INTRODUÇÃO

O período de tempo em que decorre a vida de Kant é marcado por grandes mutações quase que em todas áreas, desde a política, religiosa e até a social.

A ciência, depois de Newton estava segura dos seus resultados e adquirira um estatuto de dignidade e de credibilidade que era contestado a outras formas de pensamento; no plano religioso, onforme esreve Chatelet citado no livro de Reis, “Deus, tanto o dos teólogos como o dos profetas, está em retirada”. Reis (1985-21) Uma certa tendência das luzes põe em causa a “orientação teológica da filosofia” e tende a priorisar outras formas de saber ou orientações dos discursos epocais.; no âmbito das ciências e técnica nota-se uma grande progressão, fazem-se novas descobertas e produzem-se novas invenções.

A questão económica, em função dos critérios de validação epocais, tende igualmente a tomar outras orientações, basta no lembrarmos das pulicações feitas no momento como por exemplo as duas obras de realce de autores como Quesnay que publica desde 1758 estudos sobre a fisiocracia e Adam Smith, A Riqueza das Nações em 1776 como tentativas de para descobrir as leis naturais da vida económica e ainda procurar tornar manifesta a intenção de que as medidas globais sobre a riqueza das sociedades não devem depender da vontade ou arbítrio de um monarca. cfr. Reis (1985-20/22)

Ainda em relação a mesma situação é que Châtelet afirma que “as sociedades agitam-se: organizam-se em torno das máquinas e das suas produções, e não tarda que ponham em causa a ordem tutelar e que executem-dentro da legalidade popular-um monarca de direito divino. A partir de então, como comportarmo-nos se reconhecemos que nem de Deus nem da Natureza vem mandamento algum, mas do homem livre, livre até à vertigem?”. Reis (1985-21)

Kant vai colocar no centro das suas preocupações o problema da acção. Pretende operar alguma viragem na maneira de conceber a posição do homem no seio do universo natural e social.

Será então na Metafísica dos Costumes e na Cítica da Razão Prática que Kant procura responder a uma das questões fundamentais e decisivas para o homem, o que devo fazer? Se a pergunta teórica, a que responderá a sua Crítica da Razão Pura, o que posso saber?, era importante, esta pergunta prática é-o mais.

Com efeito, se naquela se envolve na sua qualidade de ser racional, nesta é o seu destino como pessoa, como ser moral, que esta em causa.

O Homem não se reduz à dimensão de sujeito do conhecimento. Afirma-se verdadeiramente, não propriamente enquanto pelo entendimento regula a natureza na medida em que se regula a si mesmo, em que se autodetermina segundo uma lei da liberdade, uma causalidade livre.

Neste domínio prático, o poder do Homem não tem limites, a sua razão afirma-se sob o uso especulativo mas também o uso prático; contudo, o seu interesse supremo é o de natureza prático, isto é, ao nível prático que o Homem faz a experiência de si, não apenas como fenómeno num mundo natural sensível, mas como númeno num mundo moral no reino inteligível dos espíritos.

Neste trabalho procuraremos essencialmente clarificar e percebermos alguns conceitos fundamentais ligados a este problema prático da autodestinação do Homem; não temos a pretenção de clarificar tudo o que se refere a este problema em causa, acreditando igualmente e como consequência disso, algumas limitações de ordem conceptual dado a grande dificuldade que esta filosofia kantiana apresenta no que se refere a percepção. Esperamos contudo, virmos a satisfazer aqueles que são os nossos propósitos no trabalho.

A LEI MORAL COMO LEI INTRÍNSECA DA RAZÃO

Numa das suas últimas obras, A Religião nos Limites da Simples Razão, Kant considera três elementos como constitutivos do destino humano, distintos e hierarquicamente relacionados: o primeiro é a disposição do Homem enquanto ser vivo para a animalidade; o segundo é a disposição do mesmo Homem enquanto ser vivo e racional, para a humanidade e a terceira é a disposição humana enquanto ser racional e responsável para a personalidade. Animal, Homem e pessoa, o nosso autor considera esses conceitos como sendo etapas de formação do homem, cuja relação poderíamos traduzir na seguinte proposição: o homem deve ser mais do que homem para ser autenticamente ele mesmo.

É neste sentido que nos vimos como que estando compelidos a afirmar que o destino final do Homem é realizar-se como pessoa, isto é, a capacidade de sentir o respeito pela lei moral enquanto motivo em si mesma suficiente do livre arbitrio. Kant (1972-45/48).

