Em um mundo perfeito, cada ser sensível seria para os demais objeto do mais repleto amor, constituído de prazer, benevolência e compreensão inextricavelmente combinados.

Bertrand Russell

Invariavelmente, este ensaio deverá abordar certo idealismo utópico de minha parte, no sentido de externar minha preocupação referente a uma situação mal resolvida em termos de consciência individual e coletiva. A sala de aula ainda é um grande paradigma. Inevitavelmente, um mal estar para a filosofia, e em especial, nas instituições de ensino do país.

Este texto surgiu de um recente fracasso. Trata-se de uma tentativa abortada de continuar dando aulas de filosofia para crianças num colégio da rede particular de ensino, na cidade do Natal, RN. Com a oportunidade do evento, minha angústia acabou por se reverter numa proposição discursiva quanto ao uso da reflexão em sala de aula. Pela primeira vez, o coordenador pedagógico resolveu utilizar aulas de filosofia com crianças (1° ao 6° ano fundamental), como disciplina complementar.

Quando notei minha incapacidade de levar o projeto adiante, não deixei de observar a falta de preparo do corpo docente para simpatizar com a idéia. Bem, entendo que a pedagogia de projetos escolares é um mecanismo eficiente para lidar com empecilhos e melhor planejar as aulas. Porque meu projeto falhou, se estava imbuído da tamanha vontade política de incentivar crianças à arte de pensar?

Se falarmos em arte, eventualmente devemos perceber a capacidade de administrar uma classe com pessoas que estão em outro momento de suas vidas e, possivelmente, acharão toda essa idéia de reflexão como algo tedioso. Sabemos que crianças não mentem. Elas não têm motivo pra isso. Ao contrário, testam nossa inventividade. No quesito filosofia podem acusar professores(as) daquilo que seus pais e mães (nós) não aprenderam na escola.

Pedagogos, historiadores, matemáticos e, filósofos! Profissionais da educação, pensem por si mesmos o que significa esta palavra em seu vocabulário instrucional e digam se a didática por nós exercida, pode leva-los aos rumos da filosophia tão desentendida na educação brasileira.

Evidentemente, quero referir-me ao período concernente ao Regime Militar (1964-1985) e suas implicações diretas na pós-ditadura. O que muitos historiadores chamam de transição democrática, conservou no estado nacional o pior dos vícios. Institucionalmente, a "reforma" educacional desenvolvida pelos militares nutriu-se nos valores autoritários da lei de segurança nacional, inicialmente marcada pelo AI-05 (Ato Institucional N° 05, de 1968), orientando todo o programa para o ensino no país.

Quase duas décadas para explicar a orientação do que nos remete aos problemas da formação intelectual do brasileiro(a).

Foi exatamente o peso que senti, por exemplo, quando um aluno de 11 anos detestou a idéia de pensar em Sócrates. A abordagem que fiz – na mesma turma sequencialmente – sobre Teseu e o Minotauro (a obscuridade de cada ser) e liberdade do espírito crítico perdeu ponto para os jogos de vídeo game. Ao contrário do que a pedagogia possa pensar, tais programas de computador, largamente utilizados pelos jovens em Lan Hauses, estão cada vez mais dotados de tecnologia criativa: satisfazem a imaginação, tal qual um embate filosófico.

Nestes casos, a vida real pode ser substituída por labirintos, aglutinando uma miríade de personagens: cavaleiros com espadas, serial killers matando velhinhas (bônusextra para tal façanha), dragões cuspindo fogo e máquinas exóticas invadindo outros planetas. A indústria do entretenimento nunca lucrou tanto. Mas independentemente disso, não gostaria de ver um destes jogos reproduzindo a Academia de Platão. A mulher, o bárbaro e os macedônios do norte continuariam fora da sua escolástica sacerdotal.

O mesmo aluno acusou-me: "Sua aula é chata". Comentei-lhe que tinha interesse em conhecer os tais jogos virtuais, embora os mais violentos tenham grande destaque nas diferentes mídias. Se o capital econômico não fosse tão predatório, novos sistemas digitais deste entretenimento poderiam ser desenvolvidos para situações intelectuais menos anti-democráticas. Mas não bastasse isso, a falta de estímulo sobre a leitura – não como há vinte anos atrás – nos leva a crer que a subjetivação do conhecimento está cada vez mais distante do pensamento filosófico: justamente esse, capaz de recriar a inventividade e sensibilidade furtada pelos games. Isso também aproxima um pensamento técnico, dotado de outras fontes cognitivas, em grande parte desconhecidas pelo educador(a) acerca de seus efeitos futuros no imaginário coletivo.

A grande pergunta seria: qual o futuro da reflexão frente a outros modelos cognitivos e referenciais? Não devemos esquecer a importante análise de Foucault (1999) ao mencionar os dispositivos discursivos de poder, entendidos como instrumento de controle social. Os sentidos humanos, quando não trabalhados para o sensível, podem mecanizar os sentidos, prejudicando a própria subjetividade emotiva do ser, na qual determinados setores da psicologia preferem tratar como falta de inteligência emocional.

Em particular, o Brasil recém-saído de uma ditadura militar (1985) tenta reencontrar novas possibilidades no ensino para provar que o uso da filosofia não é seita para sacerdócio e arrogância acadêmica, tampouco abstração dos sentidos, mas uma variante da existência, procurando desconstruir normas culturais pouco interessadas em novos espaços de saberes.

