pensar. Já se passou um grande tempo de civilizações que não existem mais, surgindo assim,  novas civilizações. Dentro desse período surgiu há cinco séculos passados, algo que os colonizadores “descobridores” irão chamar de “América”.

 

O continente Latino-Americano foi e é fortemente marcado pela exploração, por exemplo, o Brasil. Desde a colonização continua sendo explorado ininterruptamente; os nativos que aqui habitavam não foram respeitados como povo, cultura, etc. Uma tal situação é primeiro justificado por uma base teórica. O outro é revestido da impessoalidade do inimigo ou do estranho ou do inferior, então não há problema se o outro estiver sendo exterminado... Este "outro" está fora da totalidade; "não acrescenta" e "nem diminui" à totalidade. (disponível em: www.rubedo.psc.br. Acesso em: 09 set. 2008)

 

Temos como proposta neste item, demonstrar como a alteridade precisa ser o vínculo que deve circundar todas as ações humanas, que se dão no campo erótico, pedagógico, político e arqueológico. Quando a alteridade não tutela essas dimensões, tende a totalizar-se, a afirmar cada vez mais a opressão.

 

2.5.1 Erótica

 

Partindo da hipótese de que o homem deseja sua liberdade, é necessário que se funde uma alteridade de reconhecimento do outro, essa é a proposta de Dussel, construir ou promover a pessoa humana, dentro de uma visão integrada, pois o homem tem sua totalidade própria, visando uma mediação ética.

Há um momento na vida do ser humano em que sua relação com o outro parece ser mais profunda, é o que denominamos de: questão erótica, que é a dimensão do homem – mulher. Essa questão foi vista durante a história como algo sem valor, que emergia da parte masculina: “[...] o ego cogito tinha privilegiado o momento pensante do homem. [...] Descartes negou sua mãe, sua amante, sua filha: pretendeu o solipsismo total...” (DUSSEL, 1977, p.86).

Por muito tempo se teve a idéia de que a mulher tinha uma única função, de ser reprodutora. Em plena Idade Média se tem uma idéia ainda equivocada do papel da mulher na sociedade:

 

Tomás de Aquino explica que ‘a mãe só administra a matéria, mas o pai quem dá o ser ao filho’. ‘O mesmo’ é fálico; é o Eros que deseja o idêntico. Além disso, com o desprezo do corpo ia junto o desprezo da sexualidade. (DUSSEL, 1977, p.86).

 

 Após ter iniciado com os gregos, esta idéia de totalidade perpassou a história. Foi apenas no século passado que começou uma ruptura com as linhas de pensamento que contribuiu para a permanência do machismo, em que o varão sendo o ser e a mulher o não-ser:

 

[...] a relação entre o varão e a mulher na ontologia da totalidade. Só o varão, por ser principio ativo, é; a mulher, não é. É só o varão livre da polis. O menino é apenas em potência. O escravo e o bárbaro não são. Por isso, a erótica por excelência acontece entre ‘os mesmos’, isto é, entre os varões, porque a perfeição (ou a eudaimonia) consiste em amar o mesmo. (ZIMERMANN, 1987, p.185).

 

Essa idéia começou a ser discutida e trabalhada atualmente, pois se viu necessário repensar essa Totalidade e a proximidade, em que a história mostrava um caminho tortuoso: “fins do século XIX, começa uma revolução anticartesiana, antidualista, contra a antiga doutrina das substâncias: corpo e alma” (DUSSEL, 1977, p.86).

Temos duas realidades de vivência da erotização, que seriam a injusta e a justa, sendo a injusta, o que a América Latina vivenciou, na qual o Varão, visto como colonizador, violentou a índia e ocasionaram a revolta, porque a visão era de totalidade e não alteridade:

 

Esse choque entre o europeu conquistador e o indígena acaba na consolidação da dominação erótica do varão europeu sobre a mulher latino-americana. Com isso, passa imperar a relação de posse: a mulher é utensílio a mais do varão. Desse modo, ela perde o seu ser (ao ser coisificado). ‘No melhor dos casos, a mulher crioula define seu ser ao servir o varão. E a alienação erótica da mulher é concretizada pela dupla dominação de que é vitima: ‘dominada por ser latino-americana e por ser dominada por um homem (AMES, 1992, p.82).

 

A justa é quando se tem como objetivo humanizar,   “O coito sexual é humano e humanizante quando se dá dentro das condições de sua possibilidade própria: pelo desejo da realização do desejo do Outro na justiça, beleza e respeito” (DUSSEL, 1977, Vol. III, p.132). Seria quando não é mais a visão que dá sentido, mas o ouvido, em que a mulher é o Outro, o distinto e livre: “O ouvido é agora metafisicamente o órgão privilegiado, e não mais a visão, como na Ontologia da Totalidade” (AMES, 1992, p.157).

Quando falamos da sexualidade, ela deve ser compreendida na sua visão integral, não apenas um mero objeto que irá fazer da mulher (vítima) algo  secundário:

Embora o Eros seja inicialmente, sobretudo ambicioso, ascendente — fascinação pela grande promessa de felicidade — depois, à medida que se aproxima do outro, far-se-á cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais dele, doar-se-á e desejará « existir para » o outro. Assim se insere nele o momento do ágape; caso contrário, o Eros decai e perde mesmo a sua própria natureza. (BENTO XVI, 2006, p. 07)

 

 Foram os “amores” fragmentados, que se vivenciaram na América Latina, onde teve a exploração, e que se encontra nos tempos de hoje de forma degenerativa:

 

[...] a raiz da alienação está não no exercício erótico dual (como entende a Ontologia Totalidade), mas na totalização fálica ou clitoriana-vaginal da sexualidade. Neste caso, o pro-jeto erótico não é mau em si; é mau apenas quando o coito é simples mediação para a própria pulsão. (AMES, 1992, p.91).

 

 A sexualidade deve encontrar o seu próprio valor, sua liberdade de reconhecimento do distinto, fora de mim, abertura do Eu para o Tu: “...a libertação erótica consiste exatamente em deixar o outro ser Outro, em reconstituir sua liberdade”. (AMES, 1992, p.91). 

É através da alteridade, reconhecimento do outro, e é através da aproximidade que se pode conhecer e deixar-se conhecer. A violência não é mais a aproximação como se viu no processo histórico, e que se instalou de forma determinante na civilização. Mudou-se a forma de reconhecer o Outro: “A caricia é aproximação ou proximidade pressentida é progressão contida pelo pudor; é  um crescente e doce ‘tatear’ no qual se caminha, avançando e  retrocedendo, perguntando sem palavras ao Outro como outro se deseja a pro-posta” (DUSSEL, 1977, Vol. III, p. 93).

A erótica tomou uma nova dimensão, não sendo mais o desejo instintivo possessivo, mas uma nova forma de contemplar:

 

Pela metafísica da alteridade estabelece-se o principio da valorização, da existência, da autonomia, da autodeterminação tanto do varão como da mulher. Já não são di-ferentes (estaríamos ainda na lógica da totalidade), mas distintos. A relação, a comunhão, o Eros, o amor, acontecem na reciprocidade, no dar e receber simultâneos. (ZIMERMANN, 1987, p.186).

 

Portanto, o amor não fica somente na razão, ele ultrapassa esse campo, ele é visto pela vontade de desejo do outro (proximidade) sempre visando o amor responsável pelo crescimento do que está fora de si. O casal deve sempre estar em sintonia e jamais perder o carinho e afeto:

 

O coito é, por tudo isso, uma das experiências meta-fisicas privilegiadas do ser humano. É um acesso ao âmbito da realidade além da luz, do mundo, da ontologia. É um ir além da razão até onde o desejo nos leva como satisfação do desejo do Outro. Não é sequer um mero desejo ou amor-de-justiça, mas a própria realização de tal desejo na proximidade. (DUSSEL, 1977, Vol. III, p. 97).

 

Por fim, a erótica, que era vista antes como sendo apenas dentro de um mundo, que se reconhecia o que era igual a mim, ao poder do varão. Dentro da libertação da alteridade assume outra conotação, tem seu interesse visando o distinto e sempre novidade (mistério):

 

Se para a ‘erótica da Totalidade’ a perfeição humana é assexuada e todo ato fálico é necessariamente morte do pai ou do filho e incesto, pelo contrário a ‘erótica da Alteridade’ propõe a perfeição humana desde a sexualidade e como sua realização. (DUSSEL, 1977, Vol. III, p. 135).  

