A FALA E A ESCUTA: INTERVENÇÕES PSICOPEDAGÓGICAS NAS EMPRESAS

 Suely Fermon de Morais Oliveira

RESUMO

O presente trabalho é o relato de três experiências com grupos de profissionais na área de segurança do trabalho de diversos segmentos empresariais − siderúrgico, portuário, elétrico, calçadista, construção civil, agropecuário e hospitalar −, ocorridas no período de agosto de 2010 a agosto de 2011, que, em seu processo de formação continuada e pela exigência do mercado de trabalho, sentiram a necessidade de mais qualificação. Na condução do primeiro módulo de cada turma do curso de ASSESSOR TÉCNICO PARA BRIGADA DE INCÊNDIO, com a disciplina de Didática Aplicada, trabalhamos os postulados teóricos que fundamentam a Didática, redirecionando a prática ao exercício da fala e da escuta na visão da Psicopedagogia, ações prioritárias na consecução da rotina de trabalho destes profissionais. Como multiplicadores das normas de segurança e mantenedores do risco zero nas empresas em que atuam, perceberam o quanto esses recursos são imprescindíveis e o quanto falhavam negligenciando ambas as ações, muitas vezes, bloqueando o canal da comunicação por falta de preparo técnico ou por motivos pessoais, como preconceitos, arquétipos preestabelecidos ou resistências a mudanças. Com a simulação de eventos de acidentes de trabalho, os grupos vivenciaram como a fala e a escuta podem inferir significativamente na manutenção da segurança de toda a empresa, garantindo a produção, assegurando a saúde e o bem-estar coletivo e mantendo o desenvolvimento das ações corporativas.

PALAVRAS-CHAVE: Segurança do trabalho. Comunicação. Psicopedagogia.

INTRODUÇÃO

Ao convite de ministrar aulas de Didática Aplicada a profissionais da área de Segurança do Trabalho, entre engenheiros e técnicos de ambos os sexos, desenvolvemos um projeto de ação onde embasamos os grupos teoricamente nos aspectos histórico e conceitual da Didática, aliando a essa teoria uma prática inovadora, tomando por base a intervenção psicopedagógica nas empresas, atendendo à demanda do curso para trabalhar a comunicação, exercitando, de forma vivencial, através de simulações de acidentes de trabalho, a fala e a escuta.

O primeiro grupo era composto por 40 pessoas. O período de atuação com ele foi agosto de 2010, durante quatro sábados, compreendendo uma carga horária de 30h. O segundo grupo continha 28 pessoas, trabalhado em fevereiro de 2011; e o terceiro grupo, com 25 pessoas, em agosto de 2011. Em sua maioria, alunos formados pelo SENAI ou CEFET, já inseridos no mercado de trabalho, ressaltando-se a exigibilidade de as empresas no setor de serviços de produção ter em seu quadro funcional o profissional de Técnico de Segurança do trabalho.

A demanda do curso para o convite ao nosso trabalho foi motivada pela observância e oitiva dos próprios técnicos ou das empresas onde trabalham sobre as falhas de comunicação, que podem causar acidentes e que eram frequentemente apontadas no levantamento das causas da ocorrência. "A partir do momento em que o sujeito histórico se submete à legalidade das ações regulamentadas pelo meio em que vive, está sempre em processo de construção do conhecimento." ( LIMA, 2005, p. 28).

Tomando por base o entendimento do ser cognoscente como objeto de pesquisas da Psicopedagogia, avaliando o processo de desenvolvimento da linguagem e das relações com o conhecimento que esses profissionais fazem circular em seu meio, a capacidade de mediar as informações e a compreensão que eles têm de hierarquização de saberes, construímos uma proposta de ação reflexiva, em que eles pudessem ouvir a si mesmos, inferindo, questionando, negando e pontuando em suas falas novos elementos que pudessem somar ao grupo a sua contribuição e percepção pessoal da parte no todo.

Os instrumentos psicológicos que fazem a mediação entre o indivíduo e o mundo são fornecidos pelo grupo cultural no qual ele se desenvolve, sendo a linguagem o sistema simbólico básico de todos os grupos humanos. (LIMA, 2005, p. 25)

A Didática tem sua origem a partir do século XII, com a palavra grega thecné didaktiké, que significa "técnica ou arte de ensinar" numa perspectiva multifuncional: técnica, humana ou política. Sendo ENSINAR um verbo transitivo direto e indireto, perguntamos: ensinar O QUÊ? Ensinar A QUEM? Portanto, munidos do objeto da Didática, que é o ensino, pontuamos o nosso trabalho na busca de uma transformação do sujeito aprendiz, tornando-o diferente, mais capaz e confiante nessa via de mão dupla de quem ensina e aprende, concomitantemente, dando ênfase à fala e à escuta.

