INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo explicitar o conceito de renda fundiária em Marx, levando em consideração a análise marxiana no desenvolvimento de um estudo voltado para os condicionantes que propiciaram o atraso do desenvolvimento do sistema capitalista, dentro de uma estrutura de organização fundiária nos séculos XVIII e XIX.


A trajetória do estudo prendeu-se ao processo histórico do desenvolvimento capitalista, tendo por base o processo de transição do sistema feudal de produção ao sistema capitalista de produção. Para tanto, nos deteremos especificamente na concepção apresentada por Marx em O Capital[1] sobre renda fundiária, renda diferencial e renda absoluta.


Entendemos a necessidade de contextualizar o estudo para que os questionamentos apresentados não sejam vistos como casos isolados, como se a agricultura fosse regida por leis próprias e não estivesse sob as determinações do processo histórico de acumulação mundial do capital.


CONCEPÇÃO DA RENDA FUNDIÁRIA

Marx vai elaborar seu estudo da renda agrícola em países de produção capitalista desenvolvidos. Para tanto busca a Inglaterra, por ser, na época, um país que possuía vários pequenos capitalistas, que eram obrigados pela própria estrutura organizacional do sistema, centrados nos proprietários de terra e nos proprietários de Capital, a se contentarem com lucro inferior e a ceder parte dele na forma de renda ao proprietário das terras.[2]Um dos motivos da sujeição de proprietários do capital aos proprietários da terra é, segundo Marx, que estes exercem influencia decisiva sobre a elaboração e aplicação das leis como forma de manutenção de poder frente à classe dos arrendatários. Quanto aos trabalhadores, viviam em processo de extrema miséria constituindo-se gradativamente no exército industrial de reserva vivendo no auge das migrações campo-cidade e em ciclos históricos[3]que favoreciam a expropriação cada vez maior do trabalhador quando o capital aumenta a produção de mais-valia absoluta, reduzindo constantemente os seus salários.


Dessa forma, a renda capitalista do solo foi expropriada pelos proprietários de terras, enquanto classe ociosa que vivia as custas do arrendamento, constituindo um dos entraves que impediam o livre fluxo do capital na agricultura e conseqüentemente um dos atrasos em relação a industria.


Marx vai estudar o propósito da propriedade fundiária procurando examinar as relações específicas de produção e de circulação na agricultura, o que para ele, sem isso a análise do capital estaria incompleta[4]. Sob esse prisma, procura destacar o que seria renda fundiária, demonstrando que ocorre quando o arrendatário paga ao proprietário, por um determinado período estipulado contratualmente, pelo uso da terra. [5]


Marx alerta para o fato de que o arrendatário, após o período de arrendamento fica obrigado a entregar as terras e tudo o que foi beneficiado ao seu proprietário. Este, por sua vez, é o beneficiário do que foi realizado na propriedade em benfeitorias, além do que foi pago com o arrendamento das terras, significando que as melhorias realizadas servem como suporte para determinar o valor da propriedade acrescido de juros implícitos.Ou seja, o arrendatário recebe duplamente,recebe pela renda fundiária, contratualmente estipulada e, mais os juros que nada têm haver com o processo de arrendamento incorporando-os a sua renda. Por outro lado, o arrendatário, sabendo que o melhoramento do solo como, por exemplo, adubação serve para acrescer o valor da propriedade, mas ficando o lucro desse empreendimento com o proprietário das terras, o arrendatário resiste, o que pode ser caracterizado como um dos maiores obstáculos para a racionalização da agricultura.[6]


Uma outra forma em que a renda fundiária pode confundir-se com o juro, é explicitada por Marx, como o momento em que o arrendatário paga anualmente uma certa quantia pelo arrendamento se configurando em um período determinado nos custos pagos pelo proprietário pela compra da propriedade, ou seja, após o período estabelecido contratualmente entre as partes (proprietário e arrendatário), o proprietário terá reposto o dinheiro empregado através das receitas do arrendamento, entretanto, mantendo a propriedade sob seus domínios e, como foi visto anteriormente, com valor adicional das benfeitorias realizadas o que vai aumentar o valor da terra.


Dessa forma, em toda a Europa, a propriedade fundiária é uma das formas mais seguras que o capital encontrou para investir. A terra passa a ser comprada e vendida como qualquer outra mercadoria. No entanto, Marx alerta, que os defensores do tipo de compreensão que justificam que a renda fundiária exista por ser ela comprada e vendida é uma argumentação que esconde os condicionantes que envolvem todo esse processo, por exemplo, a exploração gradual dos proprietários sobre os arrendatários, configurando-se num processo crescente de espoliação daqueles sobre estes que impulsionaram o crescimento do seu capital.


