TEMA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LIBERDADE E DA IGUALDADE DO HOMEM EM JEAN JACQUES ROUSSEAU.

LUCIANE FARIAS PANTOJA

Capítulo I: NOÇÃO DE ESTADO DE NATUREZA.


O pensamento de Rousseau é perpassado por uma antítese fundamental: a antítese entre a natureza "original" do homem e sua corrupção da sociedade social. De forma similar, a liberdade do verdadeiro ser humano, que se encontra contrastada com sua atual escravidão. A expressão antitética da argumentação de Rousseau fica reforçada, posteriormente, por sua determinação de contrastar a decadência contemporânea com a nobre virtude das antigas repúblicas e de seus heróis, assim como com a "natureza", que o homem abandonou com conseqüências tão desastrosas para ele ao cair na escravidão do estado social.
Mesmo que os termos "natureza" e "natural" desempenhem claramente um papel importante no conjunto do pensamento de Rousseau, sua função primordial no Contrato Social é servir de princípio crítico que determina a gravidade da situação imediata do homem. A natureza é o que o homem não é, ou seja, o que deveria ser, enquanto tal, é o homem em sua essência pura, que tem um significado fundamental como meio de fazer com que tome consciência de todas as implicações de sua corrupção no estado social.
Neste contexto, Rousseau considera que a idéia de uma natureza original do homem é inseparável da análise dos processos responsáveis por sua perversão. É impossível delimitar os traços autênticos da existência humana sem indicar, em primeiro lugar, as principais etapas de sua queda na desgraça e na corrupção. Em qualquer caso, Rousseau esclarece, no começo de seu Discurso da Desigualdade, que não está interessado na história factual, mas em construir uma hipótese sobre o que deveria ter ocorrido com os homens desde o estado de natureza até o estado social .
Seu propósito é esclarecer a natureza original do homem mais do que as circunstâncias reais de seu desenvolvimento. Não está interessado nos fatos enquanto tais, mas na necessidade de distinguir os elementos originais e artificiais do ser humano, para tentar esboçar os elementos constitutivos da verdadeira natureza humana. É necessário, portanto, ultrapassar os limites das disciplinas intelectuais particulares e examinar os elementos, fundamentais da existência humana.
Para compreender a natureza humana é importante considerar o desenvolvimento histórico do homem, é preciso remontar a suas origens no tempo. Mesmo que estas origens não revelem seu ser em sua totalidade, elas expressam a pureza e a simplicidade dos sentimentos primordiais que ainda não tinham sido corrompidos pela sociedade.
A idéia do estado de natureza é, assim, um simples ponto de partida para a
consideração de um problema mais amplo. Neste sentido, Rousseau admite que está descrevendo um estado que já não existe, que talvez nunca tenha existido, e que, provavelmente, nunca existirá, mas que pode servir como um instrumento para julgar nossa condição presente, desentranhando o que é original e artificial na natureza atual do homem .
Rousseau atribui as confusões filosóficas de outros filósofos, em épocas anteriores, às concepções erradas sobre a natureza do homem e sua relação com o direito natural. Para resolver este problema, é preciso abandonar os tratados científicos e refletir sobre as primeiras e mais simples expressões da alma humana, como Rousseau fez quando pela primeira vez refletiu sobre as questões que iria desenvolver no Discurso da Desigualdade nos bosques de Saint-Germain . Sua intenção era buscar a imagem dos primeiros tempos dos quais orgulhosamente traçou a história fazendo tábula rasa das pequenas mentiras dos homens, mostrando-nos o sentido da natureza e comparando o homem ? produto do homem ? com o homem natural . A natureza e a natureza do homem são, no entanto, conceitos muito mais fundamentais do que o estado de natureza; e a exposição pseudo-histórica da evolução do homem, desde as condições primitivas à sua existência no mundo social, são princípios normativos e críticos que permitem distinguir entre o aspecto original e o não essencial do ser humano. A natureza não pode ter um significado exclusivamente histórico, já que a história representa pouco mais do que a decadência e a queda da existência humana do estado de inocência à escravidão e à corrupção.
A idéia do estado de natureza foi estudada por muitos pensadores anteriores a Rousseau, e muito especialmente pelos pensadores do Direito Natural, como Grocio e Pufendorf. Embora alguns predecessores tenham atribuído a esta noção um status histórico, nos tempos de Rousseau, sua função hipotética era de aceitação geral. Seu objetivo principal era esclarecer a natureza do homem antes de sua entrada na vida social. Suas implicações para a compreensão da condição humana eram mais importantes do que o significado histórico do conceito.