Como multiplicadores de normas de segurança, era necessário exercitar componentes que otimizassem a capacidade de fala, aprimorando a linguagem ao contexto adequado, já que é uma função que transita do operário ao diretor executivo, apresentando ideias flexíveis, objetivas e claras no fluxo de informações entre os diversos setores da empresa. Entretanto, era importante também exercitar a escuta, ação que era preterida na maior parte dos relatos, dadas as circunstâncias imediatistas com que tinham que tomar decisões. O relato geral entre os participantes mostra que, em alguns casos, de vez em quando, surgia uma postura distorcida na visão do técnico de segurança, como se somente ele estivesse munido das competências e habilidades necessárias à manutenção do risco zero.

Esse profissional é de fato, o único a sair da empresa para cursos de atualização em NR (Normas Regulamentadoras de Segurança e Saúde no Trabalho), emitidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil. Todavia, a "detenção" destas informações era provisória, até o momento de repassá-las a todos os setores da empresa. Para tanto, não somente a fala, mas a escuta era imprescindível para que a troca de conhecimentos se estabelecesse de forma produtiva. Ao ensinar, era preciso também aprender, reestruturar saberes já assimilados para novas acomodações se sucederem.

[...] o sujeito se constitui ensinante quando investe o outro de desejo, criando espaço de liberdade, confiança e criatividade, onde o outro possa ousar experimentar na busca do conhecimento. O sujeito constitui-se um aprendente quando é capaz de compartilhar, tem liberdade para experimentar, criar e expressar-se, assumindo, assim, sua autoria de pensamento. (LIMA, 2005, p. 23)

Desta forma, viabilizamos situações de simulação de sinistro em que eles pudessem experimentar outros papéis, simbolicamente, não como técnicos que eram mas papéis de operários, de assistentes administrativos e até de diretores da empresa, para perceberem entre si em que poderiam estar cometendo falhas ou equívocos mais sérios.

METODOLOGIA

No intento de trazer para o grupo uma proposta diferenciada e atrativa, buscamos trabalhar com as condições necessárias à autoria de pensamento: liberdade, autonomia e criatividade (LIMA, 2005), oportunizando a simulação de sinistros em que a atuação de cada um tem uma representação significativa.

Com os recursos de mídia e exposições orais na parte introdutória, conceituamos e contextualizamos a Didática, mostrando a importância de seu uso para uma comunicação eficaz. Por se tratar de um público que está inserido em empresas de segmentos variados, elucidamos os conteúdos acerca do marketing pessoal, da postura dentro da empresa em eventos com colegas, do uso de e-mails pessoais e institucionais, etiqueta verbal, vestuário e comportamentos indevidos de um modo geral, fazendo-os compreenderem que todos esses aspectos podem interferir na circularidade de uma boa comunicação dentro da empresa.

Através das simulações de acidentes de trabalho, o grupo foi dividido em quatro grupos menores onde deveriam decidir que tipo de empresa seriam, quais os funcionários envolvidos na cena e apresentar um acidente de trabalho que poderia ter sido evitado, se não tivesse ocorrido uma falha de comunicação de ordem técnica, gerencial ou pessoal.

Como alguns dos participantes vinham do interior e em carros da própria empresa, dispunham de alguns objetos de trabalho, como ferramentas ou EPI (Equipamento de proteção individual), o que enriqueceu bastante a simulação. A cada apresentação, evidenciavam-se claramente como as falhas de comunicação poderiam ser decisivas na prevenção ou redução de danos. Os demais grupos apenas assistiam sem qualquer interferência. Num momento posterior, eram socializadas as observações e levantadas hipóteses para que o sinistro fosse evitado.

RESULTADOS

Ao final de todas as apresentações, embora em grupos marcados pela heterogeneidade, quase em uníssono, foi possível perceber que essas simulações fizeram-nos atingir o objetivo proposto para a atividade, que era identificar as falhas de comunicação perante um acidente de trabalho, reconhecendo-se como sujeitos responsáveis por cada ação vivenciada.

Em seus depoimentos, relataram que "nunca tinham pensado dessa forma", por terem-se permitido experimentar a vivência num outro papel simbólico na empresa, sendo na função de delegadores ou na de delegados. Concordaram entre si que, de fato, em algumas ocasiões, podem ter sido egocêntricos, intolerantes, repulsivos à fala do outro, enfim, puderam enxergar elementos indesejáveis em suas condutas, de modo a funcionarem como agentes bloqueadores ou inibidores de uma comunicação eficaz. Comentaram que se viram nitidamente como co-responsáveis não somente pela atribuição técnica do cargo que ocupavam, mas pela vida do outro e, sobretudo, pela construção de uma relação com seus pares, onde a fala e a escuta são igualmente valorosas e indispensáveis, tanto quanto suas ferramentas de trabalho.

