INTRODUÇÃO

Spinoza foi um filósofo moderno que apresentou uma ética totalmente original e com uma visão diferente do que se tinha em sua época. Contrariando filósofos da transcendência como Descartes e Platão, nega o dualismo entre o corpo e a alma, e introduz uma tese chamada paralelismo psicofísico. Nesta tese, percebemos que a alma e o corpo são "uma só e mesma coisa expressa de duas maneiras diferentes"(Ética II,prop7escólio).O corpo e a alma são a mesma coisa e juntos formam um único ser com a mesma natureza. Essa afirmação condena o antigo pensamento que valorizava a dualidade, e geralmente enaltecia a alma e desvalorizava o corpo. Então o que for ação para o corpo, é igualmente ação ou paixão para o espírito daquele corpo.

Para Spinoza, a alma é apenas a idéia do corpo e idéia é um modo de pensamento. Todo corpo é representado por uma idéia, que é também um modo de expressão. Spinoza tem a noção de corpo-idéia como sendo tudo que existe, para ele tudo que pensamos, sonhamos, sentimos são idéias (modo de pensamento) e tudo que percebemos estando fora de nós, tem uma extensão, que é o corpo(modo de extensão). O homem, que antes era considerado substância para Descartes, para Spinoza é apenas um modo de dois atributos de Deus: modo de pensamento e modo de extensão. Deus é a única substância, todos os demais seres são modos dessa substância, isso nos conduz à tese monista, isto é, à afirmação de que na realidade existe apenas uma única substância absolutamente infinita. Essa substância absoluta é constituída por infinitos atributos, cada um dos quais infinitos no seu gênero, que será identificada a Deus ou à natureza. Eis como diria Spinoza: "Entendo por Deus um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância constituída por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita. (Ética I,Definições VI)

Assim, o pensamento e a extensão, que são os únicos atributos conhecidos pelo ser humano, não constituem substâncias finitas distintas, mas uma expressão infinita de uma única realidade substancial. Ou seja, o universo material infinito e o universo mental infinito são duas expressões diferentes de uma mesma realidade. Deus é um ser que se expressa de diversas formas e produz uma infinidade de coisas naturais finitas, que nada mais são que modos.

O homem como modo de uma substância única e imanente, segundo Spinoza, expressa de maneira "certa e determinada" a essência divina. O Deus spinozano é imanente a natureza, e o conhecimento de nossa união com ele, é o conhecimento intelectual de nós mesmos como partes da natureza. Essas partes são submetidas às leis necessárias que regem o comportamento das coisas naturais. A partir daí, veremos que Spinoza não acredita que o homem tenha livre-arbítrio, ou seja, que tenha poder absoluto sobre suas decisões. O livre-arbítrio não passa de uma ilusão espontânea do conhecimento imaginativo característico de nossa consciência imediata. Os homens acham que são livres porque "são conscientes de suas volições e apetites e ignoram as causas que os dispõem a querer e apetecer"(Ética I, apêndice). O homem considera-se a causa primeira e única dos seus desejos e ignora o condicionamento causal. A imaginação faz com que o homem perceba os efeitos das suas ações e acredite estar no comando, ignorando as verdadeiras causas e engendrando a ilusão do livre-arbítrio.

Se o homem é apenas um modo de uma substância e não possui livre-arbítrio, como podemos dominar as afecções e chegar à liberdade? Neste artigo, iremos procurar estas respostas, levando em consideração que conhecer verdadeiramente, só é possível, quando conhecemos as causas. Visto ser Deus a causa primeira de todas as coisas, é preciso partir do conhecimento da essência de Deus para dele deduzir o conhecimento do universo. Tudo pode ser explicado a partir de uma única raiz: Deus.

