Armando Januário dos Santos[1]

Marco Antonio Matos Martins[2] 

Resumo: a partir das vivências da criança Coy Mathis, natural do Colorado, Estados Unidos, esta pesquisa problematiza determinadas práticas ocorridas em espaços educativos quanto a discentes transexuais. Nascida com o sexo masculino, Mathis desde os dezoito meses de idade se comporta como menina, e em dezembro do último ano, teve o acesso negado ao banheiro feminino da escola onde estuda. Acompanhando as vozes psicanalíticas de Freud, Lacan, Chiland e Arán, além de outros teóricos, a exemplo de Michel Foucault e Judith Butler, o presente estudo contesta o binarismo pênis-masculino, vagina-feminino, vigente na sociedade ocidental. Os resultados das discussões feitas aqui encontraram o discurso psicanalítico dividido: o viés da patologização coexiste com visões que buscam conceber a transexualidade passando ao largo da concepção normativa tradicional.

Palavras-chave: psicanálise, transexualidade, educação.

Abstract: from the experiences of the child Coy Mathis, a native of Colorado, United States, this research discusses certain practices occurring in educational spaces with transgender students. Born with male sex, Mathis, since the eighteen-month-old behaves like girl, and in December of last year, had the access to the girls’ restroom school where she studies denied. Accompanying the psychoanalytical voices Freud, Lacan, and Chiland Aran, and other theorists, like Michel Foucault and Judith Butler, this study contests the binarism male-penis, female-vagina, that has prevails in Western society. The results of the discussions constructed here has pointed to the psychoanalytic discourse divided: the bias of the pathologizing coexists with point of view that conceives transsexuality far from the traditional normative point of view.

Keywords: psychoanalysis, transsexuality, education.

Introdução

            A 27 de fevereiro de 2013, os principais veículos noticiosos do mundo publicaram com destaque o caso de uma criança nascida com o sexo masculino, que se comporta como uma menina. De acordo com as informações, Coy Mathis, de apenas 6 anos, se identifica como menina, vestindo-se como tal e deixando os cabelos longos. Desde cedo ela se comporta deste modo, tendo sido levada a psiquiatras e psicólogos. De acordo com matéria exibida no programa de TV brasileiro, Fantástico:

A mãe conta que começou a perceber que havia algo diferente quando Coy completou um ano e meio: “No início, a gente achou apenas que tinha um menino que gostava de coisas de menina. Mas, com três anos, ela começou a dizer que era uma garota. Não que queria ser uma, mas que era uma garota, e não um garoto. Quando insistimos que ela era menino, ela entrou numa forte depressão, não queria sair de casa e nem brincar com os amigos”. Um ano depois, Coy passou a dizer para os pais que estava no corpo errado, que era preciso reparar esse erro. Os Mathis, então, procuraram ajuda médica, pediatras, psicólogos, psiquiatras, para entender o que estava acontecendo. “Eu fiquei confuso. Ela tem um irmão gêmeo, Max, que estava se desenvolvendo normalmente. Até que os médicos disseram que Coy era uma criança transexual”, conta o pai.

Até então, a Eagleside Elementary School, escola frequentada por Coy, respeitava sua identidade de gênero – mesmo nascendo com um pênis, ela se sente menina e se comporta desta forma – e a referida utilizava o banheiro feminino sem constrangimentos. Entretanto, esta realidade mudou quando ela começou a cursar o primeiro ano. A instituição educativa negou seu acesso ao toalete utilizado pelas colegas, permitindo apenas o uso do banheiro dos professores ou do departamento médico. Diante disso, os pais de Coy se viram obrigados a retirá-la da escola, ao mesmo tempo em que representaram contra a Eagleside na agência de direitos civis. Até o presente momento, a criança está fora da escola, tendo aulas em casa, enquanto sua família aguarda um veredito judicial.

            Ante esse estado de coisas, o leitor talvez se questione acerca de como é possível uma criança que nasce com o sexo masculino, experimentar sua existência encarando a si própria como menina, marchando assim na contramão daquilo que os moldes sociais determinam antes mesmo do nascimento. Com efeito, entre 3 e 4 meses de gestação, se torna possível conhecer o sexo do bebê. E o questionamento acerca do gênero – “é menino ou menina?” – parece neste momento ser respondido. Se durante o exame de ultrassom for detectado o órgão sexual masculino, um menino está a caminho. Se for percebido o órgão sexual feminino, uma menina irá nascer.

