Edilson da Silva Abad Trigo[1]

Para exame da aula ministrada pelo professor Paul Ricoeur no Colégio Sophie-Barat (Canadá) em 22 de Outubro de 1965 intitulada: Interrogação filosófica e engajamento. Começarei destacando algumas frases para início de minha reflexão. Nesta aula Recoeur busca discutir não apenas o papel da filosofia na atualidade e o que é a atitude filosófica, mas também faz uma aposta para o futuro, diante dos desafios dados pelo desamparo do homem diante do "não-sentido que se implantou agora na cultura moderna" (p.10). E diante deste problema sentencia: "Hoje a questão do sentido e do não-sentido é que é a herdeira da antiga questão do sagrado" (p.10).

Assim, a hermenêutica (a ciência da interpretação, onde se determina o sentido) é chamada mais uma vez das interpretações teológicas do passado para uma nova abordagem metodológica para colocar tais questões de interpretação em pauta como necessárias para a Humanidade, pois, "a grande alternativa (...) que vivemos atualmente entre o humanismo ateu e a afirmação de Deus não dirá respeito somente à questão de uma escolha radical entre duas possibilidades, nem mesmo um confronto entre dois tipos de homens ou dois gêneros de vida, mas algo como um diálogo interior entre duas partes de nós mesmos" (p.10). E a aposta para o futuro é que "é isso que, segundo, entendo, a filosofia vindoura será chamada a testemunhar" (p.10).

Com estas palavras ele demonstra a grande questão deixada pela disjunção atual entre o homem e suas aspirações existenciais mais profundas (a sua liberdade) – que é a sua necessidade de transcendência – de eternidade, e o Humanismo ateu – que não consegue satisfazer tais aspirações em sua plenitude mesmo com um profundo engajamento. Mas tal engajamento não se dá numa via ou noutra, mas em interpretar o sentido em ambas as concepções, sem cair em extremos irreconciliáveis. Tal deveria ser a atitude do filósofo e da filosofia – um engajamento no sentido de se construir o que ele chamou de "humanidade total" que "deve ser equilibrada por uma outra visão, a visão das pessoas singulares e individuais" (p.3). Para isso seria necessária uma abordagem existencial em três níveis de profundidade: na vida cotidiana, na vida científica, e na vida de reflexão ou meditação.

Como grande exemplo de uma existência filosófica é apresentado Sócrates, pois, em sua vida seguia o lema: "a vida que não é refletida não merece ser vivida". Apontando assim a necessidade de uma "ação da razão", "uma ordem razoável de vida e de valor".E tal ação era o questionamento da Ironia socrática que não aceitava o que parecia obvio valores que pareciam ser preferíveis. Sendo, assim, uma reação contra o conformismo e os valores puramente materiais da sua sociedade.

O interessante é que conformismo e estes valores materiais são também os graves problemas de nossa sociedade moderna havendo uma enorme profusão de meios para realizações materiais – suas técnicas de produção, de realizar, enquanto há uma profunda pobreza de objetivos, de valores mais elevados, "um abismo de não-sentido no âmago de seus empreendimentos de racionalidade" (p.2). Havendo, por isso, um enorme conflito causador da angústia do Homem moderno.

E é precisamente deste desconforto que Ricoeur indica que nasce a interrogação filosófica ou engajamento filosófico. O autor revela, em síntese, dois objetivos principais: a realização de uma Humanidade Total onde as questões de desigualdade sociais fossem resolvidas, e, ao mesmo tempo, que houvesse de modo equilibrado a realização individual.

Tal engajamento deve também refletir sobre a existência que realiza os meios da vida moderna: a vida científica. Cavando as profundidades de seus fundamentos para se saber o solo em que está construído. Tal solo é, acima de tudo, Antropológico, uma reflexão filosófica sobre o homem – uma Antropologia Filosófica. Nela se examinam as diferentes formas de comunicação ou linguagem do homem, colocando cada uma delas em seu lugar. Deste modo, se explicaria porque as diferentes ciências tendo linguagens diferentes, no entanto, usam a mesma forma de comunicação. Ou seja, aqui Ricoeur já deixa indicado a necessidade de uma análise hermenêutica das ciências.