É muito significativo que Kant conceba o Homem como um destino, isto é, como ser que tem de fazer-se a si mesmo e que, igualmente, o termo final desse processo de autoformação humana seja entendido como personalização, isto é, como um assenhorear-se completamente de tudo o que faz, ser autónomo, numa palavra, inteiramente livre. Para Kant, o ideal supremo da autonomia, da liberdade, da personalização, é Deus; e o Homem, enquanto se personaliza, identifica-se com Deus, “ideal supremo, enquanto pessoa”; é este destino sublime do Homem que leva o nosso filósofo a estabelecer o primado do uso prático da razão sobre o uso especulativo. Poderiamo-nos perguntar sobre o verdadeiro sentido que este termo, Prático, tem e é usado em Kant.

A expressão assume em Kant um sentido preciso, que não coincide com o da linguagem corrente; o prático kantiano pode ser situado no mesmo nível do conceito aristotélico de praxis. Prático é, assim, sinónimo de ético, moral. Não diz respeito ao plano de execução, técnico, da acção, mas tão somente ao plano da decisão moral, no qual se encontra a autodestinação do ser humano como ser que leva em si o princípio do seu agir e o fim da sua acção, ou seja, cujo fim é a realização de si mesmo segundo uma lei que lhe é inerente.

A outra questão que daqui se pode levantar é a de perceber onde se evidencia o carácter sublime do destino humano e o que é que nos permite atribuir ao homem o destino moral de sua personalização?

O argumento decisivo é a existência no Homem, fundamentalmente na sua razão, de um princípio absolutamente incondicional, tão alheio às inclinações do sentimento quanto indiferente às leis do mundo natural. Esse princípio é, no dizer de Kant, a lei moral. Esta, é a lei que o Homem, enquanto ser racional e livre, descobre em si mesmo como correspondendo à sua natureza; trata-se de uma lei que se impõe por si mesma a todo o ser racional. É uma lei intrínseca da razão e que por ela, o Homem revela-se a si próprio como pertencendo a um mundo superior, o mundo supra-sensível e inteligível.

A lei moral é o verdadeiro elemento divino do homem e por essa razão, segundo Kant, a Moral e a Religião coincidem: a Religião não consiste noutra coisa senão em considerar a lei moral que o Homem descobre como lei da sua razão como se ela fosse um mandamento divino.

A representação de um princípio objectivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se Imperativo. Kant (1995-44)

Sabe-se contudo que, em virtude da constituição humana, este participa do mundo sensível, da animalidade; ele é um meio termo entre o mundo sensível e o mundo inteligível e, é em virtude desse caso que a lei moral, embora absolutamente clara para qualquer razão humana, tem de contar com essa constituição do Homem. Tem de contar com a possibilidade de que a sua vontade racional não coincide com o seu livre arbítrio pessoal e que, por conseguinte, a lei moral possa estar em contradição com os seus sentimentos e paixões. É por essa razão que no Homem a lei moral se afirma como um dever e assuma a forma de um imperativo categórico. Kant formula-o do seguinte modo: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torna lei universal”; e ainda, “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qulquer outo, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” Kant (1995-56 e 68)

A LIBERDADE COMO FUNDAMENTO DA LEI MORAL

A existência no Homem da lei moral remete-nos para o seu fundamento e para as condições da sua possibilidade. Se a lei moral é o que imediatamente revela ao Homem o carácter absoluto da sua razão, logo nos conduz àquilo que torna possível esse carácter absoluto, a liberdade. A lei moral só existe para um ser livre. Mas oqe será a liberdade para o nosso filósofo? A liberdade será a razão de ser, o fundamento (ratio essendi) da lei moral, embora a lei moral seja o que nos permite o acesso essência da razão como liberdade (isto é, a ratio cognoscendi da liberdade). Também aqui, no plano prático, Kant tem o cuidado de não admitir a consciência imediata da razão por si mesma, uma intuição da sua essência, em que objecto e consciência (liberdade e razão) coincidiriam de forma absoluta.

Para o ser humano, o acesso à essência da razão é mediado pela representação da lei moral. A liberdade é para o ser racional humano um ideal e uma tarefa. A ideia da liberdade ocupa a primazia entre as ideias da razão e estabelece-se como fundamento e fecho de toda a actividade da razão. “O conceito de liberdade”, diz Kant, “é o único que nos permite não sair de nós mesmos a fim de encontrar para o condicionado e sensível o incondicionado e o inteligível.”Kant (1994-118) A partir dessa ideia, não só se encontra a resolução das dificuldades da razão especulativa, mas ainda, por relaçao a ela e enquanto suas condições, as outras ideias da razão (Deus e imortalidade) adquirem a objectividade que não lhes fora garantida pela razão especulativa. Esse facto, leva Kant a declarar, “o conceito de liberdade, na medida em que a sua realidade é demonstrada por uma lei apodítica da razão [isto é, pela lei moral], constitui o fecho da abóbada de todo o edifício da razão especulativa; e todos os outros conceitos (de Deus e da imortalidade) que, enquanto simples ideias, permaneciam naquela [na razão especulativa] sem fundamento, ligam-se agora a este conceito, adquirindo com ele e graças a ele consistência e realidade objectiva, isto é, a sua possibilidade é provada pelo facto de a liberdade ser efectiva; porque tal ideia se manifesta pela lei moral.” Prefácio à Kant (1994-15)

Deste modo, a ideia de liberdade, como primeira ideia da razão, esta investida de uma importante função. É ela que garante a unidade da razão no seu uso tanto especulativo como prático. E ao mesmo tempo por ela se afirma a supremacia da razão prática sobre a razão especulativa, o que em última instância equivale a antepor o mundo humano ao mundo natural. O mundo humano é um mundo de pessoas enquanto que o mundo natural é mundo de coisas.

Ora, o mundo natural, seguindo embora as suas leis necessárias, deve submeter-se, enquanto faz parte do campo de acção de um ser livre, aos fins morais que este ser põe a si mesmo.

Abre-se desta forma, um outro grande problema que Kant procurará ultrapassar com a sua crítica da faculdade de julgar que é o da necessidade de “unir” os dois mundos distintos entre si uma vez sujeitos a causalidades diferentes.

O MUNDO HUMANO COMO UM MUNDO MORAL

Kant esforça-se por distinguir o mundo natural do mundo humano. Segundo o nosso autor, esta claro que o Homem, na sua condição de existente, faz parte de ambos, do primeiro como fenómeno, do segundo como númeno; e enquanto participa do primeiro, o mundo fenoménico, o natural, esta sujeito ao determinismo das suas próprias leis que o regem, as leis naturais e na medida em que pertencente do segundo, o mundo humano, rege-se por uma causalidade livre.

No mundo natural é o entendimento que que impõe leis aos fenómenos sob a condição de estes serem dados numa experiência; no mundo humano, pelo contrário, é o imperativo categórico da razão prática que surge como algo absolutamente incondicional, como um dever absoluto.

Pela lei moral, expressa como imperativo categórico, se revela a dignidade do ser humano. Por ela se afirma o Homem como ser destinado pela sua própria natureza a fazer-se a si próprio segundo a lei que que a si mesmo dá. Deste modo se cumpre a qualidade entre todas decisiva da vida moral que se reduz em autonomia da vontade. “o princípio da autonomia”, diz Kant, “é o único princípio da moral”; “a autonomia é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional”. Kant (1995-85 e 87)

Mais uma questão se nos impõe perceber que é a de procurar saber o que significaria falarmos da autonomia da vontade. Neste sentido prático em que nos singimos no nosso trabalho, falar do conceito de autonomia da vontade significa que para uma acção ser moral, a vontade só deve ser determinada pela representação da lei moral e não por qualquer elemento exterior a ela própria (objecto ou mandamento), ou por qualquer outro motivo, por melhor ou muito que tal motivo represente ou simplesmente, seja. Desta feita, podemos então concluir que, a moralidade da acção humana, na perspectiva de Immanuel Kant, não depende sequer do que o Homem faz, mas do modo como o faz; ou melhor, depende do princípio segundo o qual o faz; estaríamos a dizer, numa outra linguagem ou em outros moldes, que a moralidade da acção humana depende da vontade boa do sujeito, na medida em que esta se orienta exclusivamente pela lei moral.

É por esta razão que, o nosso filósofo, dirá que neste mundo não há nada absolutamente bom a não ser uma vontade boa. Kant (1995-15) E essa vontade boa, para que seja autenticamente moral, não deve ser movida por factores sentimentais ou quaisquer outros elementos estranhos à lei moral, mesmo os resultantes da consideração do objecto da acção. Deve ser apenas movida pelo puro “respeito pelo dever” que a lei moral impõe; respeitar este dever, aliás, não é mais do que respeitar-se a si mesmo, à sua condição de ser racional responsável.

Por conseguinte, o Homem não deve agir, nem movido pela consideração dos objectos (mesmo que seja pelo bem considerado como um objecto exterior à vontade), nem com o objectivo de encontrar pela sua acção a felicidade ou qualquer outro lucro. Diz Kant que “a simples dignidade do Homem considerado como natureza racional, sem qualquer outro fim ou vantagem a atingir por meio dela[...], sirva de regra imprescindível da vontade, e que precisamente nesta independência da máxima face a todos os motivos desta ordem consista a sua sublimidade”. Kant (1995-82)

A autonomia realiza-se nos vários momentos da acção humana, na medida em que o Homem haje a partir de si mesmo, po si mesmo e para si mesmo. Por ela o Homem se constitui como ser moral, na medida em que leva em si a razão do seu agir e o objectivo de si próprio; é pela constatação desse facto que podemos extrair conclusões de que o conceito de autonomia do qual aqui nos referimos, nos conduz a outra exigência da ética kantiana, o dever incondicional de o Homem se considerar como um fim em si mesmo; nestas duas qualidades – a autonomia do princípio determinante do agir e finalidade imanente da acção – se revela toda a grandeza do destino humano e igualmente, todo o seu drama. Com efeito, o Homem enquanto ser racional e moral, constitui-se em esforço constante por atingir o objectivo que leva dentro de si, objectivo esse que, do ponto de vista empírico, resulta sempre inatingível. Uma outra constatação que daqui podemos extrair como resultante da que anteriormente fizemos é a de o próprio Homem é um ser dividido dentro de si próprio; é que, se por um lado, é um ser inteligível, na medida em que leva em si um tipo de causalidade livre, que se impõe como exigência absoluta e incondicional; aqui deve entender-se por causalidade livre,o poder que tem uma vontade de dar leis a si mesma e de se autodeterminar-se a agir segundo essas leis e em vista da sua auto-realização imanente. Só assim se salvaguarda o referido “único princípio” da moral: a autonomia. É claro que temos de ter presente a ideia de que, no Homem, a referida autonomia da vontade esbarra com outra das suas dimensões, a dimensão do sentimento. Mas nesse conflito é ao Homem racional que cabe o poder e o Homem sensível deve submeter-se; é, aliás, por isso que a lei moral surge ao ser humanocomo um imperativo incondicional, tu deves.

No Homem, com efeito, a vontade, ou simplesmente, o livre arbítrio, não coincide necessariamente com a representação da lei moral. Estabelece-se assim uma espécie de tirania do Homem sobre si mesmo; mas trata-se de uma tirania exigida pelo exercício da sua dimensão mais digna, a personalidade, pela qual ele se assemelha à divindade.

CONCLUSÃO

Toda a filosofia de Kant é uma tentativa de ultrapassar os problemas que se manifestavam na sua própria sociedade em particular e no seu tempo em geral. Immanuel Kant percebera imediatamente que um dos grandes problemas do seu tempo estava ligado ao modo como o próprio homem colocava-se diante de toda a realidade; homem capaz de tudo sem limites que substitui aquilo que posteriormente Kant virá a dizre que é o essencial no homem pelos esforços limitados. O nosso filósofo elabora todo o seu pensamento como revolução, desde o saber passando por fazer até ao julgar. Mas é essencialmento nas condiçõea de fazer que Kant acha o grande segredo para a posibilidade de alterar tudo o que antes estava relegado ao segundo plano, isto é, procura primar a rezao prática sobre todo o resto.

Nestas páginas procuramos perceber e esclarecer os conteúdos componentes deste lado activo do homem que é o lado da sua moralidade através da exposição dos seus princípios fundamentais; acreditamos que existam algumas incongruências no modo de expor as questões mas foi simples intenção nossa propiciar “algum lado” como contribuiç`ao singela na difícil tarefa de perceber uma filosofia tão complexa como a de Kant. Trata-se realmente de uma pequena contribuição que não versa intenção nenhuma de ser uma percepção definitória dos conceitos aqui expostos em função das leituras nas versões das obras do próprio autor e outras de interpretações deste pensamento, claramente citados, adicionados com os subsídios de apontamentos e discussões feitas, tanto em exposições pelo Docente Professor Kesselring, bem como em apresentações seminários e intervenções de estudantes durante um dos Módulos, o da Ética, do curso de Mestrado em Educação/Ensino de Filosofia.

A filosofia prática de Kant, fundamentalmente a que se refere a questão da autodeterminação do homem, para além dos grandes resultados que proporciona, ela pretende ser uma proposta de esolha de vida livre que condiciona, por isso, um novo conceito, que por não termos reservado um capítulo não significa por isso, ser menos importante; referímonos aqui ao conceito de felicidade. como este, também tantos outros conceitos poderíamos ter tratado deles para percebermos esta grande questão kantiana. Mas para o alcance daquilo que nos propúnhamos apresentar, não achamos conveniente.

BIBLIOGRAFIA

  1. KANT, Immanuel; Critia da Razão Prática, Edições 70, Lisboa, 1994
  2. KANT, Immanuel; Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Edições 70, Lisboa, 1995
  3. KANT, Immanuel; La Religion dans les limites de la simple Raison, Vrin, Paris, 1972

REIS, Alfredo; Filosofia-de Kant a Nietzsche, 2º vol., Edições Contraponto, Porto, 1985