Um bom espelho é aquele que apenas reflete, no seu dentro virtual, o real que está fora dele. O objetivo do jogo que se chama ciência é produzir redes de palavras que sejam a imagem especular do que está do lado de fora. A essa identidade entre coisa e imagem se dá o nome de verdade. (ALVES, 2001)

A escuta de todos os depoimentos despertou o desejo de mudanças no grupo como um todo. Esses foram momentos muito ricos, pois sempre, ao final da socialização das falas, partia do grupo a ideia de elaborarem conjuntamente alternativas para otimizar seu DDS (Diálogo Diário de Segurança), que são momentos, no início da jornada de trabalho, em que o técnico de segurança reune os operários do setor de produção e conduz uma orientação e revisão das normas, verificação do uso dos equipamentos e procedimentos emergenciais. No entanto, esse momento de DDS era rotineiro, cansativo e desinteressante, já não despertando a atenção dos operários, segundo diziam: "era sempre a mesma coisa todo dia". Após a análise das vivências e a observação das falhas, os próprios técnicos iam pontuando essa elaboração de novas alternativas, com sugestões, apresentação de dinâmicas, tendo surgido até um cordel no grupo, com as normas mais necessárias.

DISCUSSÃO

Entre os principais pontos elencados como fatores observados às falhas de comunicação. Ao discutirmos sobre cada item destes, ouvimos que a impulsividade estava relacionada à pressa que alguns tinham de tomar decisão sem tentar ouvir outra opinião; a intolerância foi mencionada para casos de, mesmo ouvindo um colega, não haver acolhimento a sua fala; o despreparo técnico se referia à falta de operacionalização na tomada de decisão (ingerência); a instabilidade emocional e o preconceito foram discutidos conjuntamente a partir de algumas colocações feitas sobre questões pessoais, com relação a colegas homoafetivos tanto em funções de operários como de diretoria, onde a ausência de uma postura imparcial e falta de elaboração de questões mais pessoais, nesse sentido, apareciam como obstáculos ao fluxo da comunicação dentro da empresa.

CONCLUSÕES

Concluímos com o desfecho das discussões que o grupo se autoavaliou, onde percebemos questões subjetivas que estavam presentes ao cotidiano da empresa, algumas mal conduzidas, mal elaboradas, requerendo, então, um cuidado e um agir especial. O despertamento e a sensibilização a essas questões foi permeando a nossa intervenção de forma natural, leve e aceitável, dadas as boas condições vinculares criadas no grupo e no transcorrer das atividades.

A objetividade instaura a realidade, isto é, aquilo que nós consideramos real, que está fora de nós, cujas leis não podemos modificar. Podemos repensar, mas não as podemos anular. Por outro lado, o subjetivo se instaura na irregularidade, se constitui na esfera do desejo e é o que nos diferencia como pessoa singular. O desejo é algo que falta; não existe na realidade. Para que haja desejo, tem que haver falta. Assim, o desejo se instaura em uma irrealidade. A realidade não é somente a realidade deste momento, mas também a realidade do que é possível. Portanto, o pensamento é o pensamento do que eu projeto como possível, dentro da realidade. Na ordem do desejo, ao contrário, o que se pensa é o impossível. (PAIN, 2009, p. 19)

O ato de rever alguns posicionamentos, repensar condutas e projetar para o futuro a adoção de um novo comportamento na empresa, cônscios de seu papel social e desejosos de um processo contínuo de formação e renovação, fez da polifonia do grupo um único propósito, onde concluímos que a intervenção foi exitosa e as demandas iniciais atendidas.

REFERÊNCIAS

ALVES, Rubem. Lições de Feitiçaria. São Paulo: Edições Loyola, 2001.

COSTA, Marília M. Psicopedagogia empresarial. Rio de Janeiro: WAK Editora, 2009.

FAGALI, Eloisa Quadros; VALE, Zélia Del Rio do. Psicopedagogia institucional aplicada. 7. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

LIMA, Taís. Cartograma da autoria do pensamento: intervenção psicopedagógica com professores. 1. ed. Sâo Paulo: Vetor, 2005.

NOGUEIRA, Nilbo R. Pedagogia dos projetos: uma jornada interdisciplinar rumo ao desenvolvimento das múltiplas inteligências. 7. ed. São Paulo: Érica, 2007..

PAIN, Sara. Subjetividade e objetividade: relação entre desejo e conhecimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

SOARES, Dulce. A empresa que aprende: atuação estratégica da psicopedagogia nas organizações empresariais. 1. ed. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2010.