 

O que era degradante na erótica totalizada, na erótica da alteridade é completamente diferente, sendo o que prevalece é a realização do outro. É uma alteridade que visa o bem do outro, e não mais de forma individualista.

 

 

2.5.2 Pedagógica

 

É necessário, inicialmente, fazer a diferenciação da Pedagogia que conhecemos e a Pedagógica que iremos abordar neste subtítulo com a conceituação de Dussel:

 

A pedagógica não deve ser confundida com a pedagogia. Esta última é a ciência do ensinamento ou aprendizagem. A pedagógica ao contrário, é à parte da filosofia que pensa a relação face-a-face do pai-filho, mestre-discipulo, médico-psicólogo-doente, filósofo-não-filósofo, político-cidadão etc. (DUSSEL, 1977, vol. III, p. 153).

 

            Em síntese, diz-se Pedagógica toda uma gama de relações marcadas pelo “face-a-face”, enquanto a Pedagogia designa aquela relação educativa ocorrida entre mestre-discípulo. Nota-se, porém, que mesmo a relação entre mestre-discipulo pode, sob certos aspectos, também ser tida como Pedagógica no sentido filosófico.

            Para uma melhor compreensão da tematização que Dussel utiliza, é necessário compreender que, tanto a Erótica, Pedagógica e Política, estão interligadas: “A pedagógica [...] tem a particularidade de ser o ponto de convergência e passagem mútua da erótica à política...” (DUSSEL, 1977, vol. III, p. 154).

            Vê-se necessário o entrelaçamento desses três fundamentos para acontecer a verdadeira libertação. Na Pedagógica, temos a necessidade de se ter uma compatibilidade para  com o ‘outro’:

 

A abertura heterossexual de varão e mulher terá como fruto a abertura para o ainda não existente, para o totalmente outro na imanência: o filho. Este não será ‘o mesmo’ do pai nem da mãe, nem dos dois. Será o outro, o simplesmente outro, o novo. O filho nasce de alguém; alimenta-se em alguém; precisa de cuidados e da solicitude de alguém. É um novo ser, ainda quase ‘sem mundo’, mas que entra ‘no mundo’. Aí começa a pedagógica. (ZIMERMAMM, 1987, p.186)

 

            O filho será dependente dos pais de certa forma para a sua sobrevivência, mas já será o distinto, o diferente, aquele que terá sua própria existência e sua própria realidade de vida, contexto, cultura. Ele mesmo construirá sua existência, tendo o auxilio dos que estão ao seu espaço de comunicação e vivência.

            A relação pedagógica deve deixar transparecer a realidade entre o outro que surgiu e também com o ‘mesmo’ que é o casal, à atenção não deve estar somente no novo: “Na relação erótica, na medida em que varão e mulher se abrem um para o outro, funda-se originariamente também a relação pedagógica. De fato, abrindo-se um para o outro, abrem-se para o novo, para o outro”. (ZIMERMANN, 1987, p. 186).

            Funda-se cada vez mais neste enamorar, a alteridade, que é o reconhecimento da exterioridade.

            Para não se cair em uma visão fechada, visando apenas alguns aspectos e a perda de um todo que nos circunda, vê-se necessário ampliar a visão de pertença, pois temos que visar a libertação não somente de uma família, mas de uma América Latina:

A pedagógica [...] não só se ocupa da educação da criança, do filho, do discípulo na família erótica; mas também da juventude e do povo nas instituições escolares, universitárias, cientificas, tecnológicas, nos meios de comunicação. (DUSSEL, 1987, p.94)

 

Sendo assim, a pedagógica não  é apenas em uma realidade micro, se tem o risco de se tornar uma visão ideológica e individualista, tanto que Dussel, com os seus escritos mais recentes, visa uma ética da alteridade não apenas da América Latina (cf. DUSSEL, 2000, p.08), mas com uma abrangência mundial, pois os riscos aumentaram e preocupações são cada vez mais desastrosas.

            Temos de ter em mente que é a partir da erótica que a criança vivenciou, que a sua pedagógica terá seu resultado:

 

[...] o caráter do futuro cidadão depende da maneira como foi forjada eroticamente sua personalidade no lar, na proximidade com a mãe e na proximidade com a mãe e em relação à presença do pai e dos irmãos. (DUSSEL, 1987, p.95).

           

            É necessário, sendo assim, que a sua infância possa ter sido uma aproximidade real dos familiares para que o futuro cidadão possa ter aspectos virtuosos, para também construir o seu ideal de vida e de uma vida justa, pois: “A transmissão da cultura acumulada transfere-se graças a sistemas pedagógicos [...]” (DUSSEL, 1987, p.94-95).

            A criança, ao nascer, encontra tudo pronto, formado. Ela apenas tem o trabalho de seguir os preceitos que lhe são indicados: “Quando adulta, a criança será exatamente ‘o mesmo’ que foram seus pais, já que foi ‘projetada’ pelo mundo que a engendrou e formou”. (ZIMERMANN, 1987, p.187), pois a totalidade fechada concede somente isso para o novo ser que participará e agirá neste mundo:

Na totalidade fechada, a criança encontra o mundo já pronto, acabado. É o mundo dos pais, da família, da classe social na qual nasceu, da comunidade, da nação, do continente. Na  lógica da totalidade fará grande diferença nascer no palácio do imperador, na mansão do multimilionário, em país superdesenvolvido ou no subúrbio, na favela, na choupana do camponês abandonado, do índio ou do africano ‘primitivo’. Seu destino já está selado. (ZIMERMAMM, 1987, p.187).

 

            A criança já será determinada pelo o lugar de onde surgiu. Somente em momentos raros que terá possibilidade de sair do mundo que foi concebida, somente sairá se tiver uma grande diferença das outras crianças que fazem parte do seu convívio.

            A criança deve ter seu momento de fala, pois tem conteúdos que devem ser ouvidos, para haver uma libertação mínima: “Se a voz da criança, da juventude e do povo não é ouvida pelo pai, o mestre, e o Estado, a educação libertadora é impossível” (AMES, 1992, p.108).

Estabelecendo as diferenças, que são óbvias, que o Mestre tem muito a passar para o discípulo, mas não se tem nenhuma totalidade que deva suprimir: “[...] nenhum discípulo é puramente discípulo; nenhum mestre é puramente mestre.” (AMES, 1992, p.106). A aprendizagem acontece de forma simultânea, tem o perigo de se tornar o modelo vigente, pelo motivo de ter sido um povo escravo, querer passar a um povo dominador, que é o risco do povo latino querer se rebelar: “[...] a libertação pedagógica não pode ser a simples mudança de pólos, como na ontologia da Totalidade (o opressor passa a oprimido e o oprimido a opressor). O antigo oprimido seria o novo opressor, pois o tem introjetado.” (AMES, 1992, p.109)

Olhando para a realidade da América Latina, é necessário um recomeçar, rever a estrutura que rege nela, a mudança deve ser radical atingindo onde seja necessário: “[...] é preciso que as instituições, sejam familiares (onde  começa a pedagógica) ou as dos sistemas educacional oficial passem por transformações radicais. Devem ser atingidas em seus próprios fundamentos” (ZIMERMANN, 1987, p.188).

            Dussel diz que todo sistema (instituições, modelos, etc) tende a totalizar. Sendo assim, é necessário sempre revisar e procurar uma estrutura que possa ser o mais fiel possível com a libertação:

 

A construção dessas instituições (nova ordem) deve evitar os vícios da pedagogia dominação (burocráticos e autoritários). Deve, pois nascer de baixo para cima, desde a base, o povo. Isso implicaria, de imediato, na eliminação dos ‘sistemas pedagógicos vigentes’ que separam os trabalho intelectual (do médico, do professor, do técnico...) do braçal (do camponês, do operário, do auxiliar...). (AMES, 1992, p.110-111).

           

            A proposta de Dussel não é de fazer uma revolução como os seguidores de Marx fizeram, mas que uma nova construção possa tocar a realidade do povo. É somente quem sofre que consegue falar o que sente e vive.

