PRIMÓRDIOS DA DEMOCRACIA
NA PÁTRIA TUPINIQUIM


Em 1554 os jesuítas Nóbrega e Anchieta constroem o Colégio e, em volta, a vila de São Paulo começa a, timidamente, se formar com suas casinhas e taperas de pau-a-pique. Se há índios sendo catequizados pelos jesuítas, também há índios que, por não aprovarem a presença daqueles brancos invasores, de hábitos tão diferentes, tudo fazem para escorraçá-los.
Para resistir aos ataques frequentes dos índios Carijós um muro de taipa é levantado em torno da nascente povoação. Mas o próprio povo abre-lhe brechas para facilitar suas idas ao rio ou à roça. Em 1562 a "muralha" ainda não estava concluída, mas dez anos depois já apresentava avarias de toda ordem.
Apesar de feita com varas e barro a "muralha" ostentava características de obra de engenharia militar e, embora não prevista para resistir a ataques de engenhos militares como catapultas e aríetes, possuía baluartes onde os defensores se protegiam das flechas inimigas.
Além da criação de animais (vacas, cavalos, ovelhas, porcos, etc.) predomina a cultura do trigo que, em certas épocas chega a ser o produto principal na Economia do planalto de Piratininga, embora sua exportação nem sempre fosse permitida para não prejudicar o abastecimento da população. A Câmara de Vereadores fiscalizava a circulação da farinha de trigo e da carne; e baixava ordens proibindo a saída desses produtos sem a sua autorização. Às vezes era preciso requisitar os artigos para garantir sua presença no comércio; e fiscalizar os comerciantes que costumavam adulterar pesos e medidas e elevar os preços ao consumidor.
A moeda é escassa na Vila e a Câmara fixa o preço da farinha de trigo (240 réis o alqueire) que é usada como dinheiro nas trocas com os negociantes que vêm de fora. Quando o pão que é vendido à população diminui de tamanho a Câmara determina a multa de 500 réis para quem comercializar pão com peso inferior a dois arráteis (Arrátel= 459 gramas).
Aprisionar índios para trabalhar nas lavouras justifica-se pelo fato de que, faltando braços para o trabalho e sendo indispensável a produção de alimentos para o sustento das famílias, o cidadão não está escravizando e, sim, "buscando o seu remédio". Mas os índios, muito dóceis, fazem qualquer serviço com grande prazer e entre eles contam-se carpinteiros, sapateiros e tecelões. Estão sempre prontos a acompanhar as bandeiras rumo ao sertão e são os primeiros a se preparar para uma guerra contra os índios do Sul, seus inimigos tradicionais. Encontravam-se centenas de índios nas fazendas (os religiosos também tinham os seus) e eram chamados de "gentio da terra", "peças forras", "gente do Brasil", afinal, ninguém podia escravizá-los. A Câmara reconhecia que eram moradores da terra e que, portanto, era melhor ficar nas fazendas sob a proteção da lei do que embrenhados nas florestas.
Era comum os índios passearem na vila armados de arcos e flechas e espingardas, dando tiros e provocando escaramuças. A Câmara proibia tais passeios e determinava: prisão de quem se achasse na vila portando espingardas, apreensão da arma e multa de 4$000 (quatro mil réis) para o seu proprietário.
Em julho de 1682 um grupo de paulistas irritados se reúne na frente da Câmara. Chegara a notícia de que o Papa condenava a escravidão dos índios e, por este motivo, ou se tiravam os "escravos" ou os proprietários teriam de pagar meia pataca por cada um. O escrivão Jerônimo Pedroso é obrigado pelo povo a elaborar documento registrando a insatisfação popular. Assustado, pois estavam todos armados com espingardas, espadas e outras armas, ele foi obrigado a reunir todas as demais autoridades da Vila. O povo não queria a presença de autoridades do Reino a embaraçar a vida da povoação e exigia que o Capitão Bartolomeu Fernandes reunisse soldados e fosse ao litoral para impedir que autoridades subissem a Serra do Mar.
A falta de lojas e armazéns na Vila de São Paulo levou a Câmara, em 1599, a estabelecer diretrizes para os que quisessem explorar o comércio. Os interessados deviam registrar seus negócios na Câmara, oferecer fiador, demonstrar habilitação ou competência para o ramo pretendido e comprovar idoneidade moral para o seu exercício. Depois de instalado o estabelecimento um fiscal (almotacé) ia conferir os pesos e medidas e regular a tabela de preços para impedir abusos prejudiciais ao povo. E, frequentemente, o comerciante de qualquer ramo receberia a visita do afilador de pesos e medidas que os devia conferir e aprovar. Apesar de todo esse rigor sempre houve fraude nos pesos e adulteração das medidas e volumes. A primeira loja foi aberta em São Paulo em 1603 pela cigana Francisca Roiz.
