Há tempos o homem encontra­ dificuldades para separar sua individualidade das funções de pai. Por muito tempo o paterno manteve-se protegido no silêncio, comprometedor de toda possibilidade de diálogo com a família, especialmente com os filhos. Foi sempre apoiado pela cultura que, sendo patriarcal, reservou-lhe lugar acima da trama doméstica cons­tituída, sobretudo pela mulher e pela criança.

Esta situação vem-se modificando, lenta e progressivamente, sob a égide de transformações mais amplas, em cujo fluxo imbricam-se, de modo indissociável, sociedade e família.

O distanciamento entre o homem e os demais membros do núcleo familiar denuncia-se na fragilidade do vínculo estabelecido entre pai e filho, principalmente quando se trata de crianças do sexo masculino. Penetrar este silêncio e entender a questão do pai, tendo como eixo a identidade masculina, culturalmente determinada, tem sido tarefa de estudos, que colocam em perspectiva experiências contemporâneas de paternidade.

Todos nós sentimos de alguma forma a presença ou ausência da figura paterna. Por meio de projeções o indivíduo internaliza a representação de pai, cada qual constrói, a seu modo, o pai institucional, o pai provedor, o pai protetor, o pai herói, forte e viril, pai frágil, pai omisso, entre outras.

De acordo com a teoria psicanalítica o papel estruturante do pai se dá a partir da instauração do complexo de Édipo, na trama familiar, o sujeito se constrói e sai do estado de natureza para ingressar na cultura.

Na vida familiar, a divisão entre o que compete ao masculino e ao feminino é transmitida como um valor culturalmente determinado e aceito.

O pai representa a possibilidade do equilíbrio pensado como regulador da capacidade da criança investir no mun­do real. A necessidade da figura paterna ganha contornos no processo de desenvolvimento, de acordo com a etapa da infância. Sua atuação na fase inicial da vida é decisiva na resolução de conflitos em momentos importantes do desenvolvimento. A criança necessita do par conjugal adulto para construir dentro de si imagem positiva das trocas afetivas e da convi­vência. Durante o desenvolvimento da personalidade, o pai real se sobressai e ganha consistência quando a criança o percebe enquanto desejo da mãe e objeto daquilo que o filho está apto a apreender dele, estabelecendo uma dialética.

Embora o lugar do pai no grupo etário infantil, não seja tão destacado na literatura, como acontece com a figura materna, sabe-se que o contato corporal entre o bebê e o pai, no cotidiano, é referência na organização psíquica da criança, devido à sua função es­truturante no desenvolvimento do ego. No segundo ano de vida, quando já existe a imagem de pai e de mãe, a figura paterna ganha relevo, não só para ancorar o desenvolvimento social da criança, mas para servir de suporte das dificuldades inerentes ao aprendizado deste período. É este apoio que vai alavancar o desprendimento da criança da estrutura doméstica confortável, até então, garantida pela mãe. O movimento para alcançar autonomia, ganha maior força na adolescência (Aberastury, 1991).

Para Corneau (1995), o pai tem três papéis a desempenhar com os filhos. Primeiro é o de “separar” a criança de sua mãe e vice-versa; ele entra na vida dos dois, rompendo a simbiose estabelecida e coloca um limite na vida da criança ao reivindicar a mãe para si próprio também, estabelecendo uma relação triangular pai – mãe – filho que implica em conflitos, mas que são fundamentais e construtivos, se vivenciados de modo saudável e respeitoso. Quando o pai recusa esse papel “conflitogênico” que lhe foi conferido, cria uma enorme dificuldade na organização dessa tríade familiar.

O segundo papel apresentado por Corneau (1995) é o de ajudar a confirmar a identidade de seu filho ou filha. O investimento paterno ao menino e à menina lhes dá segurança e auto-estima. Winnicott (1982) destaca sua importância, não só como apoio emocional à mãe (através de uma boa relação entre ambos), mas como a pessoa que sustenta a lei e a ordem na vida da criança (na interação que estabelece com os filhos e experiências compartilhadas), e à medida que se oferece como objeto de identificação.

O terceiro papel do pai seria o de transmitir “a capacidade de receber e de interiorizar os afetos, de carregá-los consigo” (Corneau, 1995, p.51). Esse contato aproxima pais e filhos, gera cumplicidade, além de uma relação baseadaem emoções. Asexperiências cotidianas de intimidade, juntamente com o exercício dos papéis propostos pelo autor, ajudariam o pai a se vincular aos filhos de forma genuína e salutar.

Cavalcante (1995), analista junguiana, sustenta que o arquétipo do pai, vivenciado através da encarnação no pai real, é o símbolo que promove a estruturação psíquica da criança e lhe permite abrir-se para horizonte de novas pos­sibilidades. Neste sentido, a identificação da criança com o universo de seu pai se dá através da experiência da interação, quando ele aparece como interdito na relação urobórica entre mãe e filho. Sua presença marca, simbolicamente, a dinâmica de rompimento desta fase (Gomes, 2003).

Corneau (1991), nas pegadas de Lacan, ressalta que o pai é o primeiro outro que a criança encontra fora do ventre de sua mãe: ele é indistinto para o recém-nascido, mas ao bloquear o desejo incestuoso, sua figura vai se diferenciando, permitindo o nascimento da interioridade do filho e desfaz, assim, a fusão entre o eu e o não eu: “(...) o pai encarna inicialmente a não mãe e dá forma a tudo que não seja ela” (Corneau, 1991, p. 27).

É esta a presença que irá facilitar à criança a passagem do mundo da família para o da sociedade. Será permitido o acesso à agressividade, à afirmação de si, à capacidade de se defender e de explorar o ambiente: “as crianças bem paterni­zadas sentem-se seguras em seus estudos, na escolha de uma profissão ou na tomada de iniciativas pessoais” (Corneau, 1991, p. 28).

O nascimento do filho desperta no homem desejos incons­cientes e fantasias relacionadas à morte e a situações ligadas à resolução de conflitos parentais. “É por isso que, ainda que desejado pelo homem, feliz em ser pai, o nascimento se anuncia e é vivido num clima emocional que varia segundo o tempo e os indivíduos; cada homem reage à sua maneira” (This, 1987, p. 96).

A criança que nasce tem necessidade de seu pai e de sua mãe, com quem deverá conviver. Ao promover o ideal de parentalidade (bons pais, ou pais perfeitos), corremos o risco de esmagar os seres humanos sob o peso do imaginário que afoga toda vida e todo desejo. O pai “imaginário” não é o pai “real”, felizmente (This, 1987, p. 96).

O poder afetivo materno que supera o do pai e estabelece contraponto na dinâmica da família, sem que os envolvidos se dêem conta do pacto silencioso dessa relação. É como se mãe e filho quisessem prolongar a “parceria” que um dia existiu entre eles, na fase inicial da vida. Não podemos afirmar que se trata de dificuldade compulsiva da mãe para com seus interesses próprios ou, no outro extremo, pela preocupação excessiva e patológica com o filho, embora isto possa ocorrer, corrobora para excluir a figura paterna.

 

Referências

GOMES, Aguinaldo José da Silva  and  RESENDE, Vera da Rocha. O pai presente: o desvelar da paternidade em uma família contemporânea. Psic.: Teor. e Pesq. [online]. 2004, vol.20, n.2, pp. 119-125. ISSN 0102-3772. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722004000200004

 

FREITAS, Waglânia de Mendonça Faustino e; COELHO, Edméia de Almeida Cardoso; SILVA, Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da. Sentir-se pai: a vivência masculina sob o olhar de gênero. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(1):137-145, jan, 2007. Disponívem em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v23n1/14.pdf

 

DANTAS, Cristina; JABLONSKI, Bernardo; FÉRES-CARNEIRO, Terezinha. Paternidade: considerações sobre a relação pais-filhos após a separação conjugal. Paidéia, 2004, 14(29), 347-357. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/paideia/v14n29/10.pdf

 

Aberastury, A. (1991). A paternidade. Em A. Aberastury & E. J. Salas, A paternidade: Um enfoque psicanalítico (pp. 41-87). Porto Alegre: Artes Médicas.

 

Cavalcante, R. (1995). O mundo do pai: Mitos, símbolos e arquétipos. São Paulo: Cultrix

 

Corneau, G. (1991). Pai ausente filho carente. (L. Jahn, Trad.). São Paulo: Brasiliense.

 

Corneau, G. (1995). Paternidade e masculinidade.Em S. Nolasco (org.), A desconstrução do masculino(pp 43-52). Rio de Janeiro: Rocco

 

Gomes, A. J. S. (2003). Paternidade contemporânea: Um estudo sobre o pai presente num contexto familiar estável. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de São Paulo, Assis/SP.

 

This, B. (1987). O pai: Ato de nascimento. Porto Alegre: Artes Médicas.

 

Winnicott, D. W. (1982). A criança e seu mundo. Rio de Janeiro: Zahar.