 

 

2.5.2.1 Libertação Pedagógica

 

Para se atingir a libertação Pedagógica, Dussel terá como meta, rever a forma que está constituída a organização dos Estados e seus valores mediados:

 

O projeto pedagógico de libertação não é formulado pelos mestres; já está na consciência do povo; é o apriori metafísico do processo e ao qual se tende a partir de uma longa luta popular, o próprio projeto da ‘excelente cultura antiga popular’, diria Mao Tse Tung. (DUSSEL, 1987, p.101)

           

            O povo já tem formado em si a consciência de agir, mas suas idéias não estão bem formuladas, se vê necessário um intermediador: “A libertação do oprimido é realizada pelo oprimido, mas por meio da consciência critica do mestre, condutor: o intelectual orgânico, com o povo e no povo.” (DUSSEL, 1987, p.100). Não somente o Estado, em uma instância acima do povo, mas de igualdade, sendo necessário não absorver o que o sistema tem a apresentar: “...diz Dussel, que para construir, é preciso antes destruir o que o sistema introjetou no discípulo (o que ele é como alienado).” (AMES, 1992, p.110)

            Após ter dissolvido o que o Estado ejetou no individuo deve abrir-se para o diálogo: 

O ethos da libertação pedagógica exige que o mestre saiba ouvir, no silêncio e com respeito, a juventude, o povo. Só do discipulado paciente e entusiasta do próprio mestre poderá emergir o juízo adequado da realidade na qual se encontra o povo. O discípulo, juventude e povo admitirão igualmente o mestre que em sua vida, em sua convivência, em sua humildade e serviço transmite a consciência critica para afirmar os valores já existentes na juventude e no povo. (DUSSEL, 1987, p.102)

 

É somente escutando o povo que o mestre saberá como lidar e administrar aos seus devidos fins, o bem necessário, para resgatar no povo o seu verdadeiro valor, não mais de escravo, mas  de reconhecimento como Outro.

 

Uma pedagógica da libertação exige, pois, ‘a recíproca revelação do mestre e discípulo’. Embora não exista um povo que se autoconduza criticamente, nem um mestre que saiba tudo (ou vanguarda esclarecida), mas ambos se educando em comunhão, a tarefa do mestre não é a mesma. (AMES, 1992, p.109)

 

Será somente através da reciprocidade, que o Mestre reconhecerá o discípulo. A educação é um processo histórico e cauteloso, pois o desvelar é necessário para a construção da libertação.

Enfim, a busca de Dussel é sempre de procurar o que visa pelo bem de um povo não seja um poder isolado, “Estado Absolutista de Hobbes”: “[...] a libertação pedagógica deve ser o abrir de um âmbito para além do ser pedagógico vigente. Isso pode ser feito tanto desde o sistema pedagógico doméstico, quanto desde o sistema pedagógico político [...]” (AMES, 1992, p.106).

Para Dussel a libertação começa no processo pedagógico e culmina na política, sendo assim uma verdadeira procura de reconhecimento do outro, tendo a alteridade como fim último.

 

2.5.3 Política

 

Partimos para um terceiro momento que será a política. Sendo que: “[...] a palavra política tem  aqui uma significação ampla, e não restrita. Não inclui somente a ação política, profissional da política, mas toda ação humana social prática que não seja erótica, pedagógica ou antifetichista estritamente" (DUSSEL, 1977, p.74) pelo fato de a erótica e a pedagógica acontecer em família, a política terá um campo diferenciado, terá sua atuação no meio social.

Nosso ponto inicial é pensar nossa política a partir dos gregos até a modernidade, na qual estamos situados:

 

O ser de Pamênides e o Devir de Heráclito, via Aristóteles e Tomás de Aquino gerou, mesmo que por ação reativa, a Filosofia de René Descartes, autor do desenraizamento ontológico que engendrou o processo histórico que gerou a modernidade. (COSTA, 1992, p.16).  

 

Partindo da concepção de Descartes do “ego cogito sun”, penso logo existo, o ser humano não apenas existe porque pensa, mas sim porque tem uma racionalidade diferenciada dos outros seres vegetais e naturais. Aristóteles irá fazer um quadro de racionalidade, dizendo que o homem é um animal racional, somos seres pensantes, que temos uma racionalidade que transmite conteúdo e sistematicidade, que não diferencia  um ser humano do outro,

Sendo assim, nossa Política tem um caráter concebido a partir desses pensadores gregos: “Desde os gregos até hoje nos ensinaram e nós continuamos a ensinar que a política é a ‘ciência e a arte da administração da cidade, da coisa pública, do Estado.” (ZIMERMANN, 1987, p.188)

Em nossa América Latina, o poderio continuou o mesmo, apenas se trocaram os nomes:

 

Os aristoi (os aristocratas, os melhores) se reuniam na praça, no areópago (hoje nossos parlamentos) e discutiam o ‘bem comum’ deles próprios; enquanto isso, os hoi polloi (os muitos), os do povo: pequenos artesões, camponeses, servos, escravos trabalhavam, pagavam impostos (votados em praça pública pelos aristoi), e sustentavam a ‘maravilha’ do regime tão declarado ainda hoje pelos liberais inconseqüentes, donos do poder na maioria dos Estados. (ZIMERMANN, 1987, p.188)

 

E no meio dessa realidade, a relação se deu de uma forma de diferenciações, em uma América Latina posterior a estes pensadores, se construiu, ou melhor, que não reconheceu o que estava pronto e impôs sua forma de pensar: “É na relação política: irmão-irmão, povo-povo, nação-nação, que a lógica da totalidade mais fez sentir, historicamente, sua tirania.” (ZIMERMANN, 1987, p.188)

A tirania imperou e impera no nosso tempo, o que podemos dizer: “Tudo se faz porque se faz, se realiza por obediência, por disciplina, porque  sempre todos fizeram ´o mesmo´.” (DUSSEL, 1977, vol. IV, p. 121)

É necessário sair da comodidade. Partindo dessa constatação, Dussel irá dizer: “A partir da Exterioridade podemos formular um autêntico pro-jeto de libertação política, de-struidor da antiga ordem injusta e construtor da nova ordem de liberdade” (AMES, 1992, p.117).

Mas não seria um anarquismo, como vimos durante a história:

 

Pode ser equivoco, como nos populismos (desde Perón até um Getulio Vargas), ou revolucionário (como o de Fidel Castro ou dos Sandinistas). O anti-imperialismo, portanto, para ser realmente revolucionário precisa ser definido a partir das classes oprimidas. (AMES, 1992, p.123)

 

Aqui se tem um certo limite no pensamento de Dussel. Ao se tornar classes, corre-se o perigo de formar um sistema, e todo sistema se corrompe.

Dussel irá falar de um pro-jeto político, que parte de uma concepção de povo: “O pro-jeto político de libertação é a compreensão que o povo, o  oprimido tem de si mesmo como alteridade ou exterioridade, não enquanto é parte alienada no sistema, mas enquanto tem uma existência exterior ao sistema.” (DUSSEL, 1977, Vol. IV, p.122)

É a partir da exterioridade do povo, que Dussel formulará o verdadeiro valor que é o reconhecer a sua exterioridade do sistema: “... o projeto de libertação pode ser vivido e tido como próprio pelo político, só quando vive e se compromete com o povo no risco e na pobreza de sua exterioridade”.(AMES, 1992, p.117).

Um projeto de libertação popular pode efetuar realmente seu caminho quando se dão as condições conjunturais que permitem realizá-lo. “É tarefa da ‘prudência política’”.(AMES, 1992, p.126).

Quando Dussel fala de libertação, está dizendo do povo popular que é povo oprimido:

 

[...] a libertação Latino-Americano é possível se não chegar a ser nacional; e toda libertação depende, em ultima análise, da libertação popular  isto é, dos operários, camponeses, marginalizados. Se estes últimos não chegarem a exercer o poder, a Totalidade política dos Estados do ‘centro’ recolonizará as nossas nações e não haverá Libertação. (DUSSEL, 1977, vol. IV, p.101).

 

As classes oprimidas possuem, também, uma certa exterioridade em relação ao sistema, expresso na cultura própria, na sua língua, religiosidade, vida social.