O poder dos proprietários em elaborar e aplicar leis que prejudicam os arrendatários é uma outra forma de manutenção do status quo dos proprietários que vivem na ociosidade e/ou com a crescente força do capital o mesmo artifício foi utilizado para burlar o sistema de arrendamento e propiciar maiores lucros. Marx cita o exemplo da lei de proteção aduaneira que estipulava tributos garantindo a hegemonia dos produtos ingleses sobre os demais, ficando claro que o objetivo era proteger os proprietários com preços artificialmente estipulados, mas que não conseguiram se sobressair por muito tempo e, como os preços altos eram os considerados normais, os contratos de arrendamento foram elaborados a partir destes, o que, com a volta de "normalidade" e a elaboração de novas leis, continuou o processo fraudulento sobre os arrendatários. Marx explicita que esse processo de expropriação acarretou a substituição de toda uma classe de arrendatário por uma nova classe de capitalistas.[7]


De todo esse processo de reordenamento das relações sociais capitalistas nos séculos XXIII e XIX restou para o trabalhador da terra um processo gradativo de expropriação de tal forma que houve constantes reduções de salários, meio utilizado pelos arrendatários para manter sua posição, porém, é certo que os beneficiados foram os proprietários de terras, quer pertencentes ao esfacelado sistema feudal de produção (antes da hegemonia do capital) quer os que defendem o sistema capitalista de produção.


TRABALHO EXCEDENTE E RENDA FUNDIÁRIA


Ao estudar a renda fundiária Marx objetiva examinar as relações específicas de produção e circulação, oriundas da aplicação do capital na agricultura[8] e constata que tal renda supõe o monopólio de porções do globo em esferas privadas, contudo, essa exploração é dependente do fator condições econômicas.

O capital empregado na terra, porém, não pertence ao proprietário destas, visto que este só tem de apropriar-se da porção, que é multiplicada sem a sua intervenção, do produto excedente e da mais-valia. Marx explicita que o trabalho individual se divide em necessário e excedente, sendo o trabalho necessário aquele voltado para a produção da manutenção da sociedade em geral, inclusive dos meios de subsistência com tal finalidade.O trabalho excedente, por sua vez é aquele realizado por todos os demais trabalhadores.


Deve-se ter claro, no entanto, que o trabalho necessário não é exclusivo do setor agrícola, pois o trabalho realizado nas indústrias é em parte tão necessário quanto o trabalho agrícola[9].


Ao estudar a renda fundiária, Marx alerta quanto ao perigo de incorrer-se em equívocos que prejudicariam a análise, sendo três os erros principais:


1) confusão entre as diferentes formas de renda fundiária, correspondentes a estádios diversos de desenvolvimento do processo social de produção, ou seja, quando o proprietário toma para si tal renda configura-se a forma econômica da renda fundiária; a existência de renda fundiária é admissível somente quando porções de terra são monopolizadas por proprietários; a renda fundiária não acontece apenas em relação a glebas de terra, pois também pode ser considerada renda fundiária a posse do homem sobre o próprio homem, como se dá no regime escravagista, não-produtores que tenham propriedade da natureza[10], ou mesmo o mero título de propriedade sobre o solo;

2) toda renda fundiária é mais-valia, produto do trabalho excedente. Engana-se aquele que usa as categorias conceituais gerais da mais-valia para buscar o entendimento da renda fundiária, enquanto componente desta[11]. Para Marx


"(...) as condições objetivas e subjetivas do trabalho excedente e da mais–valia em geral nada tem que ver com a forma particular do lucro ou da renda fundiária. Elas valem para a mais-valia como tal, qualquer que seja a forma especial que assuma. Por isso, não explicam a renda fundiária.[12]"

3) a valorização econômica enquanto renda fundiária aparece como característica particular de o montante dessa renda não ser determinado pela intervenção do beneficiário (proprietário), mas pelo desenvolvimento do trabalho social, que dele não depende,bem como não participa. Considera uma análise apresada a classificação do que é como ao modo capitalista de produção como renda fundiária.


É mister perceber neste estudo que o acréscimo da renda fundiária está ligado diretamente ao desenvolvimento social, pois com o crescimento do mercado aumenta a procura de produtos da terra, conseqüentemente, procura por terra e pelas condições de produção. Tal desenvolvimento é característico do modo capitalista de produção uma vez que há um decréscimo da população agrícola em prol do acréscimo da população não-agrícola devido à migração e, portanto, da divisão social do trabalho. Esse "progresso" acarreta a dissociação do trabalho produtivo transformando os respectivos produtores em mercadorias por venderem a sua força de trabalho, visto já terem passado pelo processo de expropriação de suas terras. Separado do seu único meio de produção, o camponês se vê forçosamente obrigado a vender a sua força de trabalho como meio de garantir a sobrevivência.


É importante ressaltar que este processo de renda fundiária é dotado de uma característica peculiar, que é o fato de o valor da renda fundiária aumentar à medida que o salário pago ao trabalhador da agricultura é reduzido. Neste contexto pode-se afirmar que não são questões exclusivas aos produtos agrícolas, mas, a estrutura organizacional do sistema capitalista de produção[13].


