Heráclito e a filosofia do devir.

O filósofo pré-socrático Heráclito descendeu de Androcles, fundador de Éfeso, recusando posteriormente o governo da cidade para dedicar-se exclusivamente à reflexão filosófica. Heráclito caracterizava-se por seu temperamento altivo e solitário, e desprezo em relação à religião do vulgo. Heráclito é considerado o pai de todos os filósofos do devir, ou da mudança.
Segundo Heráclito, o que existe não é o ser, mas o não-ser, ou o devir, pois nenhuma realidade há, a não ser a mudança. Este princípio do não-ser é, que evidencia-se pelos dados imediatos dos sentidos, é consagrado pelo pensamento heraclitiano, pelas expressões: "tudo marcha", "tudo flui", "não há nada fixo". O universo, nas palavras atribuídas à Heráclito, é como um grande rio, no qual ninguém pode banhar-se duas vezes neste mesmo rio, pois todas as coisas estão sob constante mutação.
Diante deste princípio da filosofia de Heráclito, surge o dilema, segundo o qual, admitir o ser, é tornar impossível a mudança, porque o que está sujeito a mudança, não poder vir nem do não-ser, tampouco do ser, o que leva Heráclito a posicionar em favor dos dados dos sentidos, rejeitando a idéia de ser, admitindo somente a mudança. Se todas as coisas estão sob transformação, então, todas as coisas, não obstante a aparente diversidade dos fenômenos são estruturalmente idênticas, o que leva a implicação do monismo na filosofia de Heráclito. Semelhantemente a todos os chamados pré-socráticos, Heráclito defendia como elemento primordial do cosmos, o fogo, elemento ao mesmo tempo mais sutil e mais ativo, caracterizado pela sua mobilidade incessante.
Por mediação do fogo primordial, Heráclito pretende explicar todas as coisas. Por uma espécie de evolução, o fogo se transformava em ar, o ar em água, a água em terra, e ao mesmo tempo por um movimento inverso, a terra se transformava em água, a água em ar, e o ar em fogo. Todas as coisas do universo, tanto os seres individuais, como os diversos mundos, estão sujeitos a esta lei determinada, as quais reduzem-se a unidade para se expandirem na multiplicidade, que a evolução levará novamente à unidade. Esta evolução reporta-se a todos os acontecimentos, não somente do mundo da natureza, mas também na vida humana e social; esta guerra cria a própria sociedade pela sua oposição. A sucessão indefinida de mortes aparentes as quais são outros nascimentos, movimentos para cima e para baixo, segundo um logos interior feito de equivalência e de compensações.
O logos , ou princípio racional do cosmos, na natureza, ou no devir, é considerado por Heráclito, o fogo divino vivo e primordial. É o princípio soberano, impessoal e imanente do mundo, e uma fonte que sempre jorra a vida. Todas as coisas que se manifestam no mundo têm caráter divino, constituindo o próprio mundo, uma pequena parcela deste fogo divino. No tocante a alma humana, a qual é centelha do fogo primordial universal, possui apenas uma imortalidade impessoal, a qual emana do logos e para o logos tornará. Tal concepção Heráclitiana parece implicar na primeira forma de panteísmo na história da filosofia ocidental.
Heráclito, ao levar às ultimas conseqüências o princípio da mudança, afirma que o que é, enquanto que é, não é, pelo motivo do devir, o que o faz negar o principio de identidade e, por conseguinte o intelecto. O logos, é a própria contradição, e identidade dos contrários, cuja representação é a imagem da guerra. Para Heráclito, mergulha-se e não se mergulha no mesmo rio; existe-se e não se existe; a água do mar é a mais salobra e a mais pura; o bem e mal são o mesmo. Neste sentido Heráclito nega a existência de substância , e concebe sua evolução das coisas sob a cega direção do acaso, sem finalidade nem propósito.