A libertação deve ser integral. Dar liberdade ao oprimido como oprimido no sistema: “[...] a libertação latino-americana é impossível sem a Libertação popular. Dussel observa que a Libertação não pode ser só com a dialética negação da negação, mas a afirmação da exterioridade, origem da negação da negação”.(AMES, 1992, p.129). Quando Dussel fala em Libertação, significa simultaneamente a Libertação das nações periféricas e tomadas de poder pelas classes populares, para organizar realmente a formação social. O projeto de libertação visa algo novo: “Este projeto eticamente bom e justo pede uma nova Pátria” (DUSSEL, 1977, Vol. IV, p.137-138). Para que a ‘nova pátria’ seja realmente nova, é preciso que seja construída no horizonte de pro-jeto de Libertação.

 Dussel parte da concepção de uma retomada de consciência do próprio Estado: “O ideal reconhece Dussel, seria que o exército neo-colonial passasse a exercer a tarefa de exército de libertação”.(AMES, 1992, p.128). Mas como sabemos que isso levaria um processo gigantesco, se vê necessário a revolução da classe periférica.

Não se tem como suprir um Estado, pois a relação acontece dentro dele: “A relação prático-politica, irmão-irmão dá-se sempre dentro de uma totalidade estruturada institucionalmente como uma  formação social histórica, e também, por último, sob o poder de um Estado”. (DUSSEL, 1977, p.74). O nosso pensar deve ser a partir de dentro, e não querer montar uma nova ordem, que derrubará a que está em uso.

Para Dussel a mudança é necessária: “Sua decadência, justamente, produz-se quando o todo universal já não responde às novas exigências de uma nova idade histórica”.(DUSSEL, 1977, p.75).

E essa nova exigência é a que o povo oprimido perdeu sua voz e seu lugar, sendo necessário a mudança. Dussel enfatiza a alteridade como projeto vigente: “O projeto de libertação que leva um povo afirmativamente em sua cultura como alteridade é o bem comum futuro, a utopia, positiva, autêntica, humana, ética. É por ela que a própria vida é interpelada pelo corajoso como uma mediação” (DUSSEL, 1977, p.83)

Segundo Dussel, o povo está compreendendo a necessidade de fazer a revolução necessária: “Em toda periferia há uma lenta, mas ascendente tomada de consciência da necessidade da libertação; ou seja, do romper dos laços de dependência dominadora”.(DUSSEL, 1977, p.80).

 Sendo assim, a alteridade tem seu campo de atuação na política, quando o serviço é o seu fim:

Na lógica da alteridade em que o serviço, como doação gratuita, é a educação é a mediação prática por excelência e a categoria hermenêutica fundamental, a proposta é totalmente outra. Não é mais o irmão dominando e explorando o irmão, mas é a união de ambos buscando as mediações ôntica indispensáveis para melhorar a qualidade de vida para todos. (ZIMERMANN, 1987, p.189)

 

Enfim, o serviço como alteridade é o resultado da verdadeira justiça: “As classes oprimidas ou populares [...] só elas podem apresentar uma alternativa real e nova para a humanidade futura, dada a sua alteridade metafísica.” (DUSSEL, 1977, p.77). A alteridade através de um serviço deve ser a mediadora da sociedade, que se encontra descrente de atitudes e credibilidade do Outro, principalmente no campo político, em que o desejo de justiça é simplório e está em uma perspectiva de uma única busca, a si mesmo.

 Neste capítulo tivemos a oportunidade de ver que a metafísica da alteridade é uma resposta para o reconhecimento do outro, para aquele que é distinto de mim, e para esse entendimento deve-se negar a Totalidade vigente que nega a pessoa, e a faz instrumento. Ao refletirmos a alteridade na realidade da erótica, pedagógica e política, tivemos a possibilidade de ver que o outro será para mim sempre uma novidade, e será nessa novidade que eu irei ter a oportunidade de dar a chance de o Outro desvelar os seus desejos, é a abertura para a sua exterioridade que se torna recíproca.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capitulo III

Para um ethos na América Latina

Neste terceiro e último capítulo, iremos partir de alguns pressupostos de uma ética pautada em um ethos na América Latina, mostrando os fundamentos dessa eticidade, através do ‘encobrimento’, a modernidade exerceu com sua totalização. Iremos argumentar o bem ético em busca de uma justiça através de uma consciência étíca para se ouvir a voz do outro que interpela, para situar uma liberdade fundada na alteridade, como mediação da ética, mostrando a totalização de um ethos dominador para um ethos libertador.

 

 

3.1 Eticidade de um fundamento

            Iremos abordar como se dá a eticidade como fundamento para o reconhecimento da pessoa em uma perspectiva de consideração altruísta. Iremos ultrapassar as concepções dos pensadores que deram as suas contribuições relevantes.

 

A eticidade funda a moralidade; o fundamento ou a ex-sistência em seu sentido existenciário julga a práxis em seu sentido existencial. Mas isto não podia ser pensado por Heidegger ou pela ontologia, a eticidade da ex-sistência pende e depende da alteridade e não da totalidade (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 9).

            Quando se tem uma eticidade pautada em uma alteridade de reconhecimento do diferente, encontra-se um reconhecimento mútuo, não mais como no sistema vigente em que o outro é um mesmo. Na alteridade o seu valor  é reconhecido, não mais dentro da totalidade, mas para uma busca de reconhecimento.

Tomando a dimensão existencial do ser, deixando fluir a sua real natureza que é ser livre, fazendo com que o outro também seja livre numa relação de reciprocidade, em que a alteridade é assumida em sua integralidade (...)  constrói-se a partir destas premissas a eticidade, que é fundante do ser. (MARIA, 1996, p.103)

 

            A eticidade permeia todo discurso da filosofia da libertação, construindo um novo paradigma no âmbito da filosofia, pois se ocupa de questões concretas ligadas à pessoa e ao seu contexto de vida. A filosofia da libertação é asserção que surge de um contexto de indignação ética, em que alguns privilegiados se enriquecem à custa do empobrecimento de milhões; onde o aluno é massacrado por um sistema pedagógico que não o considera como sujeito. (cf. MARIA, 1996, p.23-24).

A ética precisa estar em concordância com o fundamento da existência que faz a pessoa ser humana dentro de sua liberdade, dignidade e alteridade. Assim, a ética depende da alteridade e não da práxis vigente em um determinado contexto. A realidade deve ser considerada eticamente, situando a ética como filosofia primeira, pois esta pende desde o fundamento da existência humana.

 

  1. A modernidade como Totalização

Após cinco séculos de existência de América Latina, a partir da Modernidade guiada pelo paradigma de Descartes, encontra-se uma profunda crise:

 

A modernidade [...] com o ego cogito se fecha solipsistamente numa Totalidade subjetual intransversal: o Outro como irmão desaparece e somente se recuperará como sócio do contrato, mas não será senão ‘o homem lobo do homem’ de Hobbes.... (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 23).

           

Após a desvalorização do homem, o aniquilamento da própria humanidade, do ponto de vista antropológico, a modernidade, com reflexo no tempo hodierno ou até mesmo uma realidade “pós-moderna”, o rumo e desejos se tornaram novos (negativos), esqueceram que o ser humano é um ser inacabado, que é um constante mistério para o outro.

Para a compreensão da ética de Dussel, é necessário ter compreendido alguns conceitos fundamentais, tais como: centro, periferia, totalidade, alteridade, política, erótica, pedagógica, exterioridade, ontologia, metafísica, analética, pois a ética irá perpassar todos esses campos.

Em algumas de suas obras, Dussel mostra-nos que a Ética da Libertação compreende a dimensão de um lugar ou do momento da exterioridade, em cujo espaço se dá a "afirmação do oprimido como outro, como pessoa e como fim", sendo constituída por duas categorias fundamentais: a categoria ontológica da "Totalidade" e a categoria metafísica da "Exterioridade" (alteridade).

O mal ético, que seria a exclusão do que me aparece, se dá quando a categoria da "Totalidade" se manifesta de diversas maneiras e abarca o mundo da vida cotidiana, a totalidade do ser, a universalidade dos sentidos e das práticas, a mundialidade capitalista concreta e abstrata: “Pela razão o homem é pensado. Pela ciência o homem é experimentado. Pelo capital o homem é comprado”.(COSTA, 1992, p.16).