Das paixões à liberdade

Na sua obra principal, Ética demonstrada à maneira dos geômetras, Spinoza desvenda os mecanismos que explicam a origem, a natureza e a força dos afetos e constrói uma verdadeira ciência da afetividade humana. Para ele, alegria, tristeza, desejo, amor, ódio e todos os demais sentimentos humanos, têm causas determinadas e efeitos necessários dignos de conhecimento. Conhecer as verdadeiras causas dos mecanismos afetivos, a que estamos submetidos, permite elaborar uma técnica para dominar as paixões e diminuir os efeitos naturalmente obsessivos. Assim, Spinoza expõe na terceira parte da Ética um estudo sobre os afetos humanos e demonstra que estes se baseiam principalmente no conatus(esforço em latim), "Toda coisa, enquanto está em si, se esforça por perseverar no seu ser."(Ética III, prop.6), este esforço de nossa essência em perseverar na existência é o próprio conatus. Conatus é a essência atual do corpo e da alma, sendo uma força interna para existir e conservar-se na existência,é uma força interna positiva ou afirmativa, intrinsecamente indestrutível, pois nenhum ser busca a auto-destruição. Possui assim, uma duração ilimitada, até que causas exteriores mais fortes e mais poderosas o destruam. Definindo corpo e alma pelo conatus, Spinoza faz com que sejam essencialmente vida, de maneira que, na definição da essência humana, não entra a morte. A causa da morte de um corpo nunca pode estar no próprio corpo, sendo sempre algo exterior a ele, pois se Deus é causa da nossa existência jamais pode ser causa de nossa morte.

Quando o conatus se refere a alma, é nomeada de vontade, portanto a vontade não é uma faculdade da escolha, mas o esforço contido nas idéias que constituem a alma. Já, quando se refere à alma e ao corpo, isto é, ao homem, é chamado de apetite. Este apetite junto com a consciência de si, formam o desejo. Spinoza afirma que a essência do homem é o desejo, assim dizer que somos apetite corporal e desejo psíquico é dizer que as afecções do corpo são afecções da alma. A relação originária da alma com o corpo e de ambas com o mundo é a relação afetiva. Afecções e afetos, exprimindo nosso conatus obedecem à lei natural que rege o esforço de preservação na existência. O desejo é identificado na relação dos modos finitos com o conatus. O ser humano tende a perseverarem em seus modos individuais de agir e repousar em sociedade. O desejo vai interagir diretamente nesta relação. A afecção do desejo está ligada a duas outras afecções que são: a alegria e a tristeza, estas acompanham as modificações do conatus, e altera sua potência. Estas duas afecções é que definirão o conatus. O homem, sendo um modo, mantém relações com o que é exterior a ele, ou seja, outros modos. Um modo, afeta e é também afetado por outros modos. Nenhum homem é capaz de ficar imune aos afetos, pois o homem não é dotado de uma "vontade potente". Nesta relação entre os modos, ocorre um aumento ou uma diminuição do poder de expressão dos modos. O homem consegue fortalecer seu conatus, justamente aumentando esse poder de expressão, ou seja, passando de uma afecção triste para uma afecção alegre. A alegria, para Spinoza, é o afeto que aumenta a potência de agir, enquanto a tristeza é um afeto que diminui a potência. Os outros afetos variam destes dois. Mas essa alegria, não é a alegria sem compromisso e ingênua que costumamos sentir, mas um sentimento que irá fortalecer nosso conatus e enriquecer nossa capacidade potencial. A alegria vai representar a manifestação dessa potência, o que resulta no amor intelectual, por Deus, pois, para Spinoza, conhecer Deus é conhecer a causa de si mesmo. Tendo consciência das causas das coisas, é possível chegar ao conhecimento e quanto mais causas forem por nós conhecidas, mais nos aproximamos da essência de Deus, pois Deus é absolutamente tudo. Esses três sentimentos: alegria, tristeza e desejo, são fundamentais para a manutenção do conatus, já que é através deles que podemos acrescentar essência a nossa existência. Veremos como Spinoza define os afetos. Na definição III, da parte III, da Ética:

"Por afeto, entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou reduzida, assim como as idéiasdessas afecções. Quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, entendo então por paixão uma ação, nos demais casos, o sofrer a ação dessa paixão"(prop.XI,pág.197)

Nessa definição, fica claro que um afeto é uma afecção que faz variar positiva ou negativamente a potência de agir. Assim, uma afecção neutra, que deixa a potência de agir invariável, não é um afeto. Disso, podemos concluir que se todo afeto é uma afecção, nem toda afecção é um afeto.Ocorre também, uma distinção entre os afetos ativos e passivos e os afetos ativos, indicando que afetos não são apenas paixões.