Entretanto, o principal foco desta análise hermenêutica seriam as ciências humanas, ali onde o homem melhor reflete sobre si mesmo, e, para o autor, o ponto de junção entre as ciências humanas e a filosofia seria exatamente a própria vida do homem; o que revela o problema de se ter uma reflexão objetiva neste campo que se confunde com a subjetiva. Assim, na reflexão filosófica deve-se mostrar que o homem é o lugar onde tanto o sujeito e o objeto se encontram e se confundem.

Assim, estes dois níveis de viver ou de engajamento: o primeiro na vida cotidiana que pode ser sinteticamente considerado como um domínio ético, e o segundo na vida científica que pode ser sinteticamente considerado como um domínio epistemológico, e ambos se encontram em uma terceira abordagem que é o do engajamento no domínio ontológico. Aqui, neste domínio ontológico, se colocaria como plano principal os problemas de fundamento e o problema de origem que são respostas às questões: o que é o ser? O que é? A reposta a estas questões na filosofia antiga se confundia com uma cosmovisão, e a filosofia tinha o papel de trazer o homem para um certo engajamento reflexivo e ativo neste cosmo.

Ocorre que isto se perdeu com a dicotomia que surgiu com a filosofia e o mundo moderno entre: de um lado, "a questão do ser, da natureza, de Deus e, de outro, a questão deste próprio homem" (p.8) que deu estes dois sentidos à filosofia. Por isso, agora o homem se vê diante desta fenda no campo ontológico que o faz ter uma dupla tarefa: a do esclarecimento e do exame das conseqüências de uma escolha, "ou de outra na concepção da ética, na questão da vida pessoal, no diálogo com as ciências e particularmente as ciências humanas" (p.9). Haveria aqui, na história da filosofia moderna, momentos de crítica – onde se nega o passado, e momentos de síntese ou orgânico – onde a reflexão dada é aceita e estimulada, e nesta segunda que é a de escolher e dar testemunho – não pode ser de modo algum como antes uma afirmação absoluta, mas é um risco assumido por mim e ao mesmo tempo leva em consideração a razão dos outros. Assim, os três tipos de engajamentos estudados aqui se uniriam de modo simples aqui.

Deste modo, Ricoeur aposta que estaríamos, quem sabe, no início de uma nova época do pensamento, de um novo engajamento intelectual como nos referimos no início onde o sagrado e os ideais do Humanismo ateu possam conviver e eliminar as acima citadas dicotomias espirituais do mundo moderno.

Tal mensagem parece bastante atual, principalmente agora em que culturas e religiões tão diferentes são chamadas a conviver em um mundo cada vez menor, devido às facilidades de comunicação e transporte; e por isso mesmo tendente a ser mais conflituoso. É por isso que uma posição unilateral de qualquer dos lados que convivem entre si fatalmente trás conseqüências desastrosas. Entretanto o que se percebe é que infelizmente tal posição unilateral parece ser o caminho escolhido muitas vezes pela parte mais poderosa e rica do mundo como foi o caso da reeleição do presidente Bush nos EUA e sua política de prevenção ao terrorismo na primeira década do milênio e a conseqüente invasão do Iraque, o eterno refluxo na paz em Israel, entre outros casos que mostram que o poder e a riqueza maior não indicam maior sensatez, muito pelo contrário. Entretanto, talvez a aposta de Paul Ricoeur em um entendimento global, ou a eliminação das dicotomias existentes no mundo moderno se dê mais para o futuro...


[1] Mestre em filosofia social pela PUC-Campinas, professor da Faculdade Adventista de Hortolândia.