            Apesar deste paradigma que atrela sexo e gênero estar no âmago da sociedade – em especial, no Ocidente – ele se vê diretamente confrontado por histórias de pessoas como Coy Mathis. Relatos como o desta criança põem em suspeita a legitimidade da concepção binária pênis-homem, vagina-mulher.

Sexo e gênero: o alinhamento científico

            Entrelaçar sexo e gênero não é algo próprio do senso comum. Na verdade, podemos afirmar que tornou-se senso comum enxergar uma pessoa do sexo masculino como homem e outra do sexo feminino enquanto mulher a partir da patologização dos comportamentos. O alinhamento entre a anatomia dos órgãos sexuais e o gênero começa a ocorrer no século XVII com o aparecimento de teorias que biologizam a sexualidade, e paulatinamente retiram a possibilidade de haver “a livre escolha dos indivíduos incertos” (FOUCALT, 1993, p.116). Desde então, seguir uma linha de coerência entre sexo e gênero se tornou fundamental, tendo a ciência um papel ímpar em caracterizar a heterossexualidade como única orientação sexual inteligível, excluindo as demais.

Nesse ínterim, a transexualidade[3] se apresenta como uma incoerência entre sexo e gênero, haja vista a presença do “sentimento intenso de não pertencimento ao sexo anatômico” (ARÁN, 2006, p.50). Norteando-se por este viés, o Manual Diagnóstico Estatístico de Doenças Mentais (DSM IV, com revisão a ser publicada em meados do presente ano para o DSM V) estabelece quatro critérios para diagnosticar um paciente com transexualismo[4]:

“Deve haver evidências de uma forte e persistente identificação com o gênero oposto, que consiste do desejo de ser, ou a insistência do indivíduo de que ele é do sexo oposto (Critério A). Esta identificação com o gênero oposto não deve refletir um mero desejo de quaisquer vantagens culturais percebidas por ser do outro sexo. Também deve haver evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou uma sensação de inadequação no papel de gênero deste sexo (Critério B). O diagnóstico não é feito se o indivíduo tem uma condição intersexual física concomitante (por ex., síndrome de insensibilidade aos andrógenos ou hiperplasia adrenal congênita) (Critério C). Para que este diagnóstico seja feito, deve haver evidências de sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo (Critério D).”

            O ponto de vista da patologização também se faz presente no campo da psicanálise. É óbvio que em seus Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905) Freud não abordou a transexualidade, porém, ali, ele estabeleceu um diálogo entre pulsão sexual e cultura, o qual vai influenciar as teorias da sexualidade posteriores (ARÁN, 2006, p.55). Para o líder da psicanálise, uma mesma pulsão pode ser deslocada para diversos objetos, já que os últimos possuem uma natureza variável, cabendo assim a subjetividade humana pautada pelas experiências sócio históricas. Exatamente aqui, a psicanálise já sinaliza para a possibilidade de transitar por mais de um caminho, podendo trilhar no que tange a transexualidade, pelo patológico e também deslocar-se desta visão através do modelo do Édipo e da castração (idem, p.55).

            De fato, Lacan, apesar de levar em consideração as diferenças entre a transexualidade e a perspectiva psiquiátrica da psicose, encarou a primeira enquanto delírio identitário. Sendo o Édipo, o recalque e a falta, neste caso, ausentes dos processos de organização mental, o comportamento transexual “seria uma forma específica de psicose” (ARÁN, 2006, p.55).

            Já para a psicanalista Colette Chiland (2003), o transexualismo é uma “doença do narcisismo”, pois está situada entre neurose e psicose. Para ela, as pessoas transexuais possuem o Édipo fragmentado e utilizam o recalque como mecanismo organizador.

Para além da patologização

            Feito este breve panorama da transexualidade na psicanálise, compreendemos como a visão patológica está alicerçada em um sistema que delimita espaços para normal e anormal, lógico e ilógico, alinhado e subversivo. Vimos discursos de apoio a matriz heterossexual reguladora das “posições consideradas legítimas” (ARÁN, 2006, p.58). Tudo aquilo que escapa a tais discursos está do lado de fora, excluído. É, portanto, necessário, desconstruir essa regulamentação, essa lei que expulsa as supostas aberrações. Neste sentido, a psicanalista Márcia Arán (idem, p.59) questiona a regulamentação vigente:

diante dos dispositivos da sexualidade tão bem definidos na modernidade por meio da naturalização de sistemas normativos de sexo-gênero, como também da naturalização do sujeito do desejo, a transexualidade será sempre excluída das possibilidades subjetivas consideradas normais e legítimas. É necessário, portanto, certo estremecimento destas fronteiras excessivamente rígidas e fixas – tais como as do simbólico e das estruturas de poder – para que a transexualidade possa habitar o mundo viável da sexuação e sair do espectro da abjeção, seja como transtorno de identidade de gênero, seja como psicose. Desse modo, estaremos mais livres para compreender as diversas formas de identificação e de subjetivação possíveis na transexualidade.

