A CIDADE DE DEUS E O CÍRCULO VICIOSO DA VIOLÊNCIA SIMBÓLICA.




Pessoas maltrapilhas chegando com seus míseros e mínimos pertences, com suas tradições e valores, vindas de uma situação drástica para uma realidade cruel. É com esse cenário que começo a discussão sobre o espaço da Cidade de Deus e de algumas questões que estão no filme envolvidas, levando em consideração as relações de poder ali estabelecidas: Dominantes, dominados e o papel do Estado.
Por causa das enchentes de 1966 e alguns incêndios criminosos ocorridos em algumas favelas da cidade do Rio de Janeiro, tendo como conseqüência um número elevado de desabrigados, situação que ia de encontro a uma visão oficial de remoção de favelas como uma maneira "rápida, imediata e urgente" de se resolver esses problemas, as autoridades agiam o mais rápido possível, como disse o personagem Buscapé: "As autoridades não pensavam duas vezes: não tem onde morar manda pra Cidade de Deus. Sem luz, sem água, sem transporte, sem asfalto e sem esgoto a multidão não parava de chegar e assim, o governo dos ricos afastava os pobres do cartão postal do Rio de Janeiro".
Neste contexto, já está estabelecido o poder de violência simbólica exercido pelos grupos ou classes detentores do poder político, pois quem não aceitasse essas condições correria o sério risco de ficar ao relento, pois o Estado estava proporcionando essa oportunidade para essas pessoas terem a oportunidade de melhorar suas condições de vida, bem melhores que as condições de outrora e diante também da situação em que se encontravam não tinham condições alguma de se escolher uma outra alternativa porque seria um ato de insanidade recusar as benesses de que o governo e seus burocratas estavam oferecendo e diante de tudo foi vendida a idéia que todos iriam encontrar o paraíso aqui na terra, representado na figura da Cidade de Deus e diante da situação de baixa auto-estima e de miséria absoluta não existia mesmo escolha.
Esse processo de coação psicológica de certo modo, encobria todo um plano bem maior de se incutir nessa população uma representação de uma mácula dentro dessa sociedade sectária e que desqualificados não deveriam participar dela, cabendo às autoridades a tomada de ações fortes para possibilitar o afastamento dessas comunidades e toda espécie de representação emanada por elas que se contrastava com a realidade burguesa dos detentores do poder político e cultural, e esse poder arbitrário exercido seria legítimo, pois toda a estrutura montada nesse mundo político foi toda ela pensada para amparar e manter todos os interesses desse grupo privilegiado e que todas essas ações deveriam vir em forma de pseudo-investimentos sociais que demonstrassem a grandeza administrativa e a preocupação de inclusão de todos em um único objetivo: O bem-estar social. A CDD, em si é o fruto de todo esse processo, a imposição para que as pessoas se deslocassem para um local longínquo e sem estrutura, aceitando todas essas condições sem nenhum tipo de contestação, pois já havia se construído todo processo de idealização e conformação, tornados legítimos porque foram naturalmente absorvidos, pois também existiu um poder cultural disciplinador para o sucesso da implantação desse projeto de pseudo-inclinação social, com objetivos ocultos e bastante amplos de separação social dentro de grotões oficiais de miséria, e enxergando as coisas dessa forma a CDD é uma personificação, um símbolo de todo esse poder de violência simbólica e de uso dessa força simbólica, como um reflexo de toda uma gama de circunstâncias históricas e culturais que permanece entranhada nesse imaginário social.
No entanto a constatação de que o paraíso teria se transformado em um imenso inferno não demorou a ser percebida naquele local ermo e sem condições elementares de sobrevivência e a falta de perspectivas transformou a violência em uma rotina e essa rotina transformou-se em sinônimo do mal, de um perigo representado para toda a sociedade.
