Internet: mergulho no abismo

Naquele tempo a mulher do povo enxugou o rosto sangrado do filho de Deus.  A imagem estampada no véu foi nominada à categoria de aura ao grito de "vera ícona", que dá nome à Verônica, a pagã que trouxe a verdadeira imagem da divindade misteriosa chamada Jesus. No cantochão de Verônica, revelando no véu a epopéia sedutora da imagem viria reforçar a dominação católica, por séculos e séculos, amém, pois o homem é presa fácil de signos sonoros e ícones.

A magia e espanto da reprodução no ecrã, fora de si, para o outro, instiga à reflexão dos mistérios labirínticos que envolvem o existir. Ser seduzido por imagens é o máximo da distração e estar distraído gera o estado de inércia, terreno fértil para a hipnose. E se "o olho apreende mais rápido do que a mão desenha", o enigma da esfinge, eterna Medusa a transformar o homem em pedras, congela o decoficador num acorrentado, como Prometeu da tragédia grega.

Se fosse fácil não seria mágico. A qualidade principal da imagem que serve ao culto é ser inaproximável. Por sua natureza ela é sempre longínqua, por mais próxima que possa estar. O impacto da química do bem promovida pela descoberta da fotografia, promoveu a revolução que antecedeu a sociedade da informação. O homem como vilão de si mesmo, inconformado com a prisão e limitação corporal que estar vivo exige, busca elementos de inteligência artificial para explicar o desespero de cada segundo sem resposta. A aura é a ponte entre o estar aqui sentindo e realidade etérea que precisa mirar para não enlouquecer nas "estradas da informação " de Juan Tedesco( 2006).
 
O invólucro que protege a obra de arte garante a magnitude da aura, o valor cultural e a autenticidade se prostituiu com o avanço da tecnologia antropofágica e sádica.Homem lobo do homem. "Se a obra de arte sempre foi suscetível de reprodução" a tecnologia faz da indústria cultural numa orgia de letras, sons e imagens. Um bacanal dionisíaco que mistura o sacro e profano.

"O hit et nunc" (O aqui e agora)  de Walter Benjamin se perde na promíscua reprodutividade técnica. As invenções permitiram um sem número de cópias xerográficas, fax, papiros, papel, carbono, mimeográfo, papel de seda, espelhos mágicos,litografias, ultrassonografia, tatuagens, gravuras, retratos,  binóculos,ampliações por geometria, lupas, microscópios, tomografia computadorizada, alterações de estampas com acetonas etc. A artilharia da criatividade a serviço da permissividade. Benjamin analisa como pecado mortal "o que uns homens haviam feito, outros podiam refazer. Em todas as épocas discípulos copiaram obra de arte a título de exercício" (?).

André Gide(1996) propõe o termo construção em abismo (Mise em Abîme/Em Abyme), por analogia com o termo brasão "que designa uma figura colocada no centro do escudo, e que figura outro escudo". Os meios de comunicação permitem a modalidade da busca do elemento reprodutivo, dentro de outro e assim, indefinidamente. No abismo.

Na sonolência do botequim pé-sujo, que povoa o cotidiano brasileiro, "com bêbado, o mendigo, o vendedor ambulante de banha de cobra" as estrada da informação fazem o "pé-sujo" voltar americanizado como "Cyber Café", onde bêbados do ecrã se entorpecem com rótulos e signos. Coisas de lá com as de cá. A nova identidade do "pé-sujo cibernético" traz o vício eletrônico, a construção em abismo do navegar, onde distração, a atração, fascinação atraem pela hipnose a viagem épica pela internet.

Viciados da Net unidos vagam, como cão sem dono, pelas ruas na falta de energia elétrica nos ciber limpos.

A interação cara-a-cara é substiuída por ícones, sons e textos em profusão.Invade-se o mundo proibido e o permitido.É a prostituição da informação virótica. Inclui o cidadão na sensação de pertença, como no gozo sexual, divinamente partilhado com todos no existir. O cidadão usa a internet como inclusão, com prazer, sentimento,  como na viagem de Verne "ao mundo', agora em trinta segundos. Ele existe, pensa sobre suas coisas e as do universo. E pode criar e recriar  imagens e semelhança.

O domínio das sensações humanas faz interagir a solidão nos milhares de bytes do ecrã. Se o vizinho não o conhece, não tem voz ativa na política, no ciberespaço tudo é diferente: pode-se amar, encontrar, chorar, protestar, ser voyeur, fazer sexo virtual, pecar e rezar. O escape é o slogan da liberdade e sonhos utópicos.

O nome é feio: ecrã. Mas permite o passeio pelo shopping center eletrônico da vida, da descoberta do deus virtual. Poder mergulhar exige esforço sinestésico profundo. Visão, tato, audição, paladar (apesar de fumar, beber e comer perto do teclado ser pecado). Nesse pé-sujo não se cospe no chão.

O toque erotizado das teclas faz do navegador o onanista virtual, sem sair da aldeia para a orgia midiática. Lá, com profundo gozo e alteração das sensações e percepções encontra  a Verônica e o véu, a fotografia, as cópias pioradas do existir e virtuais sentimentos. A informação virótica faz a ponte entre o homem e o mundo, que como a Verônica contemporânea busca o revelar de segredos, sonhos e fantasias. E milagres!