Parmênides e a filosofia do ser

Parmênides de Eléia, (530 - 444), semelhantemente a Heráclito, mas na essência de seu pensamento, posicionando de forma diametralmente oposta, fixa seu princípio fundamental, e desenvolve todas as suas conseqüências.
Para Parmênides a realidade é o ser e somente o ser. Tudo depende do ser ou não- ser. O não-ser não existe e de forma alguma pode vir a existir, logo, só o ser pode existir. O princípio fundamental para Parmênides é a afirmação do objeto próprio do intelecto e da objetividade do seu valor, este princípio é o princípio maior que orienta todo o conhecimento possível, a saber, o de identidade e de não-contradição. Diferentemente do anti-intelectualismo de Heráclito, o qual nega a inteligência em favor dos dados dos sentidos, Parmênides afirma que o ser existe, e o não-ser não existe, e tal pensamento é tão necessário que não se pode sair dele.
Parmênides entra para a história da filosofia como o filósofo relacionado ao método a priori, o qual é simplesmente intelectual, e ao desprezar o valor dos dados dos sentidos, deduz cinco conseqüências principais.
A primeira é o absoluto. O ser é eterno, imóvel, sem principio nem fim. De outra forma, caso tivesse um princípio, viria ou do ser ou do não-ser, e como do não-ser nada pode vir, da mesma forma que e o que existe não pode vir do que já existe. Logo a mudança constada por nossos sentidos é impossível e o ser tem de existir de forma absoluta e eterna.
A segunda conseqüência é a unidade. Para Parmênides, o ser ou a realidade é única, indivisível e também homogênea. Pela necessidade lógica de não existir fora do ser coisa alguma, que não pertença a realidade, não é possível encontrar meio algum, para que haja a multiplicação dos seres, ou mesmo a distinção entre os seres, portanto para Parmênides o ser é igual e único em todos os seus aspectos.
A terceira conseqüência é a verdade. Para Parmênides o ser é verdade e pensamento, pois o pensamento é o mesmo que o ser. O pensamento, portanto, identifica-se com o próprio objeto do pensamento. E não é possível pensar de forma diferente, pelo que fora do ser nada existe que possa ser chamado de real. Segundo Parmênides, se o pensamento e a verdade são coisas reais, partindo-se da premissa de que o não-ser não é, mas tudo é ser, portanto, verdade e pensamento são o mesmo que o ser.
Finalmente o ser ou a realidade em sua natureza é plenamente perfeito. O ser possui em si de forma imutável e indestrutível todas as coisas da realidade, e se é assim, possui todas as perfeições.
O cosmos para Parmênides é material, extenso, e é o ser único , eterno e também imóvel. O ser é uno e o todo, no qual não é possível geração, nem movimento algum tampouco multiplicidade. Os dados dos sentidos são meras ilusões sob a perspectiva da ciência, não obstante ser útil na vida cotidiana.


A solução Aristotélica para a aporia de Heráclito e Parmênides

Para Aristóteles, todas as coisas são em potência e ato. Alguma coisa em potência , sempre tende a ser outra, como a semente que potencialmente, é uma árvore. Quando alguma coisa está em ato, está realizada em sua natureza, como por exemplo, a árvore que é semente no estado de potência. Escreve Aristóteles no livro V da Metafísica :

" Potência significa o principio do movimento ou da mudança existente em alguma coisa existente em alguma coisa distinta da coisa mudada, ou nela enquanto outra. Por exemplo, a arte da construção é uma potência que esta ausente na coisa construída...Desta maneira,(entende-se que), potencia significa o princípio em geral da mudança e do movimento numa outra coisa, ou na mesma coisa enquanto outra;"

Aristóteles com a as concepção de ato e potência deu cabo ao problema gerado pela antítese entre o ser é, e o não-ser é. Apesar as filosofias de Heráclito e Parmênides serem diferentes, ambos concebem o devir da mesma maneira, pois julgam que o fluxo dos seres, ou o movimento, se realiza como passagem de um ato a outro ato. A forma atual, para Aristóteles é a essência de um ser, portanto, supor que o devir seja mudança de ato em ato, é o mesmo que afirmar que a essência muda, tornando-se outra coisa, ou que o ser se torne o que ele não é, logo, o movimento, ou o devir, é a mudança de um ser no seu não-ser, ou a passagem do ser ao não-ser e do não-ser ao ser.
Segundo Aristóteles, se um ato se transformasse noutro ato, ou uma forma se transformasse noutra forma, haveria uma contradição, o que seria o mesmo que afirmar que A é A e NÃO-A, o que é um absurdo. A passagem, portanto, de forma alguma é feita de ato a ato ou de forma a forma, mas de potência a ato, sendo a potência aquilo que pertence à forma por sua relação com a matéria, é comparável com ela e não a destrói, mas a concretiza. Para o Areopagita, o devir é racional, pelo fato de seu núcleo, que é a potência e não a forma, como de maneira equivocada acreditaram e defenderam os filósofos pré-socráticos Heráclito e Parmênides. O devir, portanto, é causado pela matéria como potencialidade ou possibilidade de formas que se desenvolvem e se manifestam no tempo. A forma materializada é ato que conserva potência em seu interior.












Bibligrafia:

Thonnard, F.J. Compendio de história da filosofia. Sociedade São João Evangelista, 1953.
Chaui, Marilena.Introdução a história da filosofia, dos pré-socráticos à Aristóteles. Companhia das Letras, 2004.
Maritain, Jaques. Elementos de filosofia - introdução geral à filosofia. Agir,1994.