O único resquício do estado ali representado era a polícia com seu papel exclusivamente repressor, dentro de um quadro de ditadura militar, tornando as suas funções mais suspeitas ainda, onde um perfil ético e econômico era sempre suspeito, levando-se em conta a supremacia negra, nordestina e de pobres na comunidade - suspeitíssimos para os policiais - o poder de coação estava o tempo todo presente fisicamente ou não, sendo a disciplina imposta pelos agentes à população sob o risco de represarias também violentíssimas contra ela. A utilização do advento da segurança pública como forma de contenção popular também é muito usada para manutenção de benefício e privilégios em cima da desgraça alheia, o diálogo entre o delegado e o policial resume bem o grau da força simbólica: Delegado: "-meu negócio é passar o rodo." Policial: "-Até quando roubar preto e ladrão é crime?" e assim agiam primeiro atirando pra depois checar o indivíduo, pois eram todos suspeitos dentro daquele espaço social e as referências relacionadas a ele, a esse espaço, eram todas construídas dentro de um altíssimo grau de maniqueísmo, onde as representações explicitavam totalmente o grau de rejeição o qual as sociedades detentoras de maior capital cultural e econômico repudiavam e taxavam totalmente os "habitus" do cidadão característico daquele local como a de um criminoso em potencial, violento e ignorante, sendo social e fisicamente inferior, portanto esses representantes desse "Estado dos ricos" faziam questão em manter e impor a sua autoridade constantemente, não abriam mão disso porque se beneficiavam e de certa forma a manutenção daquela realidade também os interessavam muito e acima de tudo, tinham o reconhecimento das classes ou grupos dominantes.
Dadinho ou Zé pequeno, como queiram chamá-lo é o reflexo de toda essa situação violenta, não significa uma reação contra a realidade imposta pela sociedade preconceituosa ele é nada mais nada menos um produto de toda essa parafernália construída com o único objetivo de contenção, de manutenção dessa distância e desigualdade sociais: viciado, violentíssimo, desumano, analfabeto e covarde, a violência extrema é a única arma que sabe utilizar, guarda dentro de si todo ódio que a sua vida lhe proporcionou, porém é conveniente com o sistema que aprisiona e também contribui para a sua manutenção pagando altas propinas para os policiais não o importunarem e o deixarem trabalhar com toda a tranqüilidade, é obcecado em tomar todos os pontos de venda de droga, sem pudor algum se tivesse de assassinar alguns dos seus rivais, seus cordões de ouro, guias de santo, exibição de armas de grosso calibre o faz personificar a figura dessa violência simbólica, sendo o seu parceiro Bené, também traficante e colaborador e também um beneficiado de toda essa realidade cruel, porém muito mais maleável do que o Zé pequeno, tem perspectivas na vida do crime menos pretensiosa, contudo igualmente alienado busca se adequar esteticamente aos valores da juventude classe-média (vestuário, cabelos pintados, tênis de marca), diferenciando-se daquele universo de pessoas mal-cheirosas, banguelas, sujas e mal-vestidas que convivia na boca de fumo e logo após arrumar uma namorada branca, tenta se desprender daquela realidade horrível, mas sem um poder de contestação e sim o da adequação aos valores culturais estabelecidos pela sociedade burguesa.
Essa hegemonia territorial à base da força só foi quebrada pelo Mané Galinha, possuidor de valores morais inculcados em seus" habitus" devido a uma possivelmente forte estruturação familiar, objetivava melhora nas condições de vida através da educação e do trabalho honesto, extremamente sociável, tinha noção daquela realidade dentro daquele espaço e o que tudo aquilo representava de ruim para os moradores, sair da comunidade representava automaticamente uma melhora substancial de vida e após o Zé pequeno lhe proporcionar uma série de humilhações, de ter estuprado a sua noiva e de ter matado alguns elementos de sua família, decide se vingar e ao buscar vingança enveredando para o crime organizado, recebe o apoio de boa parte da população: "Parece que de repente a CDD tinha encontrado um herói.", pois ele poderia representar uma segurança que não existia para eles, onde pudessem encontrar um caminho para uma paz e dignidade almejada, contudo essa obsessão particular transformou-se em uma espécie de conflito generalizado, onde os valores sociais outrora sempre arruinados deterioraram-se ainda mais e o espaço social simbólico cada vez mais entranhado e representado como sinônimo de barbárie, carnificina, onde os valores morais nunca existiram, onde a violência se espalhara de forma epidêmica e várias crianças e adolescentes por motivos banais se alistaram nas quadrilhas onde "matar, roubar e ser respeitado." ou "não sou criança, eu fumo, eu cheiro, já matei e roubei... sou sujeito homem.", transpareciam cada vez mais como acontecimentos banais e consequentemente o poder de força, de repressão deveria ser progressivamente aumentado para que a força do Estado seja sempre imposta e por ela seja mantida sempre a ordem e segurança dos "cidadãos.", e definitivamente a favela consolidou-se na opinião pública como reduto de bandidos e de local de alta periculosidade.
Interessante ver que durante as cenas de violência a miséria é explicitada e ao mesmo tempo fica em segundo plano na visão dos expectadores diante do caos representado pela guerra entre quadrilhas organizadas, a todo o momento temos imagens de cachorros leprosos com osso de galinha na boca em vielas, ruas ou becos tomados por esgoto, onde tábuas são as únicas formas de locomoção proporcionada aos pedestres, muito lixo jogado e uma infinidade de casas mal-acabadas e amontoadas com uma infinidade de pessoas circulando exercendo alguma atividade que possibilitasse algum rendimento: são vendedores de suco, catadores de lixo, amoladores de faca, vendedores de panela, enfim uma multidão de desesperados tentando sobreviver dentro desse espaço marcado pela violência e da falta de perspectivas e temperado pelo descaso das autoridades. A miséria é o grande tema do filme, é a sentença dada aos moradores e todas as ações giram em torno dela, a violência é o reflexo maior disso tudo, é a ferramenta utilizada pelos dois lados envolvidos nesse espaço social: os grupos ou classes dominantes, com objetivo de manter aquele número de pessoas ali afastadas de seu universo social impondo uma realidade nefasta e contribuindo para uma modelação desse espaço como algo a ser evitado porque contraria todos os objetivos estabelecidos e porque também se distancia de todos os padrões e normas legais de boas condutas, estigmatizando todo aquele universo considerado marginal, portanto o uso indiscriminado da força dentro daquele lugar torna-se amplamente justificável e largamente utilizado sem o menor pudor na sua utilização, pois as pessoas vivem à margem de todo o processo civilizatório e formas de organização dessa sociedade dominante e se diferenciam de uma forma opressiva, enorme e desigual, trabalhando essas classes dominantes e seus representantes legais para as imposições dos seus signos culturais e econômicos, porém ao mesmo tempo alijando-os de todo esse processo, desqualificando-os, limitando-os a cidadãos de segunda classe quando essa população é "julgada e condenada" a viver restrita dentro desse território e bastante distante do cartão-postal da cidade que eles pretendem construir única e exclusivamente para eles mesmos. Quanto à população dominada resta a apenas reproduzir essas condições limitativas impostas, não existe uma consciência realmente crítica dessa coletividade e nem maneiras de organização para tentar contorná-las, existe sim, uma aceitação dessa doutrinação coercitiva e essa força é aplicada com sucesso em todos os instantes, e até o crime que na primeira fase é quase uma forma romântica e assistencialista como resultado de um local onde o Estado permanece completamente ausente em seus deveres e obrigações para com àquela comunidade, essas ações também podem ser enquadradas como forma de manutenção daquela condição extrema que foi imposta, pois obrigatoriamente justificará a utilização de todo o aparato repressivo e suas formas de utilização dentro daquele contexto onde suas significações foram empurradas à força e também aumentará os benefícios que esses representantes da força oficial obtêm, extraindo status e poder da pobreza extrema e da desgraça social, necessariamente tornando-se necessário que a ordem vigente se perpetue, e esse enorme monstro delineadamente construído se transforme em circulo vicioso. Uma possível luta de classes realmente não fica evidenciada no filme e nem um processo de desalienação e conscientização dessas massas, existe a demarcação de um espaço social e a imposição das formas de relação que ali será estabelecido, sendo o poder de coação largamente utilizado tanto na implantação como na manutenção, transformando de fato essa dominação em um direito em uma significação legítima e onde as imposições arbitrárias de um grupo se darão sobre o outro, uma relação de dominantes e dominados, porém nunca necessariamente uma relação de lutas, de choque entre esses grupos ou classes envolvidos nesse contexto, onde a construção e imposição de teorias justificadoras disso tudo somadas irão mais uma vez citando, representar uma presença física de coação.
Tentarei a partir de agora fazer uma breve discussão a respeito das relações estabelecidas no filme dentro de uma ótica voltada para uma perspectiva educacional, sendo o questionamento das funções da educação, o que isso representaria nessas relações e qual seria e o que é de fato a finalidade real de uma estruturação oficial educacional numa visão de abismos entre classes ou grupos dentro de uma representação imposta.
Uma vez ao passar nas proximidades do Complexo do Alemão, observei uma frase que estava grafitada em um muro na qual dizia assim:" ONDE O ESTADO SE TORNA AUSENTE O TRÁFICO SE FAZ PRESENTE." Gostaria de levar essa frase para dentro dessa breve discussão e levantar um questionamento: O que é função do Estado em um quadro de representações e interesses onde o perfil oficial é a dos que se apoderaram dessa máquina? E o que é o tráfico sendo ele um reflexo desse assalto de poder?
Do princípio do filme onde o desprezo governamental é imposto em forma de proselitismo social representado em uma demarcação espacial com fins de isolamento até o fim onde crianças brutais e desprovidas de sua condição de crianças, apontam para um redimensionamento do crime vindo esse a tornar-se ainda mais cruel e organizado impondo ações ilimitadas e métodos de todo e qualquer tipo, a educação transparece a realidade histórica da educação pública no Brasil de estar sempre em segundo plano, sendo o objetivo maior isolar um grupo como se isolasse um vírus causador de uma doença. Tirando a presença de alguns adolescentes e algumas crianças uniformizadas, a impressão que se tem é que o índice de matriculados nas escolas é muito baixo.
Não sei se o conceito de anomia social (mesmo sendo uma) fosse adequado par se aplicar quando o desequilíbrio é o objetivo planejado para a manutenção de uma situação que é cercada de simbolismos que formam estágios e se sucedem formando um único motivo coerente: O maniqueísmo social e tudo que ele representa culturalmente e economicamente falando; as ações governamentais não visam o equilíbrio social, a coerção estatal se distorce e torna-se repressão policial e valores morais (que são arbitrários) oriundos de uma estrutura familiar entram em colapso devido à presença de uma violência física e também simbólica, os únicos exemplos que são apresentados são as famílias do Mané galinha e do Buscapé, mas também sofrem uma intervenção trágica em ambos os casos.
Crianças vagueiam pelas vielas da favela livres e desimpedidas, roubando, utilizando drogas e promovendo arruaças sem nenhum resquício de presença familiar ou preocupação escolar; sujas e mal tratadas personificadas dentro da visão que uma sociedade de exclusão traçou como características de "criança de favela" e estando elas dentro dessa condição ficam vulneráveis aos encantos de exemplos mais próximos que podem ter de respeito e autoridade: os traficantes. Caminhando para a manutenção do círculo vicioso da violência simbólica. Buscapé e Mane Galinha devido talvez a uma presença maior da autoridade familiar, são os únicos que parecem acreditar num sucesso pessoal através de um melhor grau de instrução tendo destino distintos e tortuosos tendo o primeiro a ter se saído melhor que o segundo e conseguido manter-se fiel aos princípios morais, apesar de não ter sofrido tantas tragédias e retaliações.
Na verdade, o papel de um Estado que abandona as maiores camadas da população em detrimento de uma minoria (que é a sua verdadeira representação) e que se estrutura para manter esse enorme fosso é contraditório nesta grande questão: Por que se trabalha para manterem-se as enormes diferenças então qual seria o objetivo de um profundo e amplo projeto educacional voltado para as massas? De onde viriam os educadores e como seriam desenvolvidos esses projetos educacionais, levando-se em consideração o indigente grau de instrução da maioria dessa população e a grande restrição de oportunidades que lhes são proporcionados?
A escola torna-se alegórica e fictícia, pois os objetivos de integração e universalização são encobertos pelo interesse oficial de manter a conformação, adequação ao sistema e disciplinação aos valores e padrões estabelecidos por uma máquina social nefasta, sendo os que se beneficiam e se apoderam dela seus operadores, os que sempre lutam para se perpetuarem dentro dela.



REFERÊNCIA CINEMATOGRÁFICA:

CIDADE DE DEUS, brasileiro, 2002 ? diretor: Fernando Meirelles.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LINS, paulo. Cidade de Deus, Rio de Janeiro: Ed. Cia das Letras, 2002.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria da ação.in Espaço social e Espaço simbólico.Campinas,Sp: Ed. Papirus, 1996.pgs.13 - 33
Cunha, Luiz Antônio. Notas para uma leitura da teoria da violência simbólica: FGV. pgs.79 ? 99.
Tura, maria de lurdes rangel. sociologia para educadores.Brasil:Ed.Quartet, 1987.