Na década de 1990, tivemos a importância ativa de setores da sociedade civil e governos para com reformas no ensino. O uso da filosofia enquanto disciplina demoraria um pouco mais, tendo uma relativa popularidade no início dos anos 2000, entre as séries que compreendem o 2° grau.

Com a Constituição de 1988 e a nova LDB (Lei n° 9.394/96), amplos debates na formação de profissionais da educação ganham destaque em escolas e universidades. Porém, vale lembrar que tais discussões já vinham sendo levantadas desde os anos 1980. Neste sentido, portanto, a LDB veio sacramentar iniciativas progressistas no plano educacional do país.

Se lembrarmos do método ideológico adotado pelos militares com a OSPB (Organização Social e Política do Brasil), claramente implantada nos currículos do ensino médio e fundamental para substituir outras matérias essenciais, como História, Geografia e a própria Filosofia! O caráter ideológico dessa disciplina não priorizava o senso de reflexão, reforçando a assimilação mecanicista nas escolas.

Observando as informações de Salgado (2000), não deve haver separação estanque entre a formação inicial e continuada nas metodologias pedagógicas, salientando o desenvolvimento de uma prática filosófica em sala de aula, dentre outras questões.

Nas linhas de tal contexto, é possível, nos dias atuais, tornar a filosofia palatável, seja com crianças, jovens ou adultos? Façamos uma breve leitura sobre o pensamento de Sloterdijk, numa carta-resposta ao humanismo de Martin Heidegger, análoga e aplicável à nossa temática:

Reconhecer que a domesticação do ser humano é o grande impensado, do qual o humanismo desde a Antiguidade até o presente desviou os olhos, é o bastante para afundarmos em águas profundas. Onde não pudermos mais ficar em pé, lá assoma à cabeça a evidência de que a domesticação e amicalização educacionais do ser humano não poderiam, em nenhuma época, ser alcançadas só com o alfabeto (SLOTERDIJK, 1999, p. 43).

Na pós-ditadura, nossa felicidade será o acúmulo e distribuição de neo-práticas e saberes capitaneados por uma mentalidade filosófica, new age classic na pós modernidade, com atributos complexos, incentivadores do ensino de filosofia no século XXI. Se a herança do humanismo de Heidegger sobre a crítica de uma humanitas em processo desconstrutivo, face as novas transformações da cultura em relação ao ser contemporâneo, suas utilizações da arte política – belos exemplos da República de Platão – , devem fazer outro questionamento trivial: que papel essa nova filosophia deve (poderá) exercer para as novas gerações?

Na época de Homero, a humanidade oferecia-se sem espetáculo aos deuses olímpicos. Agora, ela se transforma em espetáculo para si mesma. Sua auto-alienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem (BENJAMIN, 1994, p.196).

A realidade das escolas públicas e privadas, particularmente nos espaços urbanos populares, apresenta um déficit estrutural quanto aos métodos que visem uma melhor distribuição de saberes nestes contextos. É uma colocação polêmica, mas vou justificá-la. Dada a contingência de vários problemas encontrados nestas comunidades e como tais fatores influenciam a vida dos alunos(as) em seu dia-a-dia. Não tomo o colégio em que trabalhei como caso generalista, mas este serve para estimular outros valores cognitivos possíveis com o uso da filosofia.

Nas séries iniciais (1° e 2° ano fundamental), recorri as Fábulas de Esopo, recolhidas por La Fontaine, para trabalhar com princípios referentes à conduta reflexiva. De tal forma, recomendo que o educador(a) torne-se um contador de histórias. Mesmo ouvindo frases do tipo "não vejo necessidade de filosofia nesta idade" por parte de outros colegas de trabalho, percebei que o esforço de utilização dos recursos, embora limitados, permitiu um gérmen: aquela novidade será continuada por outro educador(a). Graças ao Olimpo!

Devemos reforçar, estimular e buscar novas possibilidades em sala de aula, mesmo com toda a rede de mídias anti-românticas presentes. Pois como defende Zygmunt Bauman (2007), há sempre uma saída quando a vida humana está "consciente" de sua liquidez cultural e novas passividades coletivas. O ensino de filosofia, desde que bem utilizado, pode evitar tais neo-fundamentalismos cotidianos, inclusive dos games sanguinolentos da internet (rede mundial que também abarca muita informação filosófica para a sede do conhecimento).

O papel filosófico no ensino deve partir de um foco que não vise norma social fixa, abstrata. Não há moral reguladora sem princípio ideológico que a defina. Pois relembrando o saudoso Sartre, a liberdade individual não deve permitir uma fuga das responsabilidades. Ao contrário, por ser livre – exatamente como a capacidade de estímulo à liberdade – o ser humano é responsável e deve ser julgado através de sua conduta. Tais conceitos devem ser entendidos como uma reforma do pensamento. E através dessa consciência crítica, criarmos um novo caminho para a arte de pensar.

Humanitas filosophia, ei-la!

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Vida liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

RUSSEL, Bertrand. No que acredito. Porto Alegre: L&PM Editores, 2007.

SALGADO, Maria Umbelina Caiafa. Um olhar inicial sobre a formação de professores em serviço. In: Um olhar sobre a escola. Brasília: Ministério da Educação, Seed, 2000.

SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano – uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.