Apesar de Rousseau não ignorar o enfoque histórico, diferia de seus predecessores numa questão importante: eles consideraram e atribuíram ao homem primitivo muitas características essenciais do homem social, enquanto Rousseau ressaltou a concepção do homem como um ser que adquire novas faculdades e capacidades no curso de seu desenvolvimento.
Enquanto Grotius e Pufendorf, por exemplo, tinham considerado o homem primitivo como um ser essencialmente racional e social (concepção aceita por outro pensador como Locke: o homem guiado pela razão é o homem em sociedade e não o homem natural), Rousseau tratava o estado de natureza como um simples ponto de partida, como o estado no qual o homem possuía algumas qualidades que o diferenciavam dos animais, mas era uma criatura puramente instintiva, e carente de atributos morais e intelectuais.
Hobbes tinha uma posição similar, pois também havia insistido no fato de que a natureza do homem era basicamente agressiva e egoísta e que não se modificava radicalmente pela sociedade, mas que simplesmente estava controlada pela força das leis, ou seja, os homens se faziam morais pelas pressões às quais estavam submetidos para seu próprio bem, da mesma forma como se incorporavam a uma associação social. Neste sentido, Rousseau acreditava na capacidade do homem de evoluir e de se aperfeiçoar.
Nesta etapa primitiva da existência humana, portanto, a natureza representa pouco mais do que os instintos primários físicos e psicológicos, isto é, na concepção de Rousseau, a disposição primitiva necessária para a sobrevivência, pois o homem selvagem não tem necessidades intelectuais ou morais, é uma criatura de instinto adaptável, fisicamente forte e dotado de uma sensibilidade que permite viver em harmonia com seu meio. Neste caso, Rousseau concorda com Hobbes que retira do homem primitivo o sentido moral e a sociabilidade que lhe atribui a Escola do Direito Natural, negando, no entanto, que a condição do homem no estado de natureza seja a de um indivíduo "naturalmente fraco", perverso ou beligerante. Pelo contrário, no estado de natureza, ele é pacífico e leva uma existência isolada e independente, sem entrar em conflito sério com outros homens.
O homem primitivo está dominado por instintos fundamentais: o primeiro é o instinto básico de autopreservação, que o torna facilmente satisfeito num entorno físico favorável à sobrevivência; simultaneamente, o sentimento de piedade consiste numa aversão espontânea ao sofrimento que lhe impede de ser desenfreadamente agressivo com os demais.
Embora não seja uma condição de vida ideal para o homem, Rousseau considera que o estado de natureza tinha uma grande vantagem sobre a condição do homem social, pois lhe permitia gozar de uma felicidade totalmente desconhecida para as gerações posteriores. A razão principal para que isso ocorresse era a capacidade de o homem primitivo identificar-se sem esforço com a sua verdadeira natureza. Podia viver em si mesmo, enquanto o homem social tem que estar constantemente fora de si. Criatura do instinto, estava em paz consigo mesmo, porque era fiel à sua própria natureza. Sua alma que nada altera, abandona-se ao único sentimento de sua existência atual, sem nenhuma idéia do futuro, por mais próximo que este seja .
É feliz porque não sente o aguilhão da curiosidade. Sua existência se caracteriza por uma unidade fundamental que lhe faz em grande medida auto-suficiente. O instinto permite a satisfação desinibida e pacífica de seus desejos e o desfrute de sua existência imediata.
O homem social, pelo contrário, rege-se por necessidades artificiais que só podem ser satisfeitas com a ajuda de outras pessoas. Sua situação é, portanto, de dependência. Seus sofrimentos são agravados, não só por depender dos outros, mas também porque se converte em vítima de seus próprios esforços mal encaminhados em busca da satisfação. Este processo foi iniciado pela primeira contemplação de si mesmo, que não só lhe fez tomar consciência de si, enquanto ser diferenciado, mas também dos outros como distintos dele.
Assim, na segunda parte do Discurso da Desigualdade, Rousseau tenta demonstrar como isso aconteceu. O autor considera que o homem não passou, assim, repentinamente, do estado de natureza à vida social; a sociedade política é o resultado de um longo processo histórico. Sem dúvida, algum fenômeno físico inesperado foi responsável pelo afastamento inicial da natureza, já que Rousseau não acredita que os homens abandonaram voluntariamente uma condição que lhes produzia tanta felicidade e paz.