A ética que Dussel irá identificar é um descobrimento do pobre, que nas suas últimas obras irá enfatizar a “vítima”:

 

Um ‘absoluto Outro’ seria, nesta Ética, algo como uma tribo amazônica que não tivesse tido nenhum contato com a civilização atual, hoje praticamente inexistente. A liberdade do Outro – seguindo aspecto, a Merleau-Ponty – não pode ser uma incondicionalidade ‘absoluta’, mas sempre uma quase-incondicionalidade referida ou ‘relativa’ a um contexto, a um mundo, a factilidade. Nesta Ética, o Outro não será denominado metafórica e economicamente sob o nome de ‘pobre’. Agora, inspirando-nos em W. Benjamin, o denominarei ‘a vitima’ – noção mais ampla e exata. (DUSSEL, 2000, p.16-17) 

 

A exigência de uma nova ordem fundante implica o desafio de romper com a "totalidade" ontológica do pensamento moderno europeu, caracterizado por um idealismo individualista e por um subjetivismo centrado no "Eu Absoluto". Essa visão (absoluta) é declaradamente eurocêntrica, posto que considera apenas as condições do ocidente, isto é, da Europa ocidental. Assim é também a visão  de Hegel, defensor do Espírito germânico, o “Eu absoluto”, como o espírito do novo mundo. (cf. DUSSEL, 2000, p.51)

Sendo assim, temos como objetivo esclarecer como se dá a ética de Dussel dentro dos possíveis campos para emancipação do ser humano.

Dussel, a partir de suas reflexões, viu a necessidade de uma amplitude de seu pensamento, não mais com uma realidade de América Latina, mas uma abrangência global, poderia se dizer mundial:

 

[...] aquela obra intitulava-se ‘Para’ uma ética... Esta, porém, é uma ´Ética’, simplesmente [...] denominava-se ‘...da libertação latino-americana’. Agora pretendemos situar-nos num horizonte mundial planetário, além da região latino-americana...(DUSSEL, 2000, p.14).

 

Dussel atualmente tem uma visão não somente da América Latina, mas uma visão planetária. Não teremos a pretensão de fazer uma pesquisa que vá além da América – Latina, deixando em aberto para os próximos aventureiros tomarem este caminho.

 

3.3 O bem ético como justiça

 

A preocupação de Dussel é sempre com a vida humana, buscando constantemente uma Ética de conteúdo material de validade “universal” que possibilite ao homem uma vida em justa harmonia com seus semelhantes.

 O processo de construção de uma nova ética e de um novo conceito de Justiça envolve a preliminar compreensão do ser do homem no sentido que brota da nova idéia, aberto para o diálogo com o outro: “[...] o estado – de – justiça é o serviço ao Outro (humano), serviço que deriva do reconhecimento do face-a-face como sendo a relação inter-humana por excelência.” (VELASCO, 1991, p.77)

O homem justo é aquele que move a história, abre a totalidade ao Outro, abre-se, por bondade, compreensão ao Outro como outro gratuitamente, por amor-de-justiça. Um exemplo típico de tal amor é o "bom samaritano": “[...] o samaritano se abriu a outra ordem, a uma ordem trans-ontológica, meta-fisica: a uma exterioridade que é o ‘outro’ como outro; transversal ao horizonte de ‘o mesmo’ [...]” (DUSSEL, 1977, vol. I, p. 138).

O samaritano é alguém que descobre o outro ferido, machucado. Demonstra que o amor-de-justiça vai além da raça ou nação. Além da cor ou nação todos têm um direito que é inalienável: o direito à vida, à liberdade, à autenticidade.

A ética em Dussel é uma questão essencialmente histórica. A história é compreendida a partir do ser negado, a partir de fora, da exterioridade do ser dos sistemas. Segundo Dussel, o pensamento crítico sempre nasceu nos espaços periféricos dos sistemas, inclusive geograficamente falando. Assim foi com o pensamento pré-socrático, com o pensamento medieval, e até mesmo com o pensamento moderno de Descartes ou Kant:

 

Foi Descartes o primeiro a afirmar o ego-sujeito como totalidade constituinte do Ser das coisas; mas o notável é que o ego transcendental cartesiano, historicamente se resolvia no sujeito-europeu-branco-varão-adulto... (VELASCO, 1991, p.83).

 

Ao afirmar um ego-sujeito, o pensamento europeu classifica o que está dentro do seu sistema como sendo os idênticos ‘o mesmo’. Sendo assim, afirma o império da razão instrumental (Europa e Estados Unidos). Com este argumento é negado o que está fora do sistema totalitário, considerado diferente, a periferia, a América Latina, subdesenvolvida, terceiro mundo.

O conjunto de uma ética libertadora de Enrique Dussel pode ser lido como uma tentativa de pensar, com coerência especulativa e preocupação prática, desde nossa ‘situação’ latino-americana, a questão da justiça. Em função das peculiaridades do período contemporâneo, bem com sua complexidade. O diálogo estabelecido entre Dussel e as principais correntes filosóficos atuais, sempre tendo em vista aclarar a importância da reflexão  sobre a Ética e a Justiça.

 

 

3.4 A consciência ética como ouvir a voz do outro

 

Neste subtítulo, iremos ver a importância de se ter uma consciência ética, para como o outro, já não mas através da visão, em que eu apenas olho o outro e parto de minhas concepções (centro), mas de uma abertura que transcenda o outro através de sua voz e da escuta recíproca.

A consciência ética está comprometida com uma reflexão que parte do mundo e da realidade, com as exigências de justiça e emancipação dos oprimidos de todos os tempos e lugares, principalmente, segundo Dussel, dos povos da América Latina, sendo essa consciência ética um diálogo equilibrado entre a voz do outro e o ouvido aberto da totalidade. Isto é possível por causa do sim-ao-outro, ou, por causa do amor-de-justiça. Assim o outro pode revelar-se como algo novo; apropria-se da dignidade que tem; (por isso sua voz passa a ser ouvida, interpretada): "A consciência ética é então ouvir-a-voz-do-outro; a voz ou palavra que exige justiça, que exige seu direito, [...], quem ouve a voz do outro só pode lançar-se no caminho da justiça" . (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 69).

Por outro lado, a não consciência ética significa eliminar o Outro, silenciar a sua voz, expor-lhe ao regime de dominação e repressão, não compreendendo o seu modo de ser, hábito, cultura. A não consciência ética se expressa na atitude do conquistador, do colonizador, fechado em sua totalidade etnocêntrica, querendo impor seus costumes, sua cultura. A América Latina sabe quais as conseqüências deste "ethos dominador":

 

Quando o conquistador dizia aos chibatas de Nova Granada: "Dai-me ouro, dai-me ouro" e matavam índios e sacrilegamente abria os túmulos para roubar tal ouro, não era a voz ética da consciência, mas a própria tentação dominadora. (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 70).

 

Saber escutar a voz do outro é deixá-lo ser Outro, autêntico; deixar que o seu modo de ser interpele, provoque a totalidade do Mesmo; abrir a totalidade fechada à estranha voz do outro: oprimido, pobre, explorado; da mulher oprimida em uma sociedade patriarcal, do filho, do aluno que muitas vezes é impedido de pensar com autenticidade e caminhar com “suas próprias pernas”.

A atitude de respeito e disposição para servir-lhe em suas necessidades, ter uma consciência ética é o necessário para se ter o que é justo e verdadeiro, que se dá no reconhecimento:

A ‘consciência ética’ é um outro complicante, uma analética unidade de dois momentos: a voz-do-outro e o ouvido aberto à totalidade. A abertura do ouvido que nos permite ouvir o Outro é possibilitada pelo sim-ao-outro ou amor-de-justiça [...] (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 68).

 

Quando se tem consciência ética, o bem se torna a afirmação do outro. O homem bom é aquele que é realizado em suas potencialidades, em seus projetos, consegue equilibrar teoria e práxis em favor do Outro.

