No bojo das relativizações da pós-modernidade encontramos propostas hermenêuticas que relativizam o sentido de textos escritos. A partir da aplicação de uma hermenêutica filosófica e de teorias lingüísticas, alguns teóricos pós-modernos afirmam ser impossível o acesso ao sentido original do texto bíblico. A filosofia hermenêutica de Hans-Georg Gadamer é um exemplo.Este autor propunha que o significado de um determinado texto torna-se significado de fato quando da interação entre o leitor, o texto e o seu contexto. É a reader response (reação do leitor) que conta no processo interpretativo. Dada a incompletude do texto, o leitor o desconstrói trazendo à tona o seu – do leitor – significado. Este tipo de abordagem transforma um determinado texto em um depósito de significados.

Conduzido por essa orientação hermenêutica o intérprete estará atuando como um eisegeta e não como um exegeta. A eisege, palavra grega derivada de eis, “para dentro”, e egeestahi, “explicar”, injeta no texto bíblico exatamente aquilo que o leitor deseja que esteja ali. Disso redunda um entendimento no texto, ao invés de do (exegese[1]) texto, resultado com o qual não estou de acordo, pois estabelece-se um deslocamento do sentido abandonando assim a intenção autoral em favor da interação leitor-texto. Esta vertente das hermenêuticas pós-modernas é a que mais tem influenciado o estudo acadêmico da Bíblia.

A seguir ressalto algumas razões da minha objeção à renúncia da intenção autoral (significado extraído do texto) em favor de uma interpretação a partir da relação entre leitor e texto (significado no texto).

Uma hermenêutica normativa e orientada para o autor

O estudioso de literatura da Universidade de Vírginia, EUA, E. D. Hirsch (1928- ) defende uma hermenêutica normativa e orientada para o autor. Ele produziu um trabalho chamado Validity Interpretation (Validade em Interpretação)[2]. Esta obra de Hirsch é um ataque analítico direto à hermenêutica filosófica de Gadamer. Hirsch é celebrado por muitos exegetas bíblicos que o considera um defensor do autor e da objetividade na interpretação[3]. Ele aponta uma gigantesca dificuldade que a interpretação no texto proporciona aos seus adeptos.

  • Quando os críticos baniram o primitivo autor, eles próprios usurparam-lhe o lugar (como quem determina o significado), e isto levou infalivelmente a algumas das confusões teoréticas da época presente. Onde antes havia tão-só um autor (um determinante do significado), surgiu agora uma multiplicidade deles, cada qual trazendo consigo tanta autoridade quanto o seguinte. Banir o primitivo autor como o determinador do significado era rejeitar o único princípio normativo obrigatório que poderia emprestar validade a uma interpretação... Porque se o significado de um texto não é o do autor, então não há interpretação que possa corresponder ao significado do texto, uma vez que o texto não pode ter significado determinado ou determinável. (apud VIRKLER, 1995, p. 16)

Deste fragmento podemos depreender que Gadamer (e todos os hermeneutas defensores do significado no texto) não tem parâmetros para definir finalmente qual o significado do texto, tendo que aceitar, por fim, que um único texto tem um número infinito de significados. Ora, admitir um número ilimitado de significados é polarizar o significado do texto do significado do autor coisa que não pode ser feita visto não existirem textos sem autores. Gostaria de encontrar por aí algum proponente dessa visão pós-moderna sobre textos literários que leia a bula do K-Othrine* com as suas lentes subjetivistas. Primar por uma interpretação objetiva é estabelecer um critério que possa distinguir a interpretação válida da não válida; as que são válidas devem fundamentar-se naquilo que o autor quis dizer. Vale ressaltar que “o objetivo do leitor é ‘pensar’ o mesmo ‘objeto’ que o autor” (VANHOOZER, 2005).

Um dos argumentos dos hermeneutas aderentes à hermenêutica pós-moderna e que são contrários a uma interpretação normativa orientada para o autor, é a afirmação de que é impossível termos acesso aos processos mentais do autor quando ele produziu sua obra. Aqui estamos diante da proposta do filósofo e teólogo alemão Friedrich Schleiermarcher chamada de hermenêutica psicológica. Além de defender uma hermenêutica orientada pra o autor, Schleiermarcher acreditava que pela empatia é possível capturar a subjetividade autoral intrínseca ao texto. Eu não acredito ser isso possível, logo, não posso ser acusado pelos que optam por uma interpretação centrada no leitor de desejar alcançar o inalcansável. O próprio Hirsch negou essa tradição afirmando não ser tarefa do intérprete empreender esse tipo de trabalho (DOCKERY, 2005).

Ao argumento citado, e outros como a distância cultural e histórica entre o ambiente em que foram produzidos os textos [bíblicos] e o mundo pós-moderno, Nicodemus (p. 246, 2004) responde dizendo que na busca pela intenção autoral,

  • não estamos nos referindo ao processo mental pelo qual ele [o autor] passou ao escrever;
  • também não estamos nos referindo aos planos do autor em escrever;
  • a recuperação autoral não depende de nada fora do texto;
  • evidentemente, tudo o que pudermos saber sobre o autor, como seu pano-de-fundo, as circunstâncias que deram origem aos seus escritos, etc., poderá nos ajudar em entender seu propósito em escrever, mas em última análise é o texto que determinar.

Sendo assim, a hermenêutica normativa e orientada para o autor parece ser o melhor e mais seguro caminho para se alcançar uma interpretação correta. Com esse método o que se objetiva é conhecer a intenção verdadeira do autor expressada pelo ajuntamento de palavras, sentenças e expressões em sua obra literária. O banimento do autor original coloca-nos, definitivamente, diante de uma situação que nega a certeza - de uma maneira convincente - de quando uma interpretação é válida. Qualquer coisa diferente disso, só produzirá pluralidades e relativismos na leitura de textos, inclusive na leitura e interpretação bíblica.