            Neste ponto, a referida psicanalista converge com o pensamento butleriano, enquanto detecção da lei que identifica o que é coerente no sexo, ao mesmo tempo em que exclui conceitos tidos como desviantes: “deve haver uma ligação entre esse processo de ‘assunção’ de um sexo, a questão da identificação e os meios discursivos pelos quais o imperativo heterossexual capacita certas identificações de sexo e foraclui e/ou des-reconhece outras identificações” (BUTLER, 2002, p.19).

            Na verdade, ao criticar o sistema sexual binário em que se encontra a civilização ocidental na modernidade – e com isso se aproximando de Butler – Arán (2006) questiona a invenção do transexualismo enquanto patologia, apontando possibilidades dentro do campo psicanalítico:

não podemos estabelecer a priori que transexuais padecem de uma patologia ou são necessariamente, por uma questão de estrutura, psicóticos. A clínica psicanalítica nos ensina que, antes de tudo, devemos escutar e basicamente tentar acolher as diversas manifestações da subjetividade. Sabemos que estamos num território movediço, bastante complexo e que não devemos ceder de imediato ao apelo do imperativo tecnológico e científico que pretende capturar e modelar os corpos. Não podemos (...) impor de forma violenta um diagnóstico psiquiátrico ou realizar uma interpretação psicanalítica, apenas para manter o nosso horizonte simbólico intocável.

            Sendo assim, o drama vivido por Coy Mathis tornar-se-ia desnecessário, caso a direção da instituição educativa estivesse disposta a ouvi-la, sem apressar-se em tomar medidas excludentes. A Eagleside poderia ter permitido a entrada de um psicanalista neste caso, a fim de escutar a criança sem conceitos previamente formados. Todavia, o que se nota é a escola enquanto instituição formadora de comportamento repressivos, independente da nacionalidade onde esteja localizada. Seja nos Estados Unidos ou no Brasil, a realidade para muitas pessoas transexuais tem sido parecida:

as relações estabelecidas entre (...) transexuais (...) e a escola também se mostram bastante prejudicadas. A escola apresenta muita dificuldade no trato da orientação sexual e de identidade de gênero, mostrando-se muitas vezes insegura e perdida diante das cenas que não estão presentes em seus manuais. Neste sentido, reifica os modelos sociais de exclusão, por meio de ações de violência (discriminação e expulsão). (PERES, 2009, p.245)

            Se a violência no caso de Coy ocorreu de forma não-física – a escola barrou sua entrada no banheiro feminino – no caso de Luciana, transexual gaúcha, não se pode dizer o mesmo. A última relata que quando cursava o Ensino Fundamental foi vítima de torturas psicológicas, materializadas “nos olhares e nos risos que iam desde a servente e a merendeira, passando pelos professores e a diretora, até os colegas de sala e de recreio.” Mas para ela, a parte pior era um garoto que a insultava, chamando-a de “viado”, de “safado” e dizendo que quando a pegasse, ela iria “aprender a virar homem”. E este dia chegou. Ao sair da escola, Luciana foi apedrejada e teve que fazer diversos curativos. Segundo ela, ainda assim continuou a estudar “até terminar a oitava série [equivalente ao nono ano]. Depois disso, nunca mais quis saber de escola”. (PERES, 2009, p.242).

            Observamos que o binarismo pênis-masculino, vagina-feminino, presente no discurso médico-biológico, passa por algumas vozes da psicanálise e escamoteia qualquer comportamento para além de si, servindo como pretexto e legitimação de práticas excludentes e violentas contra pessoas transexuais, as quais se multiplicam na “normatividade cultural vigente”. (ARÁN, 2006, p.60) Além disso, tais práticas empurram pacientes transexuais em busca de um diagnóstico que confirme a sua patologia, estigmatizando “sem problematizar as questões históricas, políticas e subjetivas a propósito da psiquiatrização da condição transexual”. (idem, p.60)

            Ainda questionando a transexualidade enquanto patologia pode-se apontar para pelo menos um ponto nevrálgico neste viés: a ilusão da heterossexualidade. Se por um lado, pacientes transexuais creem na sua identidade de gênero em oposição ao seu sexo anatômico, pessoas tidas como normais pelo discurso científico moderno, também creem na sua “essência ‘masculina’ ou ‘feminina’”. (ARÁN, 2006, p.60).