Por outro lado, embora tenha sido externa a causa da mudança, esta teria sido insuficiente sem a ajuda de certas potencialidades presentes nos primeiros estágios do homem desde o primeiro momento. Foram estas potencialidades que lhe permitiram superar sua condição primitiva. A natureza, em sua forma mais rudimentar, representa um mundo estático e circunscrito no qual todas as criaturas vivem de acordo com leis físicas básicas e seguem as mesmas pautas de comportamento imodificáveis. Neste nível, é difícil distinguir o ser humano e o animal, porque ambos estão animados pelos apetites físicos e os sentidos, dominados pelas exigências do prazer e da dor. Desta forma, há poucas possibilidades para o desenvolvimento e a mudança súbita; o ser natural, seja este homem ou animal, alcança rapidamente a maturidade e, a partir daí, segue o mesmo modelo de comportamento invariável.
No entanto, inclusive neste estágio primitivo, já existe uma diferença importante entre o homem e o animal: embora o homem primitivo seja em aparência pouco mais do que uma criatura do instinto, desprovido de moral e reflexão, possui certas capacidades virtuais desconhecidas para o reino animal. No princípio, o homem, no estado de natureza, era mais adaptável do que os animais e, com freqüência, era capaz de vencer as criaturas fisicamente mais fortes do que ele. Isto ocorre porque a natureza domina a todos os animais e as bestas obedecem, no entanto o homem sente a mesma exigência, mas é livre para se submeter ou para resistir, sua capacidade de querer ou de escolher ? a consciência de sua liberdade ? revela sua capacidade de eludir a sujeição às forças mecânicas e comportar-se como um agente livre . Sem dúvida, esta capacidade está adormecida no estado de natureza, mas a liberdade do homem se manifestará ativamente em condições adequadas.
Além disso, o homem tem uma segunda característica, igualmente importante, que lhe diferencia dos animais: enquanto o animal alcança o pleno desenvolvimento ao final de um período de tempo relativamente breve, e a partir de então não muda, o homem tem a possibilidade de se aperfeiçoar e progredir para novas formas de ser muito mais complexas. Rousseau põe especial ênfase nesta idéia da capacidade de aperfeiçoamento do homem que atribui um papel decisivo em toda sua filosofia da natureza humana. Admite que a capacidade de aperfeiçoamento pode ser tanto causa de desgraça como de felicidade, já que se o homem pode elevar-se acima dos animais, também pode degradar-se abaixo deles: a capacidade de aperfeiçoamento pressupõe a possibilidade de piorar, assim como de melhorar, mas quaisquer que sejam suas conseqüências, é um vestígio que não se pode erradicar da natureza humana; o homem tem que avançar constantemente para um novo estado de desenvolvimento, posto que suas capacidades primitivas se ampliam e se fortalecem .
O surgimento da sociedade simples constitui a primeira revolução social ?
acontecimento que não só foi importante porque agrupou pela primeira vez os homens, mas também pelas suas repercussões sobre a natureza humana; o homem modificou sua conformação mental e emocional ao tomar consciência de si mesmo e dos outros.
Desafortunadamente, essa mudança de atitude pode-se dizer que foi o anúncio dos males posteriores da vida socializada, como por exemplo, o orgulho e a vaidade, conseqüências do desejo pessoal de contemplar-se a si mesmo e comparar-se com os outros. Então, quando o homem começou a considerar a si mesmo como um ser diferenciado, começou também, inevitavelmente, a se ver como o rival das demais pessoas. Inicialmente, estas desvantagens poderiam ficar facilmente compensadas: os homens experimentavam satisfações que não haviam sido descobertas por seus antepassados.
Podemos dizer que gozavam dos sentimentos mais doces que o homem conhece, o amor conjugal e paternal . Além disso, todos os laços familiares eram recíprocos e livres. A vida continuava sendo simples e solitária, com necessidades muito limitadas e meios adequados para satisfazê-las. No entanto, o uso de bens, até então desconhecidos, constituía já uma ameaça potencial para a felicidade futura ao debilitar tanto o corpo como a mente, especialmente o sentimento de privação, percebido por aqueles que se sentiam afetados sem justificativa por sua incapacidade para obter bens supérfluos; eram desgraçados por perdê-los, sem ser felizes por possuí-los.
Portanto, mais importante do que os bens materiais eram os efeitos psicológicos de sua possessão ou privação que começaram a repercutir sobre as relações dos homens entre si. A bondade simples de seu estágio anterior e a manifestação espontânea de sentimentos inatos deram espaço para reações morais ligadas ao orgulho e à inveja. Em qualquer caso, estas dificuldades e desvantagens não eram suficientemente graves para descompensar o equilíbrio da existência humana e, em seu conjunto, provavelmente, este tenha sido o período mais feliz da existência humana.

O homem social, situado pela natureza à mesma distância da estupidez dos brutos
e da ilustração funesta do homem social, e empurrado igualmente pelo instinto e
pela razão a proteger-se contra o mal que lhe ameaça, se encontra obrigado pela
piedade natural a não fazer mal a ninguém, e não se vê forjado a fazê-lo, inclusive
depois de ter sido danificado .


Ao contrário do homem primitivo, este primeiro homem social utiliza sua razão, mas de tal forma que a harmoniza com suas necessidades simples. Esta fase do desenvolvimento humano, segundo Rousseau, que estabelece um justo equilíbrio entre a indolência do homem primitivo e a atitude petulante do amor próprio do homem social deve ter sido a época mais duradoura na história humana . Não existiam mudanças violentas e o homem desfrutava de um sentimento de segurança e estabilidade; posto que os homens não dependiam uns dos outros, tinham, todavia, habilidades suficientes para elaborar seus próprios instrumentos e ser, em grande medida, auto-suficientes. Podiam ser "livres, sãos, bons e felizes", e gozar de todas as formas dos prazeres do intercâmbio independente.
Não é necessário oferecer uma exposição detalhada da reconstrução da história humana realizada por Rousseau. Segundo ele mesmo afirmou, esta evocava a perfeição do homem e a deterioração da espécie, já que o homem, ao desenvolver as capacidades individuais vantajosas para ele, entorpecia progressivamente a convivência com seus semelhantes. Então, ocorreu uma segunda revolução social que alterou completamente o curso da existência humana. A descoberta da metalurgia e da agricultura, o que resultou na divisão do trabalho e na implantação da propriedade, com a nefasta distinção entre "o meu" e "o teu", iria colocar os homens em permanente conflito entre si. A conseqüência mais significativa desta mudança foi o surgimento da desigualdade como vestígio iniludível da condição humana
. Simultaneamente, estas novas condições provocaram um desenvolvimento acelerado das capacidades humanas ? a memória, a imaginação, a razão e orgulho. Todas estas tornaram a vida mais difícil e complexa. Um dos vestígios mais chamativos da sociedade moderna se manifestou então pela primeira vez:

" ... era necessário que as pessoas se mostrassem diferentes do que de fato eram. Ser e parecer se converteram em duas coisas radicalmente distintas, e desta distinção surgiu o fato enganoso, a astúcia falaz e todos seus vícios que são seu cortejo" .

Devido às desastrosas conseqüências da desigualdade, a servidão substituiu a liberdade. Inclusive os ricos foram escravizados pelos pobres, porque o rico e o pobre não podem existir um sem o outro.
A desigualdade criada pela propriedade produziu a ansiedade, a insegurança e o conflito, já que cada homem lutava para ser tão rico e poderoso quanto possível, para que pudesse se impor sobre os demais. Os homens já não se contentavam em satisfazer suas necessidades; pretendiam, além disso, alcançar, primeiro a abundância e depois o supérfluo. Todos se inspiraram no escuro instinto de se prejudicarem uns aos outros.
No primeiro discurso, Rousseau diz que os homens se escondem atrás de suas máscaras para satisfazer "seu desejo oculto de conseguir seu próprio benefício às custas dos demais". Os homens, logo, viveram no estado de mútua hostilidade que Hobbes atribuía ao homem no estado de natureza. No entanto, Rousseau atribui esta guerra de todos contra todos aos defeitos do estado social, e não ao estado original do homem. A ânsia de bens materiais determinou todas as ações dos homens e os ricos eram como "lobos famintos que, havendo provado uma vez a carne humana, não ficavam satisfeitos com outro alimento". Desta forma, os homens se converteram em, ambiciosos e fracos. As relações harmoniosas das sociedades primitivas passaram a ser o mais horrível estado de guerra .
Rousseau destaca especialmente o papel dos ricos na revolução desta situação de conflito contínuo. Já que eles eram aqueles que mais podiam perder nesta guerra perpétua, posto que qualquer direito a que acudiram para respaldar suas usurpações era obviamente precário e enganoso; corriam o risco constante de serem despossuídos pela mesma força que lhes havia permitido acumular sua riqueza. Para terminar com este estado de insegurança inventaram finalmente

"...o plano mais cuidadosamente concebido que jamais tinha inventado a mente humana: sugeriram a criação de um poder supremo que governaria aos homens segundo as leis e que defenderia e protegeria todos os membros da associação, rechaçaria os inimigos comuns e os manteria associados em eterna concórdia".

A criação de uma associação precária pela lei transformaria um direito, simplesmente natural, baseado na força, num direito legal, referendado pelo consentimento universal. Para Rousseau, foi assim que se constituiu a sociedade política. De fato, este acordo ou contrato era uma gigantesca fraude perpetrada pelos ricos às expensas dos pobres, que não ganhavam nada, exceto a escravidão permanente. Os ricos alcançaram este propósito porque não era difícil que homens astutos e endurecidos persuadissem outros, mais simples e ignorantes, de que a nova sociedade lhes beneficiaria; os pobres acreditaram equivocadamente que obteriam verdadeira segurança e verdadeira liberdade nesta nova situação. "Todos se apressaram a pôr as cadeias na crença de que estavam assegurando sua liberdade" . Desta forma, a propriedade e a desigualdade foram sancionadas pela lei, destruindo para sempre a liberdade natural. Toda a humanidade ficou submetida ao trabalho, à servidão e ao sofrimento para benefício de uns poucos homens ambiciosos.
A formação da sociedade política constituiu, portanto, uma fase decisiva, embora desastrosa para a história humana; quanto mais deplorável mais parecia se sustentar em convenções propugnadas em beneficio de todos. No entanto, de fato, sob a cobertura da lei, os fortes oprimiam os fracos. No Segundo Discurso, Rousseau expõe sua idéia de que o poder político atua sempre em beneficio dos mais fortes e em detrimento dos mais fracos.
Provavelmente, no início, estas leis eram toscas e ineficazes, e se reduziam a umas quantas convenções gerais, mas a consciência de muitas inconveniências e desordens levou gradualmente a várias modificações, em especial a de confiar a autoridade pública (uma inovação perigosa) a homens específicos ou a magistrados.
No entanto, Rousseau insiste no contrato social, pois, por mais injusta que seja uma sociedade política, seu propósito original é assegurar a liberdade de seus membros e a proteção de suas vidas e de suas propriedades. Rousseau se apóia na idéia da base contratual da sociedade, pois por mais tolos que sejam os homens, sempre designam líderes para defender sua liberdade, e não para que a destruam. Porém, este propósito não se cumpre porque a sociedade social serve exclusivamente para institucionalizar as desigualdades existentes e evitar o exercício da verdadeira liberdade.
No lugar de uma sociedade de homens livres só existe uma sociedade de escravos; os dirigentes são substituídos por um único governante, que governa por seu próprio poder, reduzindo todos os cidadãos a um estado de sujeição. Rousseau define o desenvolvimento da desigualdade, na sociedade social, em três fases: ricos e pobres, poderosos e fracos, senhores e escravos; considerando a última como o "monstro do despotismo que erige sua horrível cabeça" .
Com a chegada do despotismo, o processo histórico fecha o círculo ao produzir uma novo estado de natureza, porém corrupto, baseado unicamente na lei da força. O processo histórico, que começou com a liberdade e independência, no estado de natureza, finaliza, portanto, com a supressão da característica específica que converte o homem em verdadeiramente humano, ou seja, ao invés de um ser livre, um escravo abjeto.

