O AMOR NA FORMAÇÃO SOCIAL DO BRASIL


Por onde andará o tão decantado Amor?
Examinando-se à nossa volta, percebe-se apenas um vazio silencioso e desolador, estremecido aqui e ali apenas pela lamúria monótona das músicas dos pagodeiros e duplas sertanejas que, com suas letras repetitivas tentam, insistentemente, nos fazer acreditar no romantismo canhestro por elas preconizado e exaustivamente martelado em nossos ouvidos, a ponto de formar calombos nos nossos já sofridos tímpanos.
Mas, se as canções de maior sucesso na mídia são as que falam de Amor, como explicar o sumiço do dito cujo?
Desde a antiguidade que o Amor é cantado em prosa e verso. Quando o apaixonado príncipe Páris, de Tróia, raptou a sedutora Helena, esposa de Menelau, a Grécia inteira se inflamou e, depois de dez anos de intensos combates Tróia virou escombros. Por Amor Dante Alighieri colocou Beatriz, sua paixão, como sua salvadora em A Divina Comédia; e Ulisses conseguiu retornar aos braços e abraços de sua amada Penélope, que o esperou por vinte anos.
Exemplos comoventes de paixões avassaladoras ilustram centenas de publicações por toda a Europa medieval; e nesta escola os escritores brasileiros formataram sua bagagem acadêmica. Quem lê os romances e poemas publicados no Brasil ao longo dos séculos 18 e 19, sente inveja dos casais daquela época.
Estórias criadas por escritores inspirados não na realidade vivida, mas no padrão que idealizavam para dar vazão aos sonhos de uma sociedade que se construiria a partir dos moldes sugeridos. Pena que não deu certo.
A realidade da sociedade, com seu cotidiano rude e cruel, suplantou as românticas intenções dos literatos. A voz do povo se impôs nos usos e costumes, ignorando a suavidade das páginas literárias.
Num país de larga extensão geográfica, com pessoas praticamente isoladas nos mais distantes recantos e sem acesso a educação e cultura, só poderiam prevalecer os valores locais, alterados lentamente pelas eventuais novidades trazidas pelos raros forasteiros, dentre estes, os mascates, que só paravam pelo tempo necessário para se desfazer das bugigangas trazidas e botar novamente o pé na estrada.
As pequenas localidades sempre se esforçaram para edificar uma bela e suntuosa igreja, como inequívoca demonstração de fé, mas quase nunca manifestaram idêntico entusiasmo para construir uma escola. Com a influência da religião orientando usos e costumes e implantando regras de comportamento social, os eventos culturais se resumiam às festas religiosas, destacando-se, entre elas, as comemorações de Natal, as quadrilhas de São João; e até a malhação do Judas se tornava uma atração imperdível.
Era o suficiente para uma comunidade estruturada sob os princípios da Igreja, mas insuficientes para uma sociedade que precisava se estruturar e acompanhar o desenvolvimento em ascensão nas grandes cidades do Brasil e do mundo.
Nessa sociedade vigorava o patriarcalismo, com fazendeiros detentores de largas extensões de terra e muitos escravos; e propriedades rurais quase auto-suficientes, bem pouco dependentes do núcleo urbano. Neste quadro social como difundir cultura e educação se faltavam recursos humanos e financeiros, pois desde o início da colonização até a Independência do Brasil (1822) as preocupações das autoridades raramente se voltaram nessa direção; e a partir do início do primeiro Império até a proclamação da República (1889) o país enfrentou problemas de produção agrícola, de exportações, de dívidas contraídas, revoluções internas, guerra com o Paraguai e todo o processo que levou à abolição da escravidão com a consequente transição para um mercado livre.
É evidente que a realidade sócio-econômico-cultural foi determinante para a ascensão e predominância de padrões de comportamento incompatíveis com o romantismo preconizado pelos escritores e poetas. Os belos romances e poemas eram lidos por poucas pessoas e raramente chegavam às pequenas e distantes localidades, onde eles mais se faziam necessários e onde seriam mais úteis.