Considerações finais

            Os pais de Coy terão que lutar na justiça estadunidense por algo que toda pessoa transexual deve ter direito: educação em condições de respeito a diversidade. Felizmente, os pais desta criança desde cedo respeitaram sua identidade de gênero, mostrando ter buscado orientação/informação frente a esta complexa temática. Paradoxalmente, parece ter faltado a mesma orientação/informação a Eagleside Elementary School, quando esta tomou de maneira unilateral a medida de barrar o acesso da educanda ao sanitário feminino, o que resultou em sua evasão.

            No Brasil, ainda não foi notificado um caso similar ao de Coy. Entretanto, é difícil supor um desfecho menos desfavorável se tal situação ocorresse. Infelizmente, não existe uma lei específica contra a transfobia – a discriminação e o ódio contra transexuais. Deste modo, é provável que em um caso parecido com o da menina que nasceu com o sexo masculino, uma instituição educativa nacional se comportasse da mesma forma, ou até mesmo convidasse a educanda a se transferir do seu espaço. Dadas as práticas de aversão descritas no presente estudo, pode-se supor a realidade brasileira para as pessoas transexuais como tão ou até mais violenta e excludente do que o cotidiano nos Estados Unidos. Se no último existem casos de negação de direitos básicos a esta população, no Brasil também existem relatos – um deles descrito aqui – de agressões, desde verbais até físicas.

            Em nosso ponto de vista, a transexualidade, assim como a heterossexualidade ou qualquer outra forma de experimentar a sexualidade, pode ser vivida para além de normas sociais, estejam elas fundamentadas no saber médico ou psicanalítico (ARÁN, 2006). Antes, cabe a estas áreas do conhecimento humano encará-la como uma entre tantas possibilidades de se viver a existência humana, passando ao largo de pressões socioculturais.

Referências

ARÁN, M. A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. Ágora, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 49-63, 2006.

BENTO, B. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008.

BUTLER, J. Cuerpos que importan. Sobre los límites materials y discursivos del sexo. Buenos Aires: Paidós, 2002.

CHILAND, C. The psychoanalyst and the transsexual patient. International Journal of Psychoanalyze, v. 81, n. 1, p. 21-35, 2000.

______. Le Transexualisme. Que sais-je? Paris: PUF, 2003.

DSM (IV) Classificação Internacional das Doenças Psiquiátricas. Disponível em: http://www.psiqweb.med.br/site/DefaultLimpo.aspx?area=ES/VerClassificacoes&idZClassificacoes=201. Acesso em: 26 abr 2013.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 51 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012.

PERES, William Siqueira. Cenas de exclusões anunciadas: travestis, transgêneros e a escola brasileira. In: _______. Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Rogério Diniz Junqueira (org.). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.

PORTAL G1. Criança transexual é proibida de usar banheiro feminino em escola nos EUA. Disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/04/crianca-transexual-e-proibida-de-usar-banheiro-feminino-em-escola-nos-eua.html. Acesso em: 26 abr 2013.

WHITELOCKS, S. Six-year-old transgender girl's parents take legal action after school tells her she must use boy's restroom. Disponível em: http://www.dailymail.co.uk/femail/article-2285016/Coy-Mathis-Transgender-girls-parents-legal-action-school-tells-use-boys-restroom.html. Acesso em: 26 abr 2013.



[1] Estudante do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade / Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Graduando em Psicologia e licenciado em Letras com Inglês pela mesma instituição. Pós-graduado em Língua, Linguística e Literatura pela Faculdade Regional de Filosofia, Ciências e Letras de Candeias. Professor de Inglês do Colégio Francisco de Assis, Salvador. E-mail: [email protected].

[2] Vice-Coordenador do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade / Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Professor Assistente de Antropologia do DCH – Campus V pela mesma instituição. E-mail: [email protected].

[3] O termo transexualidade neste artigo é discutido com base na definição da socióloga Berenice Bento (2008, p. 144): “dimensão identitária localizada no gênero, e se caracteriza pelos conflitos potenciais com as normas de gênero à medida que as pessoas que a vivem reivindicam o conhecimento social e legal do gênero diferente do informado pelo sexo, independente da realização da cirurgia de transgenitalização [cirurgia popularmente conhecida como ‘troca de sexo’]”.

[4] O termo transexualismo nesta pesquisa é utilizado na perspectiva patológica com a qual foi constituído, em que pese o sufixo ismo apontar para um comportamento como patológico.