Funções da passiva:[1] Um estudo sobre o apagamento do agente da passiva na abordagem funcionalista

Benedito Arão Chicavele

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Resumo

O presente artigo tem por objetivo reflectir sobre as funções da voz passiva sob a perspectiva da teoria funcionalista, considerando aspectos pragmáticos, semânticos e sintáticos, a análise será feita a partir de uma notícia veiculada pela televisão Miramar, no programa Balanço Geral/Casos de Polícia, apresentado por Sérgio Sitoe. O caso que vai merecer a nossa atenção é de um jovem, Filipe, de 24 anos de idade, assassinada em Maputo no mês de Junho de 2016. Ao acompanharmos a reportagem as ocorrências da voz passiva referentes a esse caso, permitiram-nos perceber que é por meio do fluxo informacional dos textos que a construção da voz passiva traduz o uso real e contextualizado da língua. A semanticidade da transitividade verbal, torna a construção passiva mais compreensível. Isso porque a partir do momento em que o usuário da língua compreende o que é um verbo de acção, ele tem mais possibilidades de entender que nem sempre uma construção aparentemente de passiva pode ser considerada realmente uma passiva e, assim, usá-la com mais propriedade. Portanto, ao não enfatizar a questão do complemento agente ser introduzido pela preposição por, essa abordagem permite que se identifiquemos uma construção de passiva em que o apagamento do agente é proposital.

 

Palavras-chave: Voz passiva, agente da passiva, abordagem funcionalista

 

  1. Introdução

Os estudos feitos sobre a construção de voz passiva nas gramáticas tradicionais parecem descontextualizados em grande parte das gramáticas. O que pode estar associado ao facto de esses compêndios considerarem a língua como um código fechado e, por isso usarem frases descontextualizadas como unidade de análise, desconsiderando o carácter dinámico da língua em uso.

O presente artigo tem por objetivo reflectir sobre o tratamento dado às frases construídas no relato do caso de assassinato do Jovem Filipe de 24 anos de idade, em Maputo, para daí fundamentarmos a análise à luz do funcionalismo, que considera a construção da voz passiva a partir de domínios multifatoriais, ou seja das suas funções definidas por Givón (1981), nomeadamente topicalidade, impessoalidade e detransitividade.

Pretendemos neste artigo tratar das funções da voz passiva sob a perspectiva da teoria funcionalista, considerando aspectos pragmáticos, semânticos e sintáticos, a análise será feita a partir de uma notícia veiculada pela televisão Miramar, no programa Balanço Geral/Casos de Polícia, apresentado por Sérgio Sitoe.

O caso que vai merecer a nossa atenção é de um jovem, Filipe, de 24 anos de idade, assassinada em Maputo no mês de Junho de 2016.

Ao acompanharmos a reportagem as ocorrências da voz passiva referentes a esse caso, permitiram-nos perceber que é por meio do fluxo informacional dos textos que a construção da voz passiva traduz o uso real e contextualizado da língua.

 

2. Enquadramento Teórico

Neste artigo temos a pretensão de analisar a construção da voz passiva, com particular enfoque nas suas funções, sob a perspectiva da teoria funcionalista, considerando aspectos pragmáticos, semânticos e sintáticos, tendo como suporte a perspectiva sugerida por Givón (1981), que postula que por ser um conceito multifuncional a voz passiva envolve três domínios funcionais:

 Topicalidade: sujeito agente da frase activa deixa de ser o tópico, atribuindo-se essa função a um argumento não-agente, geralmente o paciente, também chamada de voz passiva pessoal. Ex: Pedro quebrou o vaso/O vaso foi quebrado por Pedro.

Impessoalidade: suprime-se a identidade\presença do sujeito\agente da sentença ativa. Ex: Quebrou-se o vaso. / O livro foi rasgado.

Detransitividade: a frase passiva torna-se semanticamente “menos activa”, menos transitiva, mais estativa. Ex: O pneu furou. / O copo quebrou.

Portanto, Givón (1981) ao estabelecer esta caracterização morfossintática das construções passivas mediante a combinação dessas três propriedades tinha como principal interesse a alegação de que essa caracterização é escalar, não exatamente discreta.

Sob ponto de vista da teoria funcionalista, a língua é um sistema dependente do contexto social, da actuação dos falantes em situações reais de comunicação. Com efeito, as estruturas sintácticas são decorrentes dos diferentes contextos de produção discursiva, neste caso, a voz passiva, nosso objecto de estudo.

Na maior parte dos estudos linguísticos, a oração activa é identificada como a estrutura sintáctica mais básica (prototípica), o padrão neutro. Por sua vez, a oração passiva é tratada como uma estrutura complexa, o padrão marcado (Cunha, 2000, p.108).

O princípio de marcação estabelece três critérios principais para a distribuição entre categorias marcadas de categorias não marcadