A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA COMO FATOR DE DEPRESSÃO EM MULHERES CASADAS

Eliane Gimenis
Graduada em Psicologia pela Universidade Paulista (UNIP) com Licenciatura Plena e Bacharelado. Cursando pós-graduação lato sensu em Saúde Mental pelas Faculdades Integradas Espírita (UNIBEM).
Atuando na área de Saúde Mental no Ambulatório de Saúde mental da rede pública da prefeitura de Artur Nogueira do estado de São Paulo.
Email: lia.gimenis@ gmail.com


Resumo: Frente à crescente demanda de mulheres com o diagnóstico de depressão que buscam os serviços de psicologia e de psiquiatria como formas de tratamento, o presente artigo traz uma discussão sobre as relações conjugais com o objetivo de refletir a violência sutil e psicológica dentro do casamento como um possível fator desencadeador de depressão. Para tal, foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre o tema como forma de abarcar a trajetória histórica da mulher e da definição da depressão. A pesquisa mostrou a complexidade do termo depressão influenciando na sua compreensão e nos tratamentos atuais, assim como a predominância de relações conjugais assimétricas, incapacitando a mulher exercer seu papel de sujeito do desejo, podendo tais relações ser um fator de adoecimento.

Palavras-chave: depressão, submissão feminina, relações conjugais, violência doméstica.

Abstract: Faced with the increasing of depression diagnosed women searching for treatment in psychology and psychiatry services, this article proposes a discussion about marital relations driven by the purpose of considering subtle and psychological violence inside marriage as a possible depression-triggering factor. In order to do so, a bibliographic research about the matter has been made as a way to cover the historical trajectory of the woman, as well as that of depression and its definition. This research has shown the complexity of the term depression influencing its own comprehension and contemporary treatments, as well as the predominance of asymmetric marital relationships, making it impossible for the woman to play her role as the subject of her own desire. Such relations might be a sickening factor.

Key words: depression, Female Submission, Marital Relations, Domestic Violence.

Introdução

...entre tapas e beijos, é ódio, é desejo, é sonho, é ternura, o casal que se ama,
até mesmo na cama provoca loucura...
Trecho da música "Entre tapas e beijos".

O trecho da música "Entre Tapas e Beijos", interpretada pela dupla sertaneja Leandro e Leonardo, composta por Nilton Lamas e Antonio Bueno, chama a atenção para um tipo de relacionamento entre um casal que se não fosse real seria cômico. Infelizmente, comprovando que a arte imita a vida, não é raro, tomarmos conhecimento de várias histórias desse tipo.
Em rodas de amigas, não é difícil escutarmos relatos que é comum na vida da maioria das mulheres. Frases como, "não posso me demorar, tenho que preparar o jantar e ver as crianças", isso depois de um dia de trabalho, "vou ver se ele (marido) concorda com isso", entre outras, nos mostra a submissão vivida pelas mulheres.
Não é raro escutarmos relatos sobre o controle por parte do homem, como de uma jovem que recebeu o telefonema do namorado dentro de uma condução que a levava da faculdade para sua residência, desencadeando uma briga em que ela tentava explicar o fato de não ter atendido ao telefone anteriormente, por duas vezes, enquanto ela estava em horário de aula e estando o telefone no silencioso, não escutou.
A situação se complica quando a briga se transforma em agressões físicas, que extrapolam a agressão verbal e não verbal. Cenas como estas estão presentes no nosso dia-a-dia, e a maioria não chega ao conhecimento público, exigindo de todos nós uma reflexão e um posicionamento crítico. De acordo com o Relatório da Anistia Internacional, publicado na Folha de São Paulo em 6 de março de 2004, 1 (um) bilhão de mulheres já foram espancadas ou estupradas e 20% das mulheres são alvo de estupro. São situações em que a mulher vive em silêncio, por motivos que vão além da nossa compreensão.
Olhando para cada situação, percebemos mulheres em condições financeiras, intelectuais e profissionais que talvez, não precisassem passar por humilhações por parte de seus companheiros, seja namorado ou marido. Mulheres que a nosso ver não precisariam se submeter a nenhuma situação constrangedora, coercitiva ou ainda de violência de qualquer espécie.
A violência contra a mulher é definida pelas Nações Unidas como todo ato de violência baseado no gênero que tem como resultado possível ou real um dano físico, sexual ou psicológico, incluindo-se as ameaças, a coerção ou a privação arbitraria da liberdade, seja na vida pública, seja na privada. (OMS ⁄OPS, 1998)
Atualmente, a criação de tantos dispositivos e leis prescritas na Constituição Federal para assegurar os direitos das mulheres traz implícito que a violência não é um ato natural.
Dentro dessa perspectiva de dano psicológico, o interesse desta pesquisa se volta para a depressão em mulheres casadas, entendida como um sintoma causado pela violência doméstica caracterizado pelo abuso de poder nas relações conjugais, mais especificamente, a violência sutil implícita nos ordenamentos e atitudes onde não haja violência física, e as vivencias de submissão feminina vem sendo negligenciadas talvez por uma visão naturalista das relações conjugais e da condição de mulher.

Compreendendo a depressão

Não é fácil definir depressão. Estamos acostumados a entender a depressão com todo estado de tristeza, desanimo e abatimento.
O termo depressão se tornou habitual e corriqueiro, e caiu no senso comum designando qualquer tipo de tristeza ou desanimo por vezes sendo confundido em vários aspectos, ora, como um estado afetivo, ora, como um estado emocional, portanto, não é algo novo.
A depressão pode ser identificada em todos os momentos da história da humanidade mesmo antes da existência de tal termo. A compreensão sobre o que se constitui a depressão depende do entendimento de suas manifestações e da evolução dos termos aos quais foram sendo substituídos ao longo da história, até chegar a ser identificada como depressão nos dias atuais.
Por isso, uma breve revisão histórica se faz necessário, numa tentativa de também compreender como era vista a depressão em cada período histórico.
Em Teixeira (2004) e Vieira (2008), apoiados em autores do assunto, vamos encontrar a depressão presente nos textos bíblicos e na mitologia grega, sem menção a este termo ou a melancolia como era conhecida até então. Assim, a melancolia pode ser encontrada no estado prostrado de Saul demonstrado por seu animo abalado e em grande sofrimento e dor, afligido por demônios diante de uma transgressão ao seu pai e a Deus.
Na mitologia grega, a melancolia aparece igualmente como uma forma de sofrimento atribuído pelos deuses em razão de uma infração cometida como causa de um descontrole mental.
A origem do termo melancolia é atribuída a Hipócrates (377 a.C.), considerado o pai da Medicina e quem formulou a teoria dos humores (sangue, bílis amarela, bílis negra e a linfa) no qual o temperamento era resultado do desequilíbrio destes quatro humores, passando assim a ser considerada como doença. O termo melancolia vem do grego ? melas (negro) e kholé (bile) dando a idéia de que a causa da doença se dava por um acúmulo da bile negra no baço dos enfermos, idéia essa, que persistiu por vários séculos.
Na Grécia Antiga, a melancolia aparece relacionada com a loucura e a genialidade, no tratado de Aristóteles (384-322 a.C.), Problemata XXX, no qual o determinante entre a loucura e a genialidade dependeria do nível de concentração da bile no organismo.
Considerada como doença, alguns tratamentos terapêuticos começaram a existir, já no século I, como exposições ao sol, viagens, massagens e ginástica. A primeira sistematização das doenças surge com Galeno (129 ? 200), o qual compartilhava das idéias de Hipócrates.
Na Idade Média, a Igreja Católica entende a melancolia como um "mal da alma" e não do corpo, associando-a a um "mal demoníaco", tal visão entrou em conflito com as idéias da medicina que considerava a depressão como doença, decorrendo um retrocesso desta visão que só viria a florescer na Renascença com o enfraquecimento da Igreja.
Na Renascença, ocorre o resgate da cultura clássica e a melancolia passa a ser novamente considerada como um mal humano, porém, associada a genialidade e dotes para a arte, romantizando a doença.
A era da ciência entre os séculos XVII e XIX foi palco do nascimento da Medicina mental, precursora da Psiquiatria, a qual inaugura a visão da melancolia na ordem das perturbações mentais e passíveis de serem tratadas. Essa possibilidade traz implícita a noção de cura e para tal, é necessário conhecer a causa de determinada doença, as quais eram buscadas em órgãos físicos. Neste período, as perturbações mentais eram vistas como loucura vivida em espaços de isolamento.
No século XIX, o interesse pela cura das doenças mentais cresce com influencia de Pinel diante da sua crença na "possibilidade de cura da loucura, por meio do tratamento moral, ao entender que a alienação é produto de um distúrbio da paixão, no interior da própria razão, e não a sua alteridade." (AMARANTE, 1996 apud TEIXEIRA, 2004, 47)
Ocorre neste momento a abertura para a substituição do termo melancolia para depressão. Após a tentativa de Pinel em classificar e descrever as doenças usou o termo "mania" em referencia a qualquer tipo de loucura, aqui a visão da doença seria de ordem moral contrastando com a visão de Esquirol como de ordem cerebral. Este último cunhou os termos "lipomania" (lypémanie - transtornos de humor) e "monomania triste" (mono-manie - transtornos de juízo), opondo-se à melancolia, Kraepelin, integrou a melancolia à insanidade maníaco-depressiva, e adotou o termo depressão para descrever os afetos originando daí a etiologia da doença em base bioquímica.
No século XIX, com o desenvolvimento cientifico, o termo depressão vem ganhando preferência por ser mais adequado ao pensamento psiquiátrico em detrimento à melancolia por sua associação ao romantismo.
Surgem duas correntes interpretativas da depressão no século XX, a Psiquiatria e a Psicanálise.
A psiquiatria adotou o termo depressão para superar uma discussão em torno da etiologia da doença implícita em cada termo: depressão/biológico- melancolia/existencial, além da discussão existente dentro da própria psiquiatria quanto à diversidade das formas clínicas apresentadas e as respectivas classificações distintas, implicando na possibilidade de cura. Os manuais de classificação começam a surgir dando a definição do que é depressão e o termo depressão passa, assim, a predominar na psiquiatria, sob as modernas classes de transtornos afetivos (CID-10) ou transtornos de humor (DSM-IV), entendida como uma disfunção orgânica e de fracasso do funcionamento do corpo.
Segundo Goldfarb; et al (2009), na visão da Psicanálise depressão não substitui a melancolia, são termos distintos para identificar manifestações distintas. Para Freud a depressão é constitutiva do psiquismo e caracteriza o ser humano. Freud usa termo em referencia a um afeto, estado ou sintoma de natureza penosa, já a melancolia é usada em referencia a uma psicopatologia especifica o luto patológico, a qual estaria ligada à constituição do sujeito, a um modo dele lidar com as coisas. Portanto, a melancolia estaria relacionada à estruturação do eu, uma neurose narcísica localizada entre a psicose e a neurose.
Diante dessa exposição é possível notar que a depressão passou por várias denominações e cada uma apontava para um tipo particular de ser entendida e tratada. A complexidade do termo persistiu nos dias atuais e o seu tratamento vai depender de qual perspectiva está sendo olhada.
A perspectiva adotada neste trabalho é a relacional sem esquecer a cultural e neste sentido entender a história de vida das mulheres é de fundamental importância para compreender como a depressão se insere, conjugando-se ainda uma leitura psicanalítica.

O lugar histórico da submissão da mulher

...Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado

Dizia: Meu filho, que se há de fazer
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade...
Trecho da música de "Ataulfo Alves e Mario Lago"

Vemos neste trecho de música a retratada a figura de uma mulher submissa e passiva sendo exacerbada e valorizada como uma companheira ideal para o homem. Tal pensamento acompanha a nossa cultura histórica na qual determinou não só papéis diferenciados para homens e mulheres, mas também as condutas e os lugares que cada um deveria ocupar.
Atualmente, contrariando tal figura, não é raro vermos mulheres assumindo cargos de relevância social, chefiando famílias e donas de suas vidas. Conhecidas como a mulher moderna, elas são capazes de escolher suas profissões, seu estado civil, se querem ser mães ou não, podendo inclusive dispensar a paternidade. Porém, esses direitos não estiveram sempre ao seu alcance, numa retrospectiva histórica, a mulher sempre ocupou um espaço muito limitado, para não dizer nulo, na vida em sociedade e na família, exercendo uma função subalterna perante os homens, viviam subjugadas segundo as ordens masculinas.
Subjugação na acepção do dicionário Larousse Cultural, é definida como ato ou efeito de domínio, conquista e domesticação. Sendo assim, a mulher subjugada se encontra sob domínio do homem, o qual exerce o ato de dominar.
Para se compreender a relação de dominação que o homem exerce sobre a mulher é imprescindível uma revisão histórica, uma vez que tal trajetória foi sendo determinante na estruturação e legitimação do que é ser mulher dentro da cultura ocidental. Para tanto rever os mitos e as teorias científicas será de fundamental auxílio na compreensão das justificativas eleitas para que fosse possível a organização social tal qual encontramos nos dias atuais.
Narvaz, em sua tese de doutorado, mostra vários discursos que vem legitimar as relações humanas de dominação e naturalizar a inferioridade da mulher promovendo a desvalorização crescente da mulher desde os tempos primitivos. Os mitos, a religião e os contos de fadas são discursos que destituem a mulher de qualquer poder. (NARVAZ, 2005)
A autora acima citada nos remete ao mito da criação do Universo por Zeus, que toma para si a capacidade reprodutiva e engrandece a paternidade destituindo a mulher de poderes, os quais se associavam à capacidade reprodutiva, à sexualidade e à adivinhação. As mulheres passam então a serem representadas como curiosas, frívolas, dependentes, feitas apenas para agradar aos deuses masculinos podendo ser vistas assim nos mitos de Pandora, Perséfone e Psique. (NARVAZ, 2005)
Também a religião aparece sob a forma de mais um discurso legitimador da desigualdade dos sexos, prevalecendo o masculino sobre o feminino e justificando as condutas próprias de cada sexo ao longo dos tempos.
O Cristianismo retratou a mulher como pecadora e culpada pelo exílio do paraíso, devendo obediência, passividade e submissão ao homem, e após o advento da cultura judaico-cristã, uma consciência de culpa que permitiu a manutenção da relação de subserviência e dependência delineou as condutas e idéias de ?natureza? das mulheres. (PINAFI, 2007)
Já nas civilizações contemporâneas, as explicações legitimadoras da ordem social se apóiam na ciência. No âmbito da filosofia, existem vários discursos constitutivos da mulher submissa da contemporaneidade. Desde Aristóteles, nota-se a existência de uma hierarquia baseada na divisão sexual dos papéis, atribuindo às mulheres obediência aos homens e restringindo seu espaço de atuação ao ambiente doméstico.
Segundo Pinafi (2007), a concepção da mulher tem sido norteada por óticas biológicas e sociais, determinantes para a desigualdade de gênero, trazendo em seu bojo uma relação assimétrica sob a égide de um discurso que se pauta na valoração de um sexo sob o outro.
A mesma autora nos lembra ainda que, na Grécia Antiga havia muitas diferenças entre homens e mulheres. Às mulheres não eram concedidos direitos jurídicos, nem direitos à educação formal, sendo ainda proibidas de aparecer em público sozinhas. Dessa forma ficavam confinadas em suas próprias casas em um aposento particular, enquanto aos homens todos os direitos eram permitidos. As mulheres romanas nunca foram consideras cidadãs, implicando numa proibição de exercer cargos públicos. As formas de exclusão social, jurídica e política colocavam a mulher no mesmo patamar que as crianças e os escravos, sendo sua identificação enquanto sujeito político, público e sexual negada, considerada apenas sua função procriadora como garantia de um status social.
Até o final do século XVIII, imperou essa visão naturalista determinando uma inserção social diferente para ambos os sexos, atividades nobres como a filosofia, a política e as artes cabiam aos homens; enquanto as mulheres deviam se dedicar ao cuidado da prole, bem como tudo aquilo que diretamente estivesse ligado à subsistência do homem, resultando da dominância de questões sociais sobre as determinações da natureza humana. (PINAFI, 2007)
A possibilidade de mudança dessa visão naturalista teve início a partir da Revolução Francesa de 1789, que baseada no pensamento iluminista garantiu às mulheres os mesmos direitos naturais dos homens. Assim, inicia-se o primeiro movimento de mulheres com uma participação ativa no processo revolucionário, reivindicando os mesmos direitos que eram concebidos aos homens, porém sem sucesso neste momento, É no século XIX que começou a ganhar terreno de forma efetiva com a formação do primeiro movimento das mulheres na luta pelos seus direitos.
É neste século, que se consolidou o sistema capitalista, abrindo espaço para profundas mudanças na sociedade como um todo. O modo de produção afetou o trabalho feminino levando um grande contingente de mulheres às fábricas, tirando a mulher do espaço privado, do locus que até então lhe era reservado e permitido, passando a participar da esfera pública. Porém a mudança não se deu de forma tranqüila. Diante da visão de que as mulheres eram seres inferiores aos homens, estas se articulavam para provar que podiam fazer as mesmas coisas que eles, o movimento feminista iniciou uma trajetória que pretendia eliminar as discriminações sociais, econômicas, políticas e culturais de que a mulher era vítima. (PINAFI, 2007)
Apesar da conquista por um espaço público, a mulher ao voltar para o espaço doméstico encontra-se diante de determinações masculinas, uma vez que a ordem social vigente é construída por um modelo patriarcal. O modelo patriarcal de família se consolidou no Brasil desde a colonização devido ao incremento da vida urbana, que até então inexistia no início do século XIX.
Para Saffioti (2001), desde a colonização até os dias atuais, a família patriarcal foi uma das matrizes de nossa organização social, responsável pela posição da mulher marcada por uma atitude submissa e passiva.
A urbanização teve impulso pelas transformações econômicas e sociais do período da consolidação do Capitalismo e da ascensão da burguesia. O desenvolvimento das cidades exigiu mudanças no estilo de vida e na arquitetura das casas, a classe burguesa passou a ditar as normas de conduta e de relações sociais desde a colonização. (SAMARA, 2002)
D?incao (2004) nos ressalta que o desenvolvimento das cidades e da vida burguesa permitiu o processo de privatização da família marcado pela valorização da intimidade e da maternidade. A idéia da intimidade se ampliava e a família, em especial a mulher, submetia-se a avaliação e opinião dos outros, uma vez que ganhou o direito de freqüentar lugares públicos como cafés, bailes, teatros, etc., mesmo que sempre acompanhadas, e assim suas condutas eram vigiadas não apenas pelos maridos, ou pais, mas por toda a sociedade. Por seu turno, a maternidade passando a ser valorizada, recaiu sobre a mulher a responsabilidade do lar, da boa educação dos filhos, da dedicação aos filhos e ao marido, desobrigando-as do trabalho produtivo. E assim a maternidade passou a vista como um ideal de retidão e probidade.
Nesse modelo familiar podemos observar as relações assimétricas de poder como forte aliado das expressões de violência contra as mulheres. Tal violência se constitui em um componente fundamental do adestramento das mulheres à ordem social patriarcal. (STREY, 2001)
A violência contra a mulher se manifesta quando esta ousa a não atender aos apelos do marido ou do pai, os quais são os detentores do poder de vida e morte sobre elas. Um poder simbólico, outorgado aos homens pela sua natureza física e superioridade intelectual, legitimado pela ciência vigente até então.
Soihet (2004) nos mostra a dificuldade de encontrar material na literatura que ajude a entrever as condições de vida das mulheres vitimadas ao longo da história, devido o descaso pelas mesmas. Na tentativa de reconstruir a vivência de violência por quais passaram, os processos criminais são a fonte principal.
Nos dias atuais, as mulheres ganharam campos públicos de atuação profissional, educação e várias conquistas que transformaram o cenário da vida social como um todo. Ainda hoje, nos deparamos com denúncias sobre ocorrências de violências no interior do lar. A maternidade, a virgindade já não são mais padrões de condutas valorizadas. Convivemos com vários modelos de família, com um declínio do patriarcado, mesmo assim ainda podemos ver mulheres tendo relações conjugais assimétricas, vivenciando caladas humilhações e cobranças que tendem a levar a um tipo de vida sem sentido e talvez ao adoecimento.

As vivencias de gênero e a depressão

Não sei se vou aturar esses seus abusos
Não sei se vou suportar os seus absurdos
Você vai embora, por aí afora, distribuindo sonhos,
os carinhos, que você me prometeu...
Trecho da música de "Chico da Silva e Antonio José" interpretada por Alcione

Diz Solomon (2002:15) que a depressão é a imperfeição no amor. O trecho da música acima remete a um relacionamento amoroso sustentado por uma espera de gratificação incansável. No decorrer da música aparece a dúvida entre manter ou não esse relacionamento, prevalecendo a sua continuação baseado em ter mil razões para perdoar por amor.
Esse tipo de relação chama a atenção para este trabalho por se caracterizar em violência sutil, baseada em abandono e negligencia por parte do parceiro.
Por muito tempo, o que acontecia entre um casal foi considerado como um problema de ordem do âmbito privado, sendo assim, qualquer tipo de violência ocorrida no espaço doméstico não possuía visibilidade no âmbito público. Somente, a partir dos anos 80, a violência entre os casais passou a ser questão de interesse social e de saúde pública. Uma das influencias para tal mudança parece ser as conseqüências da violência.
Vários estudos pesquisados apontaram que a depressão atinge especialmente as mulheres, e que depressão decorre de situações de violências e assume uma grave conseqüência, uma vez que gera incapacitações entre muitas outras implicações na vida destas pessoas. (DANTAS-BERGER e GIFFIN 2005, CARVALHO e COELHO, 2005)
Existem ainda situações em que a mulher vivencia a submissão mediante ameaças verbais ou insinuações e tais não são reconhecidas como violência, e talvez por esse motivo alguns estudos demonstrem que as mulheres silenciam alguns tipos de violência, tais como a física por medo ou vergonha, e a sexual e a psicológica por não serem reconhecidas pelas mulheres como sendo violência, apesar de viverem relações desgastadas, cheias de brigas e conflitos, justificam a violência por parte do marido por fatores externos como pobreza, desemprego, alcoolismo.
Na visão da psicanálise, a depressão é entendida como uma expressão afetiva inerente ao ser humano, manifestada em razão da perda do objeto que se transforma na perda do próprio eu. Numa relação a dois em que ocorre a desvalorização de um, ai se instala o empobrecimento de energia repercutindo em inibição.
Segundo Kehl (2009, s/p) "depressão, para Lacan, é ceder na via do desejo". Tal afirmação nos remete à letra da música citada, em que a mulher espera passivamente o retorno do homem e seus carinhos como demonstração de afeto e valorização. Mesmo cansada, insiste e resiste como uma "heroína", uma "boa menina" que vai ganhar seu premio após o sacrifício, o bom comportamento. Vemos então, o desejo, desejo esse que precisa suportar a espera do desejo do outro.
Algumas questões que surgem diante disto podem ser as seguintes: Por que a mulher abre mão de seu desejo? E porque tantas mulheres se mantêm em relacionamentos desgastados e suportam serem desvalorizadas?
Sem a pretensão de dar uma resposta definitiva, dentre tantas possibilidades de leitura do que é ser mulher, a visão deste trabalho com base numa perspectiva histórica, relacional e psicanalítica.
A histórica entende que a cultura impõe modelos de comportamentos, relacional entende que ser mulher é uma construção social e que ao longo dos tempos a mulher foi educada para obedecer e aceitar ordens sem ter direito a reivindicações, e a psicanalítica que entende que a estruturação do sujeito se dá através das relações de objeto que estabelecem.
Nesse sentido, uma resposta possível seria a naturalização das relações conjugais assimétricas, com forte influencia da cultura. O imaginário da mulher passiva e do romantismo se perpetua através dos símbolos e da linguagem.
Nas relações conjugais em que predominam a submissão feminina parece que a mulher não se permite perceber-se como um sujeito de desejo.
Tudo isso tem um preço: a depressão.

Metodologia

A pesquisa foi realizada de forma qualitativa, partindo de pesquisas bibliográficas que foram cuidadosamente selecionadas e deram o embasamento teórico para essa temática.

Considerações finais

Com este trabalho, nota-se que entender da depressão passa por muitas leituras, tornando difícil a sua definição e a sua compreensão.
Dentro de uma leitura da psiquiatria que entende a depressão como um desequilíbrio da química cerebral, poderíamos entender a prevalência da depressão em mulheres mediante o funcionamento cerebral diferente entre homens e mulheres. Para a psicanálise, a depressão é inerente ao ser humano e se manifesta como uma proteção diante da realidade quanto esta se apresenta contrária as satisfações das pulsões. Para a primeira, a medicalização é a única saída com sua promessa à cura, para a segunda, o foco é a compreensão dos diversos significados que a depressão adquire na vida de cada um.
E assim, diante do que já foi exposto até agora, não é difícil uma percepção de que as mulheres ainda não conseguiram se firmar como sujeitos de desejo, adoecendo mediante vivencias de insatisfação pela qual a mulher passa dentro do casamento. A falta de autonomia e a opressão vivida na relação marital ainda estão longe de ser transformada em relações mais igualitárias, em que possa haver espaço para alteridade.

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