Significado e Significações

O historiador francês Roger Chartier, ligado à Escola dos Annales, diz que “um texto só existe se houver um leitor para lhe dar um significado” (1999, p. 11). Este é o pensamento dos intérpretes pós-modernos. Aqui deparamo-nos mais uma vez com a questão da validade e da não validade de uma interpretação. A afirmação de Chartier é a mesma que defende uma interpretação orientada para o leitor como propunha Gadamer. Adotando esta perspectiva fica impossibilitada a delimitação entre aquilo que se extrai dos textos (exegese) e aquilo que se insere no texto (eisegese). Em outras palavras, e conforme fora dito anteriormente, não existirão meios confiáveis para validar uma interpretação.

No entanto, autores como E.D. Hirsch, Kevin Vanhoozer, Davis S. Dockery[4] defendem que um texto apresenta-se, a priori, com um significado sim, que é o autoral. Em seguida, eles admitem a possibilidade de significações. Para Chartier, o(s) significado(s) brota dos leitores; para Hirsch, Vanhoozer e Dockery, o significado de um texto está circunscrito ao autor.

Nos moldes da atual teoria literária, o autor, depois de ter escrito o seu texto, ele morre, logo, seu significado não existe e isso faz com que a idéia de significações também não exista. O que temos é nada mais nada menos que o(s) significado(s) do leitor, o soberano sobre o texto alheio com o qual interage. Ao autor restam epitáfios.

Seguindo a perspectiva dos últimos teóricos citados, definimos significado como sendo aquilo que o autor desejou dizer na obra dirigida aos leitores originais. O significado é "interno ao texto-em-si-mesmo" (VANHOOZER, 2005, p.95). Já as significações são as maneiras pelas quais uma obra literária pode ser lida e aplicada para além da intenção autoral. Neste caso “é sempre ‘significado-para’, nunca ‘significado-em’” (ibidem).

Vejamos o exemplo de um texto bíblico. Em Efésios 4:26-27, Paulo diz “irai-vos e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira, nem deis lugar ao diabo.” Aqui só há um significado, porém, muitas significações podem surgir, basta que o leitor encontre-se irado com o aluno, com o professor ou com o colega de faculdade.

Agendas Ideológicas

De acordo com Nicodemus (2004), a interpretação bíblica que parte da perspectiva no e não do texto, conforme propõe a reader response, parte de alguma agenda ideológica. Ele afirma:

  • Existem diversas variações da reader response, mas todas lêem o texto a partir de uma agenda definida, via de regra, ideológica ou política. Intérpretes que seguem essa linha são chamados de “leitores ideológicos”, pois lêem o texto deliberadamente a partir de sua agenda ideológica. Eles costumam apelar para os princípios de Gadamer para justificar sua leitura do texto sagrado. Os principais tipos são: teólogos da libertação, estudiosos feministas e teólogos afro-americanos. (p. 231)

As palavras seguintes de Leonardo Boff parecem confirmar a afirmação de Nicodemus;

  • O contexto em que lemos e teologicamente meditamos as Escrituras não é somente o litúrgico e o cúltico. Descobrimos um sentido novo da paixão e morte do Senhor a partir do engajamento político, dentro de uma práxis libertadora. (1977, p. 18)

Nesse sentido, esta adesão a uma interpretação a partir do no e não do do texto é uma metodologia que relativiza a possibilidade e a necessidade de tentar recuperar a intenção do autor e que parece ser mais uma questão política do que epistemológica.

Considerações Finais

Na leitura e interpretação da Bíblia, adotar a metodologia que privilegia uma interpretação eisegética levará alguém a um significado que lhe seja válido, porém, tal significado não passará da condição de ser o significado deste alguém e nunca o do autor e muito menos o de Deus. Desta maneira é impossível estabelecer as fronteiras entre uma interpretação ortodoxa e uma interpretação herética, pois isso já perdeu o sentido.

Não nego que a proposta da nova hermenêutica (reader response) quanto à participação do leitor e do contexto na construção de significações é um aspecto importante e positivo, no entanto, é o significado daquilo que o autor queria dizer na época em que escreveu seu texto que deve ser o alvo do exegeta e alcançar isso é possível visto ser o mesmo moderado pelas convenções da linguagem existentes entre o autor e leitor.

Por Zwinglio Rodrigues

Referências:

CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. 2 ed. Brasília. Editora UNB, 1999.

BOFF, Leonardo. Paixão de Cristo, Paixão do Mundo: os fatos, as interpretações e o significado ontem e hoje. Rio de Janeiro: Vozes, 1977.

DOCKERY, David S. Hermenêutica Contemporânea à Luz da Igreja Primitiva. São Paulo: Editora Vida, 2005.

LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e Seus Intérpretes: uma breve história da interpretação. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004.

VANHOOZER, Kevin. Há um Significado Neste Texto? São Paulo: Editora Vida, 2005.

VIRKLER, Henry A. Hermenêutica: princípios e processos de interpretação bíblica. São Paulo: Editora Vida, 1995.


* Veneno violentíssimo usado para matar insetos, ratos, etc.

[1] Termo oriundo do grego ex, “para fora”, e agein, “guiar”.

[2] Infelizmente eu não obtive o acesso direto à obra de Hirsch, por isso, as citações feitas serão sempre de segunda mão.

[3] Seguindo a trilha da interpretação objetiva, destaco ainda os nomes de Friedrich Schleiermacher, Wilhelm Dilthey, Edmund Husserl e Ludwig Wittgenstein.

[4] Vanhoozer e Dockery “bebem” em Hirsch.