 

3.5 Do ethos à ética meta-fisica latino-americana da libertação

O termo ethos no grego, designa costume, ou “moradia, o lugar onde se vive”, o caráter, o modo de ser no mundo, a origem dos valores; as normas que estruturam uma civilização, um povo, de um grupo social ou simplesmente, de um indivíduo, leis regentes da conduta ou do agir humano, e que se encontram, enquanto produção cultural do homem, em processo de constante construção e reconstrução no curso histórico da existência humana. Ethos com épsilon inicial designa o hábito (hexis) de agir de uma determinada maneira. Tal maneira, para ser ética, deve ser aquela voltada para a efetivação do melhor, isto é, do Bem, pelo qual o ethos se transforma no meio de auto-realização do homem.

 

O ethos é o ponto de partida para a compreensão do que funda o “humanum”, ou seja, ele é como que o alicerce que sustenta o humano como fonte burbulhante e dinâmica, não estática, o ethos está na origem das normas e da própria diversidade das culturas e religiões. Vemo-lo como a marca primeira do criador impressa nos seres humanos. (AGOSTINI, 1993, p.21).

 

O ser humano, no seu dia-a-dia sente a necessidade de organizar a sua vida. Isto compreende as suas relações fundamentais: a si mesmo, o mundo, o outro e a transcendência. A cada dia apresenta-se um novo e diferente desafio, e é próprio do ser humano dar a resposta adequada conforme o lugar, tempo, costumes etc. Cada grupo, aos poucos, cria um modo próprio habitual de compreender o mundo, isto é, ethos.

O ethos emerge em um mundo cultural, de um grupo, em um período da história. As pessoas, no dia-a-dia diante das coisas adquirem hábitos, atitudes, modo de agir, e dão significados às coisas e atos. Isto constitui uma maneira de ser e de habitar o mundo. “O ethos é a maneira como cada homem e cada cultura vivem o ser. Se há história do homem, há também história do ethos”. (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 9).

O ethos é o lugar onde se elaboram os costumes, a moral etc; de lá também emana todo o mundo simbólico, mítico, os valores que sustentam a vida de um povo.

Sendo assim, ethos está na raiz de cada cultura, de cada ser humano em particular, portanto, precede a qualquer regulamentação ou norma moral instituída . Neste sentido, percebemos a clara diferença entre ethos e ética. O primeiro é anterior a qualquer regulamentação instituída, enquanto a ética pertence à ordem da racionalidade. A ética se distingue do ethos e também da moral pelo seu caráter mais reflexivo, a respeito da essência das normas na sistematização dos valores.

 

Se quisermos compreender concretamente as normas sociais, as prescrições morais e as regras jurídicas, não podemos deixar de as referir a este fundo donde elas procedem e donde elas continuam tirando ao mesmo tempo sua eficacidade propriamente prática e o seu sentido efetivo. As normas práticas ou jurídicas só são sociologicamente interpretáveis quando referidas ao seu ethos concreto, isto graças à restituição tão precisa quanto possível a este fundo simbólico de evidências coletivas, atravessando por negociações e estratégias pessoais e coletivas que aparecem em termos de papéis, de funções e de poder . (AGOSTINI, 1993, p.21).

 

O acesso ao ethos faz-se através da escuta do outro, depois de cessar todas as nossas evidências. O ethos, na maioria das vezes, não é verbalizado, vive-se. Por isso seria muito difícil compreender o ethos através de biografias, informações, pré-compreensões etc.

Portanto, é necessário “entrar no mundo do Outro”, “viver o mundo do Outro”, tentar compreender o mundo do outro a partir do outro mesmo. Só assim é possível descobrir quantos e quão preciosos valores há no Outro.

Falando especificamente com relação à América Latina, infelizmente isto não aconteceu.

Os conquistadores dispuseram a seu bel prazer dos bens e das vidas descobertas nas novas terras. Para nada se levou em conta o direito dos aborígenes sobre suas vidas, sua religião, sua cultura e suas terras. Para a totalidade não existe nada mais senão ela mesma; tudo o que percebe e o que valoriza é desde a sua própria mesmidade. O neo-colonialismo posterior e a atual dependência econômica de nossos povos prolonga a prática dominadora da mesmidade: nenhum povo dependente pode ter outro destino histórico ou criar outro projeto do que aquele que é imposto pelo império. (AGOSTINI, 1993, p.42).

 

Esta mesma perspectiva hoje se repete no plano econômico, político e cultural. O Outro “parece um mero receptor, consumidor” de produtos industrializados “pela totalidade”, de planos político, modelos pedagógicos, músicas, teatro, filmes, linguagem, gírias etc. Enfim, o Outro está encontrando dificuldade para ser realmente Outro. Nosso tempo hodierno nos leva a termos grandes desejos que são o consumismo desenfreado, que através de várias mudanças perdemos o nosso verdadeiro sentido de povo, o verdadeiro ethos com o seu respectivo valor que é o original, que é o semita.

Ao partir do ethos dos povos latino americanos, Dussel compreende seus valores e se compromete com o resgate da vida dos oprimidos. A essa filosofia importa compreender os valores,  a  religiosidade  e  a  sabedoria  dos  distintos  povos  que  tecem  nosso  ser  afro-latinoamericano.

Embora dos europeus terem dominado esse continente pelas armas e pela imposição dos  elementos  de  sua  cultura,  trata-se  de  reconhecer  que  esse  domínio  não  se realizou  de  modo  absoluto.  Na  América  Latina,  apesar  do  predomínio  generalizado  de elementos  da  cultura  européia,  sobrevive,  conservado  e  sempre  reinventado  o  ethos  das maiorias oprimidas que marcaram a nossa cor e o nosso sangue.

 

 

  1. A liberdade fundada na alteridade como mediação da ética

 

A liberdade é a realização do poder-ser do homem como intotalizável. É um ser inacabado. Para Dussel, o homem, para ser livre, precisa afirmar a sua transcendência em relação ao mundo. É uma exigência da própria estrutura humana. É o “poder-ser” e não o ser já-dado, determinado.

No entender de Dussel, as ações humanas, intelectuais, artísticas, são que viabilizam e  reconhecem o valor da possibilidade:

Hoje temos consciência de que o trabalho é atividade tão importante para o estudo do homem como o conhecimento, a liberdade e a linguagem. Hoje compreendeu-se que ‘o homem é essencialmente artifex, criador de formas, fazedor de obras [...] que a natureza do homem é o operador’. (MONDIN, 2005, p. 198)

 

É o homem quem descobre o valor e o sentido como possibilidade, pois algo tem sentido enquanto favorece o “poder-ser”. Sem o homem, não há sentido, nem valor. Mas, não é o homem quem atribui valores. Apenas os ‘descobre naquilo que se apresenta como possibilidade’. Assim, tem ‘mais valor’ a mediação que melhor possibilita o advento do “poder-ser”. No bojo da existência humana, há três horizonte fundamentais: o do ser adveniente (“poder-ser”); o da facticidade (o ser já-dado) e o dos possíveis, que o homem descobre através do “poder-ser”, que procura realizar existencialmente.

 

Quanto mais liberdade se tiver no deixar ser as possibilidades para que se manifestem sua referência ao “poder-ser”, tanto mais possibilidade haverá de escolher. Porém, o homem por essência infinita, tem a trágica necessidade de dever empunhar uma possibilidade. Por isso, ‘a eleição de uma possibilidade é um fechar o caminho a todas as demais’. Toda possibilidade, uma vez eleita e realizada, é já um ser-dado e parte do ser do qual sou responsável. Em virtude disso, as possibilidades empunhadas comprometem o destino, a história, o futuro e o ser do homem. (AMES, 1992, p.48).

 

Na alteridade, a exterioridade engloba o “espaço humano do outro”, da alteridade de uma nova subjetividade presente em cada pessoa enquanto coletividade. Sendo que a metafísica da alteridade, enquanto modelo originário que rompe com a injustiça e com a “negação do ser do outro”, inscreve na história a exterioridade do outro, configurando, pela práxis, refletida igualmente no campo teórico, uma nova lógica de convivência humana. Portanto, a liberdade humana é fruto de um compromisso e de uma ação libertadora reconstruída pela alteridade: “A liberdade é a realização do ser do homem que é “poder-ser” futuro. Decide-se na escolha ampla e esclarecida da compreensão de seu próprio ser como “poder-ser”.“(AMES, 1992, p.53).

