O Sentido de Criatividade numa Perspectiva Histórico-Cultural

Autora: Profa. Ms. Maria de Fátima Magalhaes Mariani

Quando discutimos criatividade as observações se dirigem para a forma descontextualizada e acrítica das pesquisas. A crença de que a criatividade seja um processo “intrapsíquico” surge como um indicador dessa característica.  Embora alguns pesquisadores defendam que criatividade envolve uma multiplicidade de fatores, os aspectos contextuais quando mencionados, aparecem de forma externa ao sujeito (MITJÁNS MARTÍNEZ, 1997; ALENCAR, 1996; MOURÃO e MITJÁNS MARTÍNEZ, 2006).

No estudo que realizamos de criatividade ilustramos percepções dos educadores com relação aos facilitadores e inibidores da expressão criativa no contexto da organização do trabalho pedagógico (MARIANI & ALENCAR, 2005).  Agora procuramos enfatizar as configurações subjetivas que participam da expressão criativa do professor, interpretando-as como configurações criativas. Entendemos que os aspectos subjetivos desenvolvem no decorrer da história de vida da pessoa, nas relações de sentidos produzidas nos diferentes contextos em que atuam e se relacionam.

Morin (2003) nos indica inúmeras possibilidades de revisão de nosso pensamento e de nossas práticas. Podemos estar pesquisando o mesmo tema a partir de outras perspectivas e descobrir aspectos que embora estivessem presentes naquele contexto, a nossa forma de olhar não nos permitiu enxergar. Morin chama a atenção para o tipo de pensamento reducionista que desconsidera a intrincada rede de relações na qual se movimentam nossas vidas, nossos fazeres, nossos saberes, nossos sentimentos, sonhos e esperanças.

González Rey (2007) enfatiza que a singularidade foi sacrificada em virtude da tendência universalista de padronizar e quantificar os componentes psíquicos, reduzindo-os “a categorias analíticas suscetíveis de medição”.  Com isso diminuíram-se as possibilidades de compreensão dos sistemas psíquicos na sua diversidade e complexidade. Inversamente, quando a singularidade é problematizada ampliam-se as possibilidades de contemplarmos o objeto na concretude de sua dinâmica psíquica e histórico-social.

A teoria histórico-cultural da subjetividade desenvolvida por González Rey e o pensamento complexo de Morin (1996; 2003) vem dar suporte aos estudos que buscam compreender a criatividade como uma construção subjetiva de sujeitos concretos, convivendo em contextos diferenciados e com características, pessoais e motivacionais, distintas. 

Em linhas gerais, o pensamento complexo se contrapõe ao tipo de pensamento linear, caracterizando-se como pensamento “articulante e multidimensional” e desconstrói o mito do pensamento completo, pronto e acabado. Pressupõe o reconhecimento do princípio de incompletude e de incerteza. O pensamento é espiral, rotativo “do objeto ao sujeito, do sujeito ao objeto” numa relação de “coprodução” (MORIN, 2003).

Nessa concepção criatividade se define como um complexo, multifacetado e heterogêneo, com diferentes formas e níveis de expressão. A expressão da criatividade depende de condições materiais, pessoais, socioculturais e psicológicas que na relação de interdependência constituem processos igualmente complexos (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2002).

As ações criativas estão assim relacionadas às “qualidades emergentes” de que nos fala Morin (2003). São qualidades que nascem no nível do todo sistêmico e chegam a ser qualidades a partir do momento em que há um todo que se desdobra em múltiplos contextos, retroagindo uns aos outros. Assim, os sentidos subjetivos que configuram na expressão criativa são constituintes e constituídos da/na personalidade.

Vigotsky (2011) enfatiza o papel da emoção e da comunicação na criatividade. Escreve que enquanto a emoção se expressa na atividade artística o pensamento criativo não pode ser captado, a não ser quando este se concretiza na ação. Nisso a linguagem, a escolaridade, as relações sociais e atividades, contextos dos quais o sujeito participa são extremamente importantes.

Vigotsky destaca, também, a significação da experiência na atividade criadora nos mostrando que o processo de criação se desenvolve ao longo do desenvolvimento humano. Referindo-se à imaginação criadora, enfatiza que esta se transforma e adquire características específicas no curso do desenvolvimento. Traz o exemplo do adolescente, à medida que amplia e aprofunda suas vivências subjetivas cria um mundo interno específico que se traduz nas manifestações criativas, versos, composições, narrativas. Mas isso se dá a partir das percepções do adolescente em meio às relações produzidas nos contextos dos quais participa.

Outra contribuição de Vigotsky na compreensão do processo criador diz respeito à vontade, à força de realizar a ação. Não se chega a uma atividade criadora só pelo ato imaginado. Fundamental nesse processo é a consciência do sujeito quanto ao raciocínio, observações que orientam o planejamento, objetivos, mobilização de recursos para a obtenção de resultados, e em especial, conhecimento do contexto ao qual dirigimos nossos projetos.

A nossa experiência no contexto escolar tem nos mostrado que transformamos maneiras de operar com a nossa imaginação pelas relações cotidianas do ambiente de trabalho, pela emergência de necessidades, pela apropriação de novos instrumentos e pela ressignificação da qualidade dos recursos que criamos. Muitas vezes a metodologia que utilizamos para conter os ânimos dos alunos e de controle da disciplina não é funcional em todas as turmas. Até mesmo numa mesma turma, nossos instrumentos podem variar de efeito no curso das relações pedagógicas.

Isso só reitera a compreensão de que nos estudos acerca da criatividade é possível levantar certas características que são comuns aos seres humanos no desenvolvimento de uma atividade criadora.  Contudo, tais características são extremamente variáveis em cada sujeito, não podendo ser analisadas sem que se leve em conta as relações do sujeito no curso de suas práticas e processos emocionais. Servindo de base para a teoria da subjetividade, as ideias de Vigotsky ganham significação com o conceito de sentido subjetivo. Sobre esse assunto discutiremos numa próxima oportunidade.

Referências

ALENCAR, E unice. M. L. S. A gerência da criatividade. São Paulo: Makron, 1996.

GONZÁLEZ REY, Fernando L. Psicoterapia, subjetividade e pós-modernidade: uma aproximação histórico-cultural. São Paulo: Thompson, 2007.

MARIANI, M. Fátima M. Criatividade e trabalho pedagógico: limites e possibilidades na expressão da criatividade do professor de História. Dissertação de mestrado. Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2001.

MARIANI, M. Fátima. M. e ALENCAR, Eunice. M. S. Criatividade no trabalho docente segundo professores de história: limites e possibilidades. Psicologia Escolar e Educacional, Campinas, v. 9, n. 1, p. 27-35, 2005.

MITJÁNS MARTÍNEZ, Albertina. A teoria da subjetividade de González Rey: uma expressão do paradigma da complexidade na psicologia. In: GONZÁLEZ REY, Fernando L. (Org.). Subjetividade, complexidade e pesquisa em psicologia. São Paulo: Thomsom, 2005.

_______. A criatividade na escola: três direções de trabalho. In: Linha Críticas, Brasília, v. 8, n. 15, p. 189-206. Brasília: UnB, 2002.

_______. Criatividade, Personalidade e educação. Campinas: Papirus, 1997.

MOURÃO, Renata F. e MITJANS MARTÍNEZ, Albertina. A criatividade do professor: a relação entre o sentido subjetivo da criatividade e a pedagogia de projetos. Psicologia Escolar e Educacional, Campinas, vol. 10 pp. 263-272, 2006.

MORIN, Edgar. Educar na era planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2003.

VIGOTSKY, Lev S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2011.