O avanço tecnológico já produz uma nova forma de indivíduo. Não se trata aqui da inteligência artificial, tão perseguida por grupos de pesquisa. Desde o crescimento e desenvolvimento do aparato tecnológico, que o homem se molda a partir do maquinário instrumental que disponibiliza. Precisar uma data é sempre uma temeridade, mas pode-se apontar para uma maior abrangência a partir do evento chamado “Revolução Industrial”. Apesar da diferenciação acerca, tanto da matéria prima quanto do uso e auto-função do maquinário, observa-se mais do que o criador, mas o usuário, que busca interagir e dar conta dessa transformação. Assim como, em dado momento, ainda hoje é, imprescindível o trabalhador aprender a técnica, para poder manter-se no mercado de trabalho, pensando na questão da exclusão e a modernização que faz com que, cada vez mais, exista uma atualização mais rápida, causando sobrecarga na emergência do multifuncional.

            O segundo movimento interessante para análise, é quando a tecnologia deixa de ser apenas aparato técnico e bélico, já que não podemos excluir a necessidade do homem de autodestruição, fazendo com que disponibilize a tecnologia com fim armamentista. Usa-se o instrumental para o lazer, fazendo com que passe a se incorporar no dia-a-dia fora do trabalho. Tanto pela necessidade de consumo, que faz alimentar o comércio tecnológico, quanto o intuito de familiarizar, o que torna dependente, o sujeito que é criado a partir dessa nova perspectiva. Gerações já nascem domesticadas pelo maquinário, que exibe prodígios que precocemente já desvendam a linguagem tecnológica e a utilizam antes mesmo de ter alguma compreensão a respeito de seu uso, quanto mais das consequências da utilização, individual e coletiva. Músicas criadas por programas que facilitam o entrecruzamento de informações, fazendo com que certos sentidos sejam poucos explorados, ou antes, explorados com outro foco.

            Informações divulgam malefícios, como lesão por esforço repetitivo, além de algumas teses psicológicas e outro tanto de dados de origem duvidosa ou não. Toda tecnologia implica ganhos e perdas, resta saber se entre o quanto se perde e se ganha existe equilíbrio. Quais grupos de interesse são favorecidos na divulgação de determinado arcabouço instrumental? Existem implicações que não podem ser medidas, com efeitos que serão vistos após um longo período, como ocorrem também consequências imediatas. Diante dessa busca pelo que foi teorizado como necessidade humana e distinção em relação a outras espécies, embora já seja provado que outros animais desenvolvem também ferramentas sofisticadas para sua sobrevivência. O que faz com que o homem se restrinja a algo, que conforme o senso comum crê, não é privilégio seu.

            Talvez inspirado pelo “deus ex machina”, o homem buscou fazer de si, como representante divino — sendo criação de um ser místico, ou a própria referência metafísica como representação do humano que tenta se elevar. —,  uma máquina orgânica, deixando-se influenciar pela tecnologia que se torna o grande alicerce do desenvolvimento social nos últimos tempos. A internet promove a interação nunca antes vista, ao mesmo tempo, faz dos gestos e de todo o sentimento, uma informação de dados fria, insensível, mecânica. Cada vez mais, o homem é robotizado, com gestos ensaiados para as tarefas mais simples, como a comunicação primária, bastando observar o aparato que favorece a vigilância de um bebê, o maquinário que o recebe nas maternidades, além de toda a influência ao longo do crescimento.

O adulto já demonstra uma forma mais moldada. Não que seja restrito a ela, mas que pode ser passivo dessa robótica orgânica. Trata-se do homem como dado, expondo os grupos como estatísticas, analisando comportamentos como base em hipóteses quantitativas, mais do que qualitativas. Perdemos o corpo, já que nos projetamos além dele, sendo que esse fluxo, nos aprisiona em redes que nos perfuram, vazam e fazem do sujeito uma parte de um novelo, dificultando desembaraçar-se. é fácil identificar-se com personagens, já que somos parte de uma teatralização, fugindo da criação artística e restringindo-se ao que a técnica nos submete. Daí os professores, que deixaram de criar aulas, explorando a imaginação, para reproduzirem conteúdos programáticos com planilhas bem traçadas e equipamento que cristalize a aula.

Não que os recursos tecnológicos não sejam importantes, mas sua esterilidade consiste em utilizá-lo como supremo e determinante. O sexo é por mulheres inexistentes, produtos de imagens fabricadas, como os pais educam os filhos, na mais com a televisão, mas em frente as telas de computadores, transferindo para a máquina a nossa função pedagógica. Protótipos humanóides são feitos em uma linha de produção nefasta, que caminha, ao contrário da superação. Como um übermensch, mas para uma nova forma de escravização, monopolizada por controladores da tecnologia, que fornecem a falsa noção de liberdade, que é restrita ao instrumental que eles detêm e fornecem. Somos deficientes, tendo os sentidos, mas atrofiando-os propositalmente, até o momento que a norma será a deficiência.

Olhar um padrão de comportamento e segui-lo, o que causa um mecanicismo das funções relacionais entre humanos, visando essa automação que relega o homem à segundo plano, em uma semiótica que interage por si, já que faz parte de um modelo que se reproduz antes e depois da consciência. Ter consciência é distinto de tomar ciência. O bebê é condicionado a uma série de regras, pensamos que quando nos tornamos adultos, teremos menos atributos de ordem manipulativa, o que é um ledo engano, pois existem instrumentos para cada grau de desenvolvimento. Quem estuda, segue uma carreira profissional, se casa, tem filhos, não difere do recém nascido que é forçado a levar uma picada no pé por conta do exame. A questão não está em definir que tal ou qual comportamento é bom ou mau, mas sim, expor o ato de comportar-se dentro de um padrão, de forma mecânica, como se fosse uma necessidade orgânica, daí as comparações grosseiras em que dizem que o corpo humano é uma máquina.

            As máquinas não possuem sentimentos, o que favorece a sociedade frívola em que vivemos, onde a produção de determinadas coisas é que são consideradas importantes. Existe a idealização de se ter um patamar financeiro, pertencer a um grupo social, inserir-se em tal classe, ou seja busca-se metas que obscurecem pontos essenciais para o desenvolvimento de uma espécie. Querendo nos distanciarmos dos outros animais, criamos a ideia de deus, mas em vez de atingirmos essa meta, que é inalcançável, devido a sua realidade fictícia, nos apegamos a nossa própria criação. Agora, a busca não é por ser criador, mas nos reduzirmos a criaturas. Faz pensar que continuamos desejando fugir da agonia que é ser o que somos. Por ser inadmissível voltar ao estado bestial, busca-se uma solução alternativa. Daqui a pouco os corpos serão obsoletos, já que o ciberespaço está diante de nós, podemos utilizar e fabricar sensações, menos orgânicas e mais mecânicas, entrecruzando biologia e máquina. Uma puxada de tomada e o apocalipse da nossa criação será desencadeado, eis a simplicidade da complexidade em que nos encontramos.