Já na 2ª definição, que tem por título "Definição geral das paixões":

"O sentimento chamado "paixão da alma" (animi pathema) é uma idéia confusa pela qual a alma afirma a força de existir do seu corpo, ou de parte desse, maior ou menor que antes, e por cuja presença a própria alma é determinada a pensar em tal causa em detrimento de outra."(parte III,Definição geral das paixões,pg.280)

Spinoza, nessa definição, limita os afetos apenas à alma e define apenas uma subclasse dos afetos, as paixões. Mas com isso, não pretende restringir os afetos apenas á alma, pois iria contrariar a tese do paralelismo e as várias passagens da Ética que refere-se ao corpo. Ele apenas privilegia a alma nessa definição.

Para Spinoza, existem dois tipos de afetos: ativos e passivos. O afetos ativos são originados das idéias que nascem do exercício adequado de nossa potência intelectual, ou seja, das idéias adequadas. Pois, a razão é dotada de uma afetividade, não há uma oposição entre razão e afetividade.

"A alma, quer enquanto tem idéias claras e distintas, quer enquanto tem idéias confusas, esforça-se por perseverar no seu ser por uma duração indefinida e tem consciência do seu esforço"(Ética III, prop9).

Assim como há desejos racionais provocados pelas idéias adequadas, existem desejos passionais determinados pelas idéias inadequadas. Na proposição I, da Ética III:

"Nossa alma é ativa em certas coisas, passiva em outras, isto é, à medida que tem idéias adequadas, enquanto é necessariamente ativa em certas coisas; mas, à medida que tem idéias inadequadas, é necessariamente passiva em certas coisas.

O afeto passional depende dos fatores externos, estes podem ser alegres ou tristes, vai depender da compatibilidade dos fatores externos e nós. Podemos perceber que as ações são sempre positivas, e que as paixões podem ser alegres ou tristes. As paixões alegres nascem da compatibilidade entre suas causas exteriores e nós, aumentam nossa potência de agir e pensar, ocasionando uma situação propícia ao desenvolvimento da razão. As paixões tristes, ao contrário, por resultarem de um desacordo com o meio, inibem esse desenvolvimento, sendo prejudiciais. As paixões são resultantes da nossa interação com as causas exteriores variáveis, que se caracterizam pela instabilidade. Com ela, o homem vive dependente em relação ao outro, alienado. As paixões são naturais, e como tal são dotadas de seu próprio conatus. São causadas em nós por fatores externos, portanto, suas essências não são apenas as nossas, mas também resultam das essências dos fatores externos. Como o conatus de algo, nada mais é que sua essência atual, a mesma dependência em relação à causa exterior ocorrerá na explicação da potência da paixão. O que explica sua força, crescimento e perseverança na existênciaé, portanto, a potência de sua causa exterior em relação com a nossa. Por isso, a força das paixões pode superar as nossas, é o que explica que nossas paixões podem ser mais fortes que nós. O conatus se orienta pelos afetos passionais que dependem dos fatores externos, podendo ocorrer um aumento ou diminuição da sua potência de atuar na existência. Já as ações resultam exclusivamente da nossa natureza, se caracterizam-se pela constância e carregam em si a marca da autonomia e do exercício pleno do conatus. A liberdade para Spinoza se baseiasobre as ações.

Spinoza explica algumas causas que colocam o homem na escravidão, isto é, as causas da impotência humana para governar e frear as paixões. A paixão domina o homem de tal maneira que "muitas vezes é forçado a seguir o pior, vendo muito embora o que é melhor para si"(Ética III,axioma). A escravidão acontece porque o homem toma como certo o conhecimento sensível, esse conhecimento é a representação das coisas exteriores a partir das idéias de suas imagens formadas no corpo humano.Caracteriza-se por observar apenas os efeitos e ignora as causas. Para Spinoza, conhecer verdadeiramente é conhecer pelas causas, então este tipo de conhecimento se torna inadequado e confuso. A essência da alma consiste no conhecimento verdadeiro, que é formado de idéias adequadas, idéias completas, verdadeiras e dotadas de uma certeza matemática. O homem se libertará das paixões quando a alma possuir conhecimento das coisas. Este conhecimento racional não depende de nosso livre-arbítrio, e sim da natureza particular de que somos dotados. A liberdade não pode consistir na ausência de determinação do sujeito, na possibilidade de fazer isto ou aquilo. Neste sentido, não existe liberdade, pois tudo que existe e acontece, existe e acontece necessariamente. A atividade racional não depende de causas externas, mas exclusivamente da força interna da nossa razão. Assim sendo, uma razão forte é alegre e uma razão alegre é forte: com ela se inicia apassagem afetiva e cognitiva que nos leva da paixão à ação, da servidão à virtude. Passamos da paixão à ação, da servidão à liberdade transformando as paixões alegres em atividades de que somos a causa.