RENDA DIFERENCIAL E RENDA ABSOLUTA


Entende-se por renda diferencial aquela ocorrida da diferença entre o preço individual de produção e o preço geral, regulador do mercado de todo ramo de produção, isto é, a renda diferencial aparece na forma de lucro suplementar, sabendo-se ter um dos seus limites o nível do preço geral de produção, do qual um dos fatores é a taxa geral do lucro. É importante ressaltar, porém, que o lucro suplementar não decorre de ocilações do mercado ou transações durante o processo de circulação da mercadoria. Este tipo de renda é derivada de uma força natural monopolizável, que não esta a mercê do capital, ou seja, o capital não tem o poder de transpor um bem natural, como por exemplo, uma queda d'água. Este lucro suplementar, no entanto, não pertence ao arrendatário e sim ao proprietário da terra, pois além da renda fundiária o arrendatário paga também um valor correspondente à força natural monopolizável, sendo assim, remetemo-nos novamente à afirmação de Marx.


"o monopólio da propriedade fundiária, erigida em barreira ao capital, é condição de renda diferencial, pois, sem esse monopólio, o lucro suplementar não se converteria em renda e caberia ao arrendatário e não ao proprietário da terra".


A renda absoluta é aquela que se dá sob a circunstância de elevação do preço dos produtos agrícolas em relação ao preço de produção como decorrente da diferença no rendimento dos diferentes tipos de solo ou das aplicações sucessivas de capital no mesmo solo. Tal como a diferencial, a renda absoluta também se converte em renda fundiária, indo parar nas mãos do proprietário da terra. Pois o proprietário está sempre de prontidão para extrair uma renda, receber algo de graça. Para que esse desejo seja concretizado o capital precisa de condições específicas, como a concorrência da produtividade das terras entre si, por exemplo.



CONSIDERAÇÕES FINAIS


Após a leitura destes trechos da obra de Marx, baseando-nos também em Smith, Ricardo e Malagodi percebemos o papel desempenhado pelo proprietário de terras, o arrendatário capitalista e o camponês. Através desse estudo está claro também o porquê da renda fundiária funcionar como impeditivo para o avanço do capital. Porém, alguns questionamentos e reflexões ainda podem ser explorados, tais como:


1) renda da terra e renda fundiária têm o mesmo significado?

2) renda fundiária, enquanto parte integrante do sistema capitalista, existiu ou existe no Brasil?

3) Como diferenciar lucro de renda fundiária?




BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


MALAGODI, E. Renda fundiária e campesinato. Um estudo de Smith, Ricardo e Marx. São Paulo: PUC, 1986, (tese de doutorado – CAP. II e IV).

MARX, K. O capital. Crítica da economia política. Livro 3. vol. VI. Trad. Reginaldo Sant'anna. 4 ed. São Paulo: DIFEL, 1985, (cap. XXXVII, XXXVIII e LXV).

RICARDO, D. Princípios de economia política e tributação. Trad. Paulo H. R. Sandroni. São Paulo: Victor Civita, 1982, (cap. II – col. Os economistas).

SMITH, A. A riqueza das nações. Vol. I. Trad. Luiz J. Baraúna. 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985 (cap. XI – col. Os economistas).
[1][1] Marx, Karl. O Capital. Trad: Reginaldo Santana. Livro 3. v. 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Cap. XXXVII; XXXVIII e XLV.
[2][2] Idem, Ibidem. Op. cit. p.718-9
[3][3] Esses ciclos históricos vão de 1793 a 1817 com a revolução industrial; de 1848 a1873 envolvendo a primeira revolução tecnologia, expandido a tecnificação com máquinas a vapor, (para citar o período compreendido em estudo por Marx).
[4][4] Marx não foi o único pensador de sua época e/ou anterior, a estudar a estrutura fundiária. Privilegiou A. Smith e D. Ricardo, como os principais pensadores sobre a questão. Enfatizou que Smith teria mostrado que a renda fundiária do capital empregado para produzir outros produtos(...)é determinada pela renda fundiária proporcionada pelo capital invertido para produzir o principal meio de alimentação. Destaca ainda que depois dele não se foi mais além desse domínio. Cf. MARX,Karl. O capital. Op. cit. p. 706.
[5][5] Idem. Ibidem. Op. cit. P.706-710
[6][6] Marx explícita que tal compreensão foi elaborada por James Anderson(1865:69, 97) a quem chama de O verdadeiro descobridor da moderna teoria da renda
[7][7] Idem.Ibidem. Op.cit. p.719
[8] Idem.Ibidem. p.706.
[9] Idem.Ibidem. p.725-726.
[10] Marx mostra uma certa contraposição a Ricardo ao considerar como renda fundiária partes da natureza, pois para este autor a concessão da parte de uma floresta ou de uma mina por um determinado período de tempo não se constituiria renda fundiária por não haver produção, mas apenas exploração, logo, o que o proprietário concede na verdade é o direito de exploração da área, considerando ainda, que o arrendatário não irá plantar mudas de árvore na floresta nem reconstituir uma mina.
[11] A) condição subjetiva da mais-valia e do lucro: trabalho além do necessário realizado pelos produtores imediatos; B) condição objetiva : que parte dos recursos naturais seja suficiente para reprodução e manutenção dos produtores, ressaltando a questão de que a produção dos meios necessária de subsistência não esgote toda a força de trabalho. Cf. MARX, Karl. O capital. Op.cit. p. 728.
[12] Idem. Ibidem. p. 730.
[13] Cf. Idem. Ibidem. p. 730-3.