Análise Reflexiva sobre o Filme "XXY"

Questões relacionadas a sexo, orientação sexual, gênero (cito algumas) são temas a ainda serem abordados e discutidos em nossa sociedade. Quando se pensava em homossexualidade tudo de estranho se falava e imaginava, mas com a luta incansável dos homossexuais, pensar nessa nova orientação sexual não é mais tão intolerante. Porém, quem acha que vencer algumas das barreiras foi o suficiente, engana-se. Expor a homossexualidade para a sociedade de forma tão livre, sem medo de ser estigmatizado como algo proibido foi apenas o primeiro passo para as grandes outras mudanças de ordem estrutural e social que estão por vir. E parte dessas mudanças, está o viver do ser andrógeno, contada e narrada de forma encantadora no filme "XXY". Ao invés de fazer uma crítica ou/e uma análise minuciosa e detalhista da trama, pensamos em olhar para algumas questões discorridas ao longo do filme que nos fizeram refletir e questionar muitos dos nossos paradigmas, analisando como as representações de sexo, gênero e sexualidade são colocados em discurso nesses artefatos culturais.

O filme "XXY" conta a história de um casal que tem como fruto da sua relação uma criança que nasce com as características sexuais de ambos os sexos, e que ao descobrir ainda na gestação a indeterminalidade do sexo do bebê recusaram qualquer manifestação cientifica que tentasse corrigir a ambiguidade dos seus órgãos genitais. Pomar (2008) chama a atenção que as diferenças sexuais, que no momento do nascimento, ou mesmo antes, são expressas através das frases "é um menino" ou "é uma menina", configuram uma complexidade de processos de natureza biológica, psicológica e social, em ordem à categorização mais básica e primária da nossa sociedade, a categorização de gênero, ou seja, a repartição dos indivíduos nas categorias sociais homem e mulher, representadas por diferentes características físicas, psicológicas, comportamentais e relacionais.

Após o nascimento seus pais, então decidem que sua orientação sexual seria voltada para a feminilidade, deixando assim que seu corpo demonstrasse características predominantemente femininas, fazendo uso de medicamentos para o controle das características físicas até então masculinas. Na edição de maio/agosto2001, a revista Estudos em Psicologia, PUC-Campinas, publicou em um dos seus artigos um trecho em que diz: os papéis de gênero são expectativas relacionadas com os papéis que os indivíduos de cada sexo devem se comportar, assim, pode-se encontrar na sociedade um conjunto de ideias concernente a natureza da masculinidade e feminilidade; criam-se, então, vários instrumentos intensificando a mediação de tal construto, inicialmente elaboram-se um modelo uni fatorial, assemelhando-se ao modelo biológico, considerando que os atributos psicológicos e comportamentais se diferenciam entre os sexos, tornando assim, excludentes tanto qualidades femininas quanto masculinas. Desta forma, masculinidade e feminilidade, são construtos hipotéticos representando um continuo bipolar, no qual os homens ocupam o pólo masculino e as mulheres o pólo feminino (D´Amorim, 1989,1997; Ferreira, 1995; Souza e Ferreira, 1997). Considerando a leitura a cima, podemos de certa forma reler a postura dos pais de Alex em relação a sua orientação sexual até então definida por eles como menina. Talvez a pretensão do casal perante essa atitude, fosse "é claro" satisfazer um desejo íntimo e muito privado da relação a dois em querer uma menina e não um menino antes mesmo da concepção e nascimento da criança. E também mais uma vez querer protegê-la dessa nova forma de ser, ou seja, nem um, nem outro. O próprio "não saber" por parte deles em lidar com intersexualidade, fez com que os mesmos buscassem um lugar para sua cria na sociedade, sem que isso, e está claro no filme, mudasse seu amor antes ou depois da decisão futura de Alex em relação a sua sexualidade.
Na tentativa de protegê-la de curiosos e olhares alheios e preservá-la o casal então se muda para um vilarejo distante localizado no Uruguai. Deborah Briztman, (1996) afirma que "Quando os corpos se movimentam não é apenas o cenário que muda: há algo mais que muda. Em espaços diferentes, os viajantes exercem a sexualidade de forma diferente." Movimentos e desejos são também circunscritos pelo e através do espaço. Não apenas a sexualidade, mas o sexo, o gênero e tantos outros marcadores sociais são também circunscritos pelo e através do espaço. Talvez fosse essa visão que teriam os pais de Alex, é claro um pouco mais elaborada, no sentido de que não seria um pesquisador a pensar sobre isso, mas sim pais que desejavam resguardar a integridade física e mental do novo ser que agora estariam sobre seus cuidados.

A partir da decisão da mãe de Alex em consultar e trazer para sua casa um cirurgião estético e sua família que está interessado na androginia de Alex, sem consultar previamente seu esposo, surge alguns conflitos que seriam mais tarde resolvidos com a autonomia de Alex em escolher como gostaria que seu corpo permanecesse. A indefinição ou a quase explicita definição da adolescente a respeito da sua sexualidade é o que está em jogo o tempo todo no filme "XXY". E não estamos falando apenas do sexo, ou melhor, dizendo da estrutura do órgão sexual, mas também do destaque que ganha o gênero já que sua própria sexualidade faz esse sexo e esse gênero serem objetos de discussões e dos possíveis conflitos que envolvem diversas maneiras de olhar e muitas formas de estigmatizar e "consertar" sua androginia.