A liberdade do Outro é um momento metafísico porque se funda em um projeto sempre futuro não conceitualizável. A determinação da pessoa não terá possibilidade, pois o ser humano é um ser inacabado, sendo que Dussel irá propor uma “filosofia nova” e para que o projeto seja novo, precisará contar com a metafísica da criação, da liberdade, da alteridade, e com um método analético (amor-de-justiça) que lança o processo para a sua novidade.

O ‘caminho da libertação’ aparece como instaurador da paz futura para o pobre e como perigo e risco de desaparecimento para o Todo. A filosofia nova não seria recomeçar tudo de novo o que a história já apresentou, não seria negar os pensadores ocidentais (apesar da fragmentação de alguns pensadores), mas os que deram uma contribuição significativa.

Dussel terá como princípio, pensar a partir da América Latina, evitando uma filosofia da identidade e do saber absoluto (centro), não partindo de um cogito, mas da realidade daquele que sofre. Irá afirmar a dignidade humana concreta existente à exterioridade que foi sempre historicamente oprimida, violada e não-respeitada, quer na figura do índio (durante a conquista), no colonizado (séculos subseqüentes), no mestiço e no crioulo (após a emancipação), quer no marginalizado (camponês ou favelado) ou no todo subnutrido e alienado de nosso tempo. É a exterioridade suprema, impossível de ser objeto na totalidade.

Então sua proposta será de uma filosofia da finitude e do saber sempre aberto (analética) essa que será sua grande novidade em um âmbito filosófico: “[...] uma das novidades de Dussel consiste na descoberta e valorização do conceito de ‘rosto do pobre’ [...] ” (ZIMERMANN, 1987, p.198), que se dá através da alteridade, definida sempre a partir da compreensão existencial do ser e do outro, alcançar a lucidez e colocar-se a serviço. É necessário uma filosofia que liberta e ele procurará através de uma extensão da filosofia refletir um agir com uma práxis, pois a ‘lógica da alteridade’, mediada pela ética, é necessária para compreender o Outro:  

Por isso ‘a liberdade (do Outro) é mistério e não pode ser submetida a uma racionalização’; isto é, nega-se ‘a identificação da vontade com a razão’, já que o amado como Outro, livre, supera o âmbito da totalidade como mundo, como ontologia ou como inteligibilidade. (AMES, 1992, p.113).

 

            A alteridade ética, para Dussel, é a capacidade de escutar a voz do outro, mas somente a escuto quando deixo o outro falar, que é a abertura para a exterioridade, reconhecimento do outro como um ser que comunica e interpela.            Quando não se tem alteridade ética significa ter matado o Outro. A ética tem como fundamento o ser do homem que se compreende existencialmente como ‘poder-ser’ o próprio horizonte do seu mundo. É futuro e se dá dentro de um projeto de vida, respeitando sempre a liberdade do outro.

A liberdade do outro deve fundar-se na confiança, que afirma o outro como anterior. É deste nada que irrompe  o outro como liberdade criadora e provocadora de justiça:

 

A liberdade humana é fruto de um compromisso e de uma ação libertadora; é na verdade uma história. Os dois limites da liberdade, que, portanto a negam, são, de um lado, a Totalidade plenamente totalizada ou o total desaparecimento da totalidade (já não é homem, seria Deus) e também teria liberdade finita, humana. A liberdade humana desenvolve-se, então, entre a natureza e a divindade, sem ser uma nem outra, aproximando-se do físico (o mal) enquanto Totalidade Fechada; aproximando-se do Outro (o bem) enquanto ‘serviço’ metafísico. (AMES, 1992, p.115 – 116)

 

 

 Se a felicidade é a realização plena do ser humano, realização querida, amada e sentida como tal, então o homem virtuoso pode ser feliz na vida presente. O ser do homem, em sua essência, é diferente das restantes coisas do cosmos, dos vegetais e animais por sua incessante abertura à Alteridade, à história futura em busca do infinito: “aquele que vive a aventura da passagem da destotalização de um estado de coisas para a novidade do ‘serviço’ do outro como criação, procriação e ‘trabalho’ constituinte da ordem justa [...]” (AMES, 1992, p.124-125).

 A construção da liberdade acontece no mundo, e nunca estará acabada, pois é sempre gradual: “O homem tem como sinal de seu ser uma essencial intotalização; é em seu ser um movimento de totalização nunca acabado”. (DUSSEL, 1977, vol. I, p. 48).

Quanto mais o ser humano conseguir aperfeiçoar e fazer o seu ser, que recebeu ao nascer, progredir, mais livre será. Este percurso deve ser realizado sob a ótica do serviço, uma vez que o serviço é a práxis libertadora que tem o outro como fundamento e ponto de partida.

 

 

3.7 Para um Ethos da Libertação  latino-americana

            Contextualizando a América Latina dentro de seu período histórico, podemos perceber que o aspecto valorativo que foram assimilados por ela, teve vários desvios. O poder exercido pelo ‘modelo Europeu’ encheu os nossos olhos de esperança, mas os valores foram revertidos em dominação. O poder trouxe seu ethos de dominação, dentro de paradigmas já formados e postulados. Cabe a nós identificarmos esse poderio.

3.7.1 O Ethos Da Dominação

Neste subtítulo, iremos verificar como que se dá o poder de dominação e como que esse poderio se transforma em uma arma destruidora, uma verdadeira cultura de morte, não somente física, mas material, espiritual que é real e factual.

Já se tornou habitual a dominação dentro da totalidade, por isso: ethos da dominação. Não é algo novo, esporádico, mas “é normal”, tornou-se “habitual”. Este “habitual” é algo adquirido, visto que, ninguém nasce com o “hábito” de dominar. Isto é, algo que faz parte do ethos de um povo, que é: “o fruto dos modos de habitar o mundo” (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 98).

  Os vícios do dominado, o oprimido são elevados aos níveis de virtudes, sua humildade é exaltada. Tal processo não valoriza o Outro como exterioridade:

 

O pior vício do dominado é o ressentimento contra o dominador. O ressentimento e o auto-envenenamento anímico por repressão de um ato querido de vingança que o fraco não pode realizar em sua impotência contra o seu dominador. (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 101).

 

Isto não quer dizer que o oprimido não quer libertar-se, ele não pode, não lhe é permitido que o faça, pelo fato de a desigualdade ter uma disparidade bem considerada. Assim, a impotência passa a ser chamada bondade; a submissão forçada é chamada obediência, e forma-se um ethos onde o oprimido precisa aceitar-se como oprimido para sobreviver, e, repetirá a opressão sofrida se algum dia chegar a ser dominador, em alguns momentos, como não pode ultrapassar seus limites no serviço para com o patrão, irá impor seu poder sobre sua esposa e seus filhos, através de atitudes imorais, como agressões físicas e verbais, gerando mais um forma de violência:

 

[...] vontade de domínio não é senão a formulação ontológica do “eu conquisto” hispânico ou do “eu penso” cartesiano. Sua virtude suprema, o bem como a guerra, o guerreiro injusto e conquistador como herói pátrio é a mais cega, opressora e desumana das atitudes possíveis: o ethos da dominação que apresenta como virtude insigne o assassinato, a violência, ou melhor, a violação do Outro. (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 104).

 

O ethos da dominação origina-se do fechamento da totalidade em si mesma. No ethos da dominação, os vícios do dominado passam a ser considerados virtudes, pelo dominador.

A ética da libertação procura, junto ao oprimido, libertá-lo; procura desvelar o “caráter de naturalidade” dos atos do dominador; procura ver que nem sempre a legalidade é justiça.

 

 

3.7.2 Ethos Da Libertação

 

O ethos da libertação nos leva a uma nova perspectiva de vida através da própria história. Mostra-nos caminhos a serem percorridos para se ‘começar’ o processo de libertação altruísta.

No ethos da dominação, o conquistador, o guerreiro, a vontade de poder são exaltados. Oposto a este ethos está o “ethos da libertação” que se caracteriza pelo lançar a história para o futuro, para o novo, para o momento criativo, para o reconhecimento do Outro; sabe ouvir a voz interpelante do Outro. O ponto de apoio do ethos da libertação são as virtudes reais do oprimido (ocultas ao dominador) e por estes são vistas como incultas.