CAPÍTULO II: A EXPRESSÃO DA LIBERDADE E DA IGUALDADE NO ESTADO CIVIL.



A liberdade e a igualdade são, sem dúvida, os elementos essenciais do pensamento filosófico de Jean-Jacques Rousseau. Na obra Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os homens, ele afirma que a perda da liberdade humana surgiu quando o verdadeiro fundador da sociedade social ,

"... tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não poupariam ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: "Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes de que os frutos são de todos e de que a terra não pertence a ninguém".

É relevante lembrar outra obra de Rousseau, o Contrato Social, a qual se inicia mencionando a situação já estabelecida do homem aprisionado pelas cadeias sociais e nos leva a pensar que, num primeiro momento, esse homem social encarcerado viveu num estado natural, no qual a liberdade e a igualdade eram condições fundamentais de sua existência. Num segundo momento, afirma, em tom de denúncia, inconformado com essa condição, a contradição originária dessa situação. Se no estado natural o homem era livre, por que ocorreu essa mudança sem explicação? "O homem nasce livre e por toda a parte encontra-se a ferros" . Supõe-se que ao passar do estado natural ao estado social o homem se liberta e passa a ser mais livre: "O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal mudança? Ignoro-o" . Até Rousseau fica constrangido sem saber como aconteceu isso: "o que poderá legitimá-la? Creio poder resolver essa questão". O autor aqui se compromete em desvendar essa problemática. Rousseau vai mostrar o caminho e, para isso, precisa meditar, fazer uma regressão ao passado através de um esforço mental pela busca mais fervorosa e sincera que, provavelmente, ninguém tinha realizado .
Essa preocupação, por mostrar o homem tão livre quanto antes, feliz e realizado, o levou a buscar "os princípios fundamentais aceitos pela minha razão, confirmados por meu coração e que levam o selo do assentimento interior na solidão das paixões" . Rousseau recorre aos sentimentos cultivados para oferecer-nos "a verdade das coisas" guiado pela razão e pelos sentimentos mais profundos, já que, se os sentimentos nos permitem amar aquilo que é bom isto ocorre porque a razão nos permite conhecê-lo e perceber as relações significativas que mantemos com nosso meio. Graças a ela podemos organizar nossa vida interna e sua relação com o mundo exterior.
"A razão é a faculdade de ordenar todas as faculdades de nossa alma de acordo com a natureza das coisas e com suas relações conosco" . O simples raciocínio não nos permite conhecer as verdades primitivas, pois é a arte da comparação das