É também a Câmara que fiscaliza a urbanização e a conservação das ruas. Exigentes, os vereadores não permitem terrenos baldios nem quintais cheios de mato; os moradores são obrigados a tapar os buracos defronte de seus imóveis para evitar acúmulo de água; e o mato capinado tem que ser ajuntado e queimado. As penalidades variam de mil réis a dois mil réis; os prazos fixados são de oito dias a um mês; e os recalcitrantes recebiam ameaça de confisco dos terrenos sem construção, que seriam doados a outras pessoas interessadas em construir e morar.
Os vereadores cuidam também do aspecto urbanístico definindo ruas e praças, estabelecendo larguras e extensões, tudo em nome do melhor aspecto paisagístico para o benefício de todos. E para que as águas das chuvas não empocem os meio-fios são revestidos com tijolos de barro queimado.
A Câmara não permitia que sujeitos desocupados ou vadios ficassem perambulando pela vila. Recebida qualquer denúncia contra um deles era o mesmo intimado a comparecer em audiência e declarar em juízo o que fazia, do que vivia, se tinha parentes na vila, se possuía bens... ou então mudar-se para outra freguesia. Os baderneiros e propagandistas também eram intimados a adotar comportamento moderado ou tomar outro rumo. O mesmo valia para os fuxiqueiros e desinquietadores de famílias, que eram simplesmente enxotados.
Em julho de 1588 o povo se reuniu na Câmara e ficou decidido que a Vila de São Paulo precisava de uma igreja Matriz. Mesmo que em maio de 1589 a Câmara tenha pedido oficialmente ao Governador Geral o envio de um vigário, um sino e os necessários ornamentos para a tão sonhada Matriz a verdade é que ela só seria inaugurada em 1632 e com um sino emprestado pela Câmara, cujo porteiro ficou sem ter como convocar os moradores para as audiências pelo menos até 1645, quando o sino foi finalmente levado de volta à sede da edilidade.
Havia na Vila de São Paulo várias festas religiosas e algumas profanas. Para não faltar gente às mesmas a Câmara determinava que todos os moradores comparecessem sob pena de multa de dois tostões. Para quem faltasse à procissão de Santa Isabel a multa era mais salgada: dois mil réis.
E em 1620 a Câmara criou o "Corpo de Quadrilheiros" que eram os fiscais de quarteirão, encarregados de zelar pela ordem, comportamento e proteger a decência das famílias. Ninguém recebia salários ou qualquer agrado, nem mesmo vereadores, juízes, fiscais, mas todos prestavam juramento de bem servir a população.
Por esta época já ocorriam entradas ao sertão, em busca de novas descobertas, riquezas para amenizar a penúria da Vila ou apresamento de índios para trabalhos diversos. Os meninos, criados ao lado dos pais no trabalho rude e estafante, costumavam integrar as bandeiras. A Câmara, através do Juiz de Órfãos, proíbe que menores de catorze anos adentrem os sertões bravios. Mas eles vão e levados pelos pais. Mesmo antes de completar catorze anos os garotos, acostumados à rotina diária, já se portam como homens. Só não podem dar testemunho válido, mas temos o caso famoso de Manuel de Góes Leme emancipado por seu pai aos dezesseis anos. Dona Isabel de Almeida envia seu filho Simão, de apenas treze anos, para ir ao sertão na companhia do seu compadre, o famoso bandeirante Francisco Barreto.
Sempre que ocorre o falecimento de um pai alguém da família assume imediatamente a tutela dos órfãos. Um caso famoso é o da viúva Sebastiana Leite da Silva, irmã do "caçador de esmeraldas" Fernão Dias Pais que é nomeado curador dos órfãos. Ao assumir a função Fernão Dias declara que levará o filho maior, de dezesseis anos, ao sertão em sua bandeira.
Para defender o litoral paulista dos frequentes ataques de corsários sempre se convocaram os homens capazes de pegar em armas, "de catorze anos arriba"...
Quando Pedro Moreira faleceu, o seu irmão João Moreira compareceu perante o juiz para assumir a tutela dos sobrinhos e declarou que um deles, José, de catorze anos, não se encontrava presente por ter ido à Bahia (então invadida pelos Holandeses) integrando a tropa comandada pelo Capitão Antonio Raposo Tavares (o famoso bandeirante).

Naquela tosca e paupérrima oficina encravada no planalto de Piratininga uma verdadeira raça de gigantes estava sendo forjada. A palavra Democracia ainda nem fora pronunciada, mas lá já se podia enxergar o seu embrião em pleno e acelerado desenvolvimento. Assim é mais fácil entender porque a bandeira paulista traz o lema "Não sou conduzido, conduzo" (NON DVCOR, DVCO).


João Cândido da Silva Neto
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Fontes consultadas:
1) No tempo dos bandeirantes, Belmonte;
2) A cidade colonial, Nelson Omegna;
3) A Capitania de São Paulo, Alcântara Machado.