A virtude libertadora aparecerá contrária à ordem vigente: será subversiva, anarquista, nova etc: “O ethos da libertação é um modo habitual de não repetir ‘o Mesmo’ (conteúdo do agir) porque se trata do hábito de adotar a posição primeira do face-a-face” (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 130).

Assim, o Outro sempre aparece como novo e revelador de si mesmo, pois, esta é a virtude do ethos da libertação: deixar o Outro existir como Outro, deixá-lo existir além da totalidade.

O fundamento do ethos da libertação é o amor-de-justiça, isto é, um modo de viver o mundo, cuja visão ultrapassa os limites da totalidade. É uma atitude de respeito, amor livre, criativo, simpatia ao Outro como Outro. “Esse amor do face-a-face, do Outro como Outro é ato supremo do ser humano e nenhum ato compreensor, nem interpretador pode assemelhar-se a ele”. (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 139).

Um componente essencial do ethos da libertação que se origina do face-a-face é a confiança. Esta, possibilita a interpretação da voz do Outro. A confiança é obedecer a voz do Outro, ter fé na alteridade; “é a negação da totalidade como identidade do ser e do pensar”. (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 141).

Outro momento originário do face-a-face é viver a utopia da libertação, isto é, a esperança da libertação do Outro, do miserável. Ela se funda naquilo que o Outro é e naquilo que possa fazer a partir de si mesmo como Outro; é um momento de afirmação do futuro como Outro, seu projeto. A esperança está internamente relacionada com o futuro do Outro. Portanto, o amor-de-justiça, a confiança e a esperança são as posições do ethos da libertação perante o Outro. 

O ethos da libertação deve levar o individuo a ter como resultado o ‘serviço’ ao Outro que se expressa na prática da justiça, na prática do amor como hábito que tende a dar ao Outro o que lhe corresponde: enquanto Outro, enquanto pessoa inalienável: “Justiça é um colocar à disposição do Outro os entes que podem saciar a sua fome, mediar sua libertação cultural e humana integralmente”. (DUSSEL, 1977, vol. II, p. 149).

O serviço ao Outro também se expressa na coragem do libertador que arrisca sua vida em defesa da vida do Outro; empenha-se por saciar-lhe a fome.

A prática da justiça, o ser capaz de entregar a vida, trabalhar para saciar a fome do Outro é um constante desafio para todos nós onde estivermos. O Outro sempre nos interpela a uma mudança de visão, mudança de mentalidade.

Enfim, dentro do nosso contexto de América Latina, podemos perceber o quanto fomos persuadidos através de “ideais” que nos levaram a sermos o que somos, em certos aspectos dependentes e condicionados pelos sistemas totalizantes que nos circundam a todo momento. Mas o que nos assusta é ficarmos acomodados com essa ‘doutrina’ que recebemos e não conseguir pensar de outra forma, sem ser a que exportamos.

Sendo assim, a filosofia da libertação ou da alteridade, procura se desvencilhar-se dessa pedagogia do “MESMO” e dar uma nova resposta, mostrando o “Outro”, que será através do reconhecimento da exterioridade do que me aparece ‘outro’, para que nos leve a uma alteridade como prática de justiça.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Considerações finais

 

Após chegarmos ao final do presente trabalho, podemos dizer que está concluído? Jamais! Não podemos dar por encerrado esta discussão sobre a filosofia da libertação e libertação do povo, é sempre um assunto para se discutir e propagar para aqueles que estão aliados e alienados ao poder, sendo que este poder destrói toda possibilidade do ser humano transcender.

Nosso estudo deteve-se à questão de que toda relação de dominação é marcada por “vontade e poder” e repetivelmente coercitiva, e na América Latina, por ser um povo colonizado não é diferente, onde o poder (Centro) dos Magnatas prevalece sobre o povo (periferia), povo esse oprimido e sem vez em uma sociedade que não o reconhece como sendo “o outro”.

A filosofia da libertação, que tem Enrique Dussel, como um dos seus pioneiros, irá fazer essa abordagem através de um contexto histórico apresentando, como aconteceu esta dominação e como ela se encontra em nosso tempo presente, que continua sendo escravizada, por antivalores. Para desmistificar essa enganação, partimos da possibilidade de procurar refletir com a filosofia que liberta através de uma hermenêutica, trazendo com a práxis a libertação do povo oprimido através da alteridade (abertura metafísica), abrir-se para o outro, o novo, o distinto de si mesmo.

Dussel rejeita a Ontologia Totalitária porque as éticas fundadas nela não lhe possibilitam a crítica e transformação das Totalidades vigentes, que aniquilam o que está fora do centro, que é o pobre, o excluído.

Sendo assim, a filosofia da libertação é um processo, ‘passagem’, e como tal, não pode ser um fim em si mesma. O drama das libertações falidas consistiu justamente em terem perdido de vista a liberdade, absolutizando o processo (a libertação). A libertação passa a ser então uma abertura, a realizar um fim. Entendemos na Ética de Dussel que a liberdade aqui não é somente auto-determinação eletiva ou uma certa possiblidade de escolher entre as diversas possibilidades que dependem do projeto cotidiano. Mas a liberdade que provém da libertação que se pretende é a afirmação da exterioridade radical do Outro. Todo ser humano, enquanto é exterior à totalidade, é livre, enquanto é parte ou ente de um sistema, é funcional, é um alienado.

Se vigora atualmente um “ethos de dominação” na e sobre a América Latina, precisamos apostar num ethos de libertação, isto é, apostar em um momento novo, criativo, dinâmico, autônomo. O fundamento do ethos da libertação é o amor-de-justiça; amor este que é ilustrado pelo bom samaritano. O ethos da libertação também se caracteriza pelo saciar a fome do outro. Este será o eterno desafio para todos nós. Procurar sempre a analética e não mais a dialética de que se serve o poderio sistematizador.

A filosofia da libertação procura também instaurar uma práxis de libertação para que o oprimido possa ser ouvido, seja respeitado em seus direitos, em sua liberdade; para que a negatividade possa ser positividade, isto é, a afirmação da alteridade. Isto, com certeza, não será algo vindo gratuitamente a partir da totalidade, mas será algo conquistado com muito esforço e muita luta. Por isso, é necessário que: “A filosofia se torna real na política; a política sem a crítica filosófica realiza uma tarefa imoral. A filosofia sem incidência e compromisso políticos é uma utopia, é irreal, é sofistica”. (DUSSEL, 1977, p.71)

Pensamos que um tal trabalho começa pela dissolução dos preconceitos, como a inferioridade, incapacidade de um pensamento próprio etc, dos quais somos vítimas.O povo latino-americano precisa resgatar a consciência de que é um povo, que tem uma nacionalidade pela qual precisa lutar, defender, defender-se; resgatar a consciência de que tem uma cultura, que nos é comum, e que precisa ser preservada. Apesar da grande aparente diversidade de culturas existentes na América Latina, nós, latino-americanos, temos um ethos próprio, que é o fundamento da nossa moralidade, que precisamos vivenciá-lo e também purificá-lo, pois no ethos de um povo podem estar presentes muitos desvalores.

A filosofia da libertação procura instaurar uma práxis de libertação para que o oprimido possa ser ouvido, sejam respeitados em seus direitos, em sua liberdade; para que a negatividade possa ser positividade, isto é, a afirmação da alteridade. Isto com certeza não será algo vindo gratuitamente a partir da totalidade, mas será algo conquistado com muito esforço e muita luta. A proposta de Dussel  trata de uma mudança de concepção de vida  a partir de cada um.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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[1] Emmanuel Levinas pensador do séc. XX, bastante influenciado pela fenomenologia de Edmund Husserl, de quem foi tradutor, assim como pelas obras de Martin Heidegger e Franz Rosenzweig, o pensamento de Levinas parte da idéia de que a Ética, e não a Ontologia, é a Filosofia primeira.

[2] Em (hebraico panin el-panin, na tradução grega dos setenta: eópios enopioi) é uma reduplicação habitual em hebraico que indica o máximo da comparação: o supremo” (DUSSEL, 1977, p.114).