No lugar do Amor impunha-se uma obrigação; um gesto de indiferença ou um tabefe no rosto como retribuição a uma carícia afetuosa; um chicote sempre pronto para punir uma traquinagem dos filhos, para endireitar o modo independente de pensar da filha sonhadora e para opinar sobre o atrevimento da mulher que ousou manifestar um desagrado. A liberdade de falar ou de opinar era exclusividade do patriarca.



Tanto no pequeno feudo rural como no acanhado núcleo urbano o autoritarismo patriarcal ditava as regras de comportamento e até a etiqueta social. Se uma autoridade ou uma figura proeminente da sociedade visitasse a fazenda e ficasse para dormir, o anfitrião mandava uma escrava, quase sempre uma menina entre dez e doze anos, ir pro quarto do visitante "fazer-lhe as vontades". A dignidade da mulher escrava sempre foi reconhecida pelo seu amo como um mimo a ser oferecido aos visitantes e, eventualmente, para seu deleite pessoal.
Também os nossos dois imperadores, Pedro pai e Pedro filho, tinham auxiliares encarregados de percorrer as fazendas e identificar meninas escravas entre dez e doze anos que seriam levadas ao palácio para uma noite na cama de Sua Majestade. No dia seguinte a escrava recebia um presente e era levada de volta ao seu proprietário. (A exploração sexual de crianças já vem de longa data).
Como iriam aquelas meninas entender o Amor se cresciam sob a chibata do feitor?
Como compreender o sexo se eram violentadas para a satisfação egoística de uma respeitável autoridade?
Como entender a vida se eram apenas mercadorias adquiridas no mercado e podiam ser negociadas a qualquer momento pelos seus proprietários?
Como ter esperança se viam os irmãos de sua cor serem chicoteados, trabalhando até a exaustão; e o fazendeiro branco espancando os próprios filhos e esposa?

Da senzala não era de se esperar um alento de esperança para a sobrevivência do Amor. Mesmo assim, expostas aos castigos físicos e a todo tipo de humilhação, as mulheres negras tentaram.
Quando a sinhazinha, ainda menina, não podia amamentar o filho, uma delas se tornava ama-de-leite; e para cuidar do filho já desmamado outra se tornava ama-seca. E com que Amor elas cuidavam das crianças! E assistiam a sinhá, tratando as marcas que socos e pontapés lhe deixavam no corpo; e amenizando, com atitudes meigas e carinhosas, as feridas que permaneciam na alma.
Nos cuidados com as crianças elas criaram até vocabulário próprio, enriquecendo o nosso idioma. Assim, cagar virou fazer cocô; comer a papa, papá; dormir passou a ser naná; e mijar tornou-se fazer xixi.
Quanta ternura vinda de onde os homens brancos menos esperavam!
Elas criavam comidas, doces e licores deliciosos para agradar o amo e seus constantes visitantes ? os elogios eram recolhidos pelo senhor, nunca pela sinhá. E com os restos de carne que eram enviados para a senzala criaram a feijoada, que se tornaria um dos pratos mais apreciados da culinária brasileira.
Atendiam a todos com imenso prazer e dedicação e procuravam satisfazer todos os gostos do amo e da sinhá, mas não escapavam do jugo ferrenho da chibata, que vivia na mão do senhor feudal como um cetro a simbolizar o seu poder absoluto.
Como o Amor haveria de sobreviver num ambiente social tão nefasto às suas sublimes emanações? Com o romantismo dos literatos enclausurado nas páginas dos livros a embolorar nas estantes de uns poucos privilegiados? Sem escolas e com um meio social avesso e alheio a manifestações culturais? Impedindo-se a livre manifestação do pensamento das crianças e jovens e, consequentemente, abafando toda e qualquer contribuição que pudessem dar para o aprimoramento do tecido social?

Entenderemos melhor o presente a partir de um estudo amplo e profundo do passado, para então podermos reorientar o nosso comportamento com vistas ao futuro que almejamos para nós e para a sociedade.



João Cândido da Silva Neto