À medida que a razão se desenvolve, o nosso conhecimento aumenta e vai nos tornando capazes de organizar nossas relações com o mundo de modo a incentivar o predomínio das paixões alegres sobre as tristes. O cultivo das paixões alegres é importante, mas não é objetivo principal da vida racional e do projeto ético de Spinoza. Este se realiza com a alteração das relações passividade/atividade em proveito das ações. O desenvolvimento da razão, principalmente quando formamos noções comuns sobre a própria vida afetiva, é acompanhado de técnicas que permitem atenuar os efeitos da imaginação e do conhecimento sensível que regem a vida passional. Éacompanhada também do desenvolvimento dos desejos e alegrias ativos que nascem desse exercício. Assim, pouco a pouco, todas as relações cognitivas e afetivas da vida mental vão sendo transformadas em proveito para a atividade. Com isso, o homem terá uma experiência de beatitude: o amor intelectual por Deus e o contentamento interior.

CONCLUSÃO

A liberdade não é algo que se encontra fora de nós, ao contrário disso, se encontra numa proximidade máxima de si consigo, a identidade do que sou e do que posso ser. O conatus é a força que o corpo e a mente fazem para afirmar-se como causa adequada de suas ações, isto é, para ser plenamente uma potência de agir que encontra em si mesma a causa total de suas ações. Um dos aspectos mais originais da ética spinozana, é que a vontade não impera sobre os afetos e que nossa força ou virtude será moderada pela força de nossa mente. O homem encontrará a liberdade, através do conhecimento verdadeiro, e este será criado pela sua própria inteligência. A inteligência, para Spinoza, é criadora de idéias verdadeiras, mas como o homem é um modo finito de Deus, não pode pensar, a não ser quando pensa a partir da ordem universal das idéias, ou seja, Deus. O importante é conhecer a própria inteligência, que é simplesmente conhecer as nossas idéias. A idéia de Deus, que se concebe por si e existe por si e é a causa primeira e única de todas as existências, é a mais suprema verdade. Quando o homem conhece as idéias, que vem de Deus, ele é levado a Deus. Porém, conhecer o bem, só por si, não nos dá forças para praticá-lo. Porém, pensando assim, existiria a necessidade da intervenção de forças exteriores. De fato, existe uma relação entre o que conhecemos e o que amamos, amamos o que conhecemos. Em função disso, existe uma necessidade do homem elevar-se ao conhecimento de Deus, que é imutável, permanente e eterno. O homem tem que perceber que o amor às coisas passageiras, só causa mal, quando vivemos em função delas, mas devem ser usadas para alcançar altos fins. A natureza superior do homem é o conhecimento; que o homem está essencialmente unido a um todo que o ultrapassa. Este conhecimento, sendo o da união da mente com a natureza inteira, é não só intelectual, mas tem algo de afetivo, pois amamos o que conhecemos. "Faz parte da essência de cada coisa a tendência a perseverar no próprio ser."(Ética I,prop.VII).Para isso cada um tem que valer-se das coisas que o cercam. O conhecimento nunca é puramente desinteressado, nunca deixa de nos afetar positivo ou negativamente. É por isso que a vida moral, ou seja, a realização de nossa tendência para perseverar no ser, depende do que conhecimento que o homem possui da natureza; isso determina o objeto do seu amor que, por sua vez, lhe dará valor a vida e conseguirá a liberdade. Se o homem nascesse completamente livre, não significaria que estaria imerso no bem, simplesmente não teria nenhuma experiência de si consigo e não formaria qualquer conceito entre o bem e o mal. Pois, para Spinoza, a liberdade é a identidade de si consigo.

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