O Atendimento Psicanalítico e suas Especificidades

 

Marina Marques

Supervisão: Eliane de Augustinis

Trabalho apresentado na II Jornada do Serviço de Psicologia Aplicada, na Universidade Veiga de Almeida

"Todo principiante em psicanálise provavelmente se sente alarmado, de início, pelas dificuldades que lhe estão reservadas quando vier a interpretar as associações do paciente e lidar com a reprodução do reprimido”. Isso é o que nos diz Freud em seu texto observações sobre o amor transferencial.  (1915).

 Nesse momento em que iniciamos nosso estágio profissional, as palavras de Freud confirmam nossa percepção do fato. Como devo escutar o que é dito pelo sujeito diante de mim? Como é estabelecida essa relação tão específica?

Para responder a todas as nossas interrogações nesse momento devemos recorrer aos referenciais teóricos, não prescindir de nossa análise pessoal – lugar onde poderemos de fato vir a nos tornar analistas – e finalmente, utilizar os momentos de supervisão para produzir um saber sobre o caso clínico propriamente dito. Somente, munidos desse tripé, estaremos rumando em direção a construção de um tratamento que venha trazer as verdades do sujeito em análise.

Buscando entender melhor tal relação, nada mais apropriado do que rever um dos princípios fundamentais da análise, o fenômeno da transferência. É sobre essa especificidade da nossa prática clínica no campo da psicanálise que gostaria de trazer como tema central dessa apresentação.

Como afirma Antônio Quinet em seu livro “As quatro mais uma condições de análise”, o rigor do tratamento analítico não se encontra nas regras, mas na condução da análise e para isso, as entrevistas preliminares são fundamentais para se aceitar um candidato à análise. Nesse período inicial do tratamento, anterior ao início da análise em si, é realizada a tarefa de diagnóstico, de avaliar o sintoma e a transferência, elementos fundamentais para que se dê efetivamente uma análise. O próprio pedido de análise deve ser questionado, pois segundo Lacan, o único motivo que leva a uma análise é a demanda de se livrar do sintoma. Assim, a demanda de análise precisa estar ligada a um sintoma analítico que é correlato ao estabelecimento da transferência. O conceito de transferência é muito importante para o psicanalista em sua atuação clínica, pois é esse fenômeno que faz surgir o analista como “sujeito-suposto-saber”, ou seja, aquele a quem é endereçado a demanda analítica. No questionamento sobre seu ser, o sintoma pode ser lido então como uma solicitação: “sim, tô mal”, uma constatação de que algo o faz sofrer e também pode ser lido como uma entrega ao analista como o Outro do saber: “sim, toma”. Ou seja, não adianta apenas o candidato à análise se queixar do sintoma, é preciso que a queixa se transforme em demanda endereçada àquele analista e que o sintoma passe a ser uma questão de investigação para o sujeito. Só assim ele será instigado a decifrá-lo.

Quanto a esse fenômeno particular do tratamento psicanalítico, a transferência, Denise Maurano, em seu livro com o mesmo título, explica que a transferência é em si uma demanda de ser amado, e articula-se com a forma como essa demanda será tratada, encaminhada, acolhida e desmontada na experiência psicanalítica. Para Freud, a transferência indica um investimento afetivo do paciente dirigido à pessoa do analista, através do qual são atuadas experiências regressivas infantis. Já Lacan destaca a suposição de saber creditada ao analista como pivô da transferência, e o amor como seu efeito.

Lacan afirma que Freud, no texto Observações sobre o amor transferencial, chama a transferência de amor e que não há nenhuma distinção essencial entre elas. Então falar desse amor referente ao amor do analisando pelo analista no decorrer do tratamento, nos leva a história de como tudo isso começou: O amor de Anna O. por Breuer, o amor de transferência. Como sabemos, Anna O., uma jovem histérica de 21 anos que ao procurar Breuer para se livrar de seus sintomas acaba desenvolvendo um amor pelo médico. Ao notar isso, a mulher de Breuer pede para que ele largue o caso. Como Anna O. já vinha apresentando melhoras em seu tratamento, Breuer concorda e ao comunicá-la, Anna O. aparece com sintomas de um parto histérico. Trinta anos depois, Freud nomeia esse ocorrido de amor de transferência.

Freud descreve o fenômeno da transferência como a reedição de fantasias que se dirigem ao analista, a partir do momento que ele passa a ocupar o lugar de outra pessoa. Não se trata somente de recordar essa fantasia, mas de revivê-las, repeti-las com a figura do analista.

É necessário um aparecimento de um traço pelo qual seja identificada a pessoa no analista com uma pessoa do passado. Assim, encontra-se junto àquilo que o sujeito espera do Outro a quem ele se dirige. Isso aparece por uma experiência na qual o sujeito comparece de forma mais perto da verdade de seu desejo, revelando sua forma de lidar com ele, o que mostra que o inconsciente não é um apenas do passado, mas algo que se atualiza no presente.

Embora Breuer tenha ficado muito assustado com o evento, desligando-se do caso, Freud, ao dar continuidade ao tratamento de Anna O. percebeu que a moça estava atualizando no presente o material inconsciente, ligado a pessoas do passado e que se relacionavam com o seu desejo.

A transferência de Anna O. só foi possível porque atribuiu ao analista uma suposição de saber sobre suas verdades inconscientes, os seus desejos. Se, por algum motivo, ela não se estabelecer, se o paciente não for capaz de fazer um investimento no analista, sustentado, sobretudo em supor-lhe um saber, e viver os efeitos disso, também em sua dimensão afetiva, a utilização desse método fica inviabilizado.

Quando alguém procura um analista é porque credita a ele ou à psicanálise algum saber que é intrigante, exatamente porque o escapa. Lacan diz, que a pessoa que é creditado a esse saber é chamado de “grande Outro”, e assim funciona como uma referência para a organização subjetiva do sujeito, que é feita pelo acesso à linguagem. Como se ele fosse a garantia do bom andamento das coisas, lugar de onde emanaria a verdade de nós mesmo, é que nos dirigimos a esse Outro. É essa suposição de um saber no Outro que Lacan localiza como pivô do deslanchamento da transferência.

Até aqui, vimos a importância da transferência para o analisando poder investigar a verdade sobre seus desejos inconscientes. Agora podemos entender como o analista maneja essa transferência de amor. O analista sabe que aceitar a oferta do candidato à análise de retribuir o amor, incorreria em um engodo terrível, pois corresponderia à ilusão de completude amorosa, expectativa sempre frustrada nas relações da vida do candidato à análise. Contribuiria com a manutenção sintomática do sujeito em lidar com o seu desejo que comporta sempre o encontro com a falta de um saber, ou seja, o analista conduz a análise, de acordo com o movimento transferencial para que o amor que visa a completude compareça como demanda e seja possível reenviar o analisando para o encontro com sua própria castração. O analista ao não atender a demanda do analisando apresenta em ato que a castração é para todos. Não oferecer uma resposta é, pois, uma estratégia da condução de análise.

Não responder à demanda não é dizer “não”. É o analista aproveitar a questão para fomentar no sujeito a possibilidade de ele mesmo se intrigar no que está pedindo, tentando buscar o que o move nisto no contexto da análise e, para além dela. É importante deixar o analisando na falta, é fundamental avaliar a forma de fazê-lo e a dosagem na qual isso é produtivo porque há um nível de perturbação que pode atrapalhar a continuidade do trabalho. É dever do analista sustentar a experiência da falta, o que significa partilhá-la com o analisando.

O analista também não está isento de transferir. Por isso se espera que ele tenha feito o seu próprio percurso no tratamento, como sugere a formação psicanalítica, e esteja melhor preparado para saber de que são tecidas suas relações pessoais, e não venha a misturá-las com as do paciente. Os estudos teóricos são importantes, porém, de nada valerão se o sujeito que pretende ocupar essa função não proceder a um tratamento pessoal, no qual o que Lacan chama de desejo do analista posso surgir e habilitá-lo, confirmando sua pretensão.

Freud nos diz que é inegável que o controle dos fenômenos da transferência oferece as maiores dificuldades ao psicanalista, mas não se deve esquecer que justamente eles nos prestam o inestimável serviço de tornar atuais e manifestos os impulsos amorosos ocultos e esquecidos do paciente.

As histéricas mostram com clareza a demanda de amor, como comenta Malvine Zalcberg, elas buscam um homem que escape a castração não tanto para amá-lo, mas para que ele corresponda à sua expectativa, que é a de poder dizer algo sobre ela – “diga alguma coisa! você não me disse o bastante!” vocifera a histérica. A insistência de obter uma resposta da parte do homem é a estratégia de lidar com ele, para mostrar sua insatisfação, e o acusa no final de “ser covarde” de não ser “um homem de verdade” e mostrar que pode ficar sem ele. “Posso perder-te” é a vertente subjetiva da interrogação que no fundo ela dirige a ele para saber do seu valor, do que ela representa em seu desejo: “Pode me perder?” Frente a essa e outras perguntas – “por que você me ama?”; “o que você ama em mim?” – pelas quais as mulheres querem que ele lhes diga quem são como mulheres, o homem emudece, perplexo ele próprio de não ter respostas. Ele chega a acreditar que se trata mesmo de uma incompetência dele – não é o que ela diz mais de uma vez? – não conseguir corresponder às demandas das mulheres, quando na verdade não compreende e não sabe o que elas lhe pedem. Há um esforço a mais no homem para ser aquele que teria a resposta a oferecer-lhe. Haveria algum homem que poderia lhe dar essa resposta? Não, pois todos são castrados.

A modalidade de amor, que entra em jogo no amor de transferência, é um amor que demanda ser amado que se sustenta na ilusão de que o objeto amado tem o saber que falta ao amante. No regime do excesso, amor e ódio oscilam em um movimento análogo ao do pêndulo, essa é a ambivalência como marca registrada do amor.

O analista sabe que o amor deve visar o saber inconsciente e é a ele que aponta e não ao seu esforço de corresponder à expectativa histérica. Assim, o amor que o analista visa é aquele que o contrário da paixão, pois na paixão não se admite os erros do outro, os seus defeitos e as fraquezas do amado, já que ele é a minha garantia. Mas o amor comporta a falta de um saber. Ao saber não ter as respostas que o analisando espera, opera o “milagre do amor”, que é a levar o analisando a posse do seu valor interno e inconsciente. O olhar que antes estava depositado no brilho de saber no Outro se volta para si mesmo. Agora o analisando pode ouvir os seus ditos, sair da confusão imaginária que cria nas relações amorosas e posicionar-se diante dos seus desejos.

 

 

Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). ESB, v.XII. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p.146-159.

_________________  Observações sobre o amor transferencial (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III) (1915) ESB, v. XII. Rio de Janeiro: Imago; 1977. p. 208-21.

QUINET, A. As 4 + 1 condições da análise, 10ª Ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2005

MAURANO, Denise. A Transferência: uma viagem rumo ao continente negro. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2006.

ZALCBERG, Malvine. Amor paixão feminina – Rio de janeiro: Editora Campus, 2007.

FERREIRA, Nádia. A Teoria do Amor na Psicanálise. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2004.