Na psicologia, androginia é uma disforia de gênero, ou seja, uma condição em que o indivíduo se identifica como não sendo nem homem nem mulher, mas como uma pessoa de sexo mentalmente híbrido, o que se reflete em seu comportamento. O andrógino é um exemplo intersexual contundente, na medida em que não existe linha tênue entre sexos. E é justamente essa construção antropológica que estabelece uma nova linguagem entre estar e ser andrógino. Não há regra fixa nas ciências para definir uma conduta social híbrida, mutável (WELZER-LANG, 2001). Pomar (2008) complementa afirmando que o gênero é um dos componentes estruturantes da identidade pessoal e social de qualquer um de nós, cuja manifestação só pode ser entendida em interação com as muitas outras dimensões da vida sociocultural, mas também com os componentes do crescimento físico e do desenvolvimento cognitivo e afetivo-emocional, dotando este processo de uma inevitável singularidade e variabilidade.

Dada a visita, o filho do casal é intimado por Alex para ter relações sexuais, o que a princípio foi recusado pelo mesmo. Em meio a uma discussão os dois então resolvem partir para o ato sexual, e naquele instante algo novo surge. Alex passa a penetrar analmente o garoto e em meio a essa descoberta, o mesmo demonstra interesse e prazer nessa nova forma de se relacionar. SWAIN, (2006) problematiza os tantos imperativos que governam nossas vidas e o quanto o dispositivo da sexualidade está em ação e precisa ser constantemente "renovado" com tecnologias e estratégias diversas. "O dispositivo, portanto, inventa os corpos e os possui, cria-os ao defini-los e moldá-los enfatizando o prazer, sem defini-lo nem questioná-lo, para melhor apagar os traços de sua construção e domesticação". Foucault (2005) analisa como, especialmente a partir do século XVIII, a sexualidade foi cada vez mais colocada em discurso, ao contrário do que se poderia imaginar com a hipótese repressiva do sexo. Ainda afirma: "Não digo que a interdição do sexo é uma ilusão; e sim que a ilusão está em fazer dessa interdição do sexo o elemento fundamental e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do que foi dito do sexo a partir da Idade Moderna. Em suma, trata-se de determinar, em seu funcionamento e em suas razões de ser, o regime de poder-saber-prazer que sustenta, entre nós, o discurso sobre a sexualidade humana." O ponto essencial seria: "levar em consideração o fato de se falar de sexo, quem fala os lugares e os pontos de vista de que se fala as instituições que incitam a fazê-lo, que armazenam e difundem o que dele se diz, em suma, o "fato discursivo" global, a "colocação do sexo em discurso".
"XXY" também destaca como sua família lida com a androginia, como se relacionam as redes de proteção, as formas de proteção e de que forma se estruturam de modo a respeitar e apoiar suas decisões (no momento em que ela decide parar de tomar os medicamentos que impediam que seu corpo se masculinizasse) sem que isso altere o amor e a confiança já cultivados ao longo de tantos anos.
Após Alex optar pela não realização da cirurgia, a família de amigos deixa a casa do casal e durante a despedida dos adolescentes os mesmos confessam que estariam apaixonados um pelo outro. Nesse momento crucial a adolescente é enfática ao afirmar que o garoto na verdade não teria se apaixonado por ela e sim pela satisfação que o sexo anal teria lhe provocado.

Surge então um novo conflito, só que dessa vez de uma ordem individual e intima de descobertas por parte do garoto. Para finalizar a pesquisadora Balestrin (2008) em seu texto sobre as transformações dos papéis do sexo em nosso meio social questiona: O que, afinal, determina a importância do sexo e da sexualidade como raízes da identidade, do ser-no-mundo, da socialização, do processo de subjetivação? Poderia ser apenas mais uma manifestação do humano, mas nas articulações do social é a significação dada ao que se valoriza e que circula com valor de verdade, sobretudo com a marca da natureza, indiscutível, soberana, massa inerte ao humano, do pré-construído, das tradições históricas e datadas que adquirem o peso do natural.







Referências Bibliográficas:

LIMA, Rodolfo. Resenha crítica do filme "XXY", 2008. Disponível em
http://www.cranik.com/xxy.html (capturado em 30.05.2010)
SWAIN, Tani Navarro. Entre a vida e a morte, o sexo. labrys, estudos feministas, junho/ dezembro 2006. Disponível em http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys10/livre/anahita.htm (capturado em 30.05.2010)
WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista Estudos Feministas, CFH, CCE, UFSC, v. 9, n. 2, 2001: 460-481
BRITZMAN, Deborah P.. "O que é esta coisa chamada amor? Identidade homossexual, educação e currículo". Educação & Realidade, v. 21, n. 1. Porto Alegre, janeiro-junho de 1996, p. 71-96. [Links]
BALESTRIN, Patrícia Abel. Sexo XX, Filme XXY, Século XXI e algumas outras letras, 2008. Disponível em: http://patriciaabelbalestrin.blogspot.com/2008/07/sexo-xx-filme-xxy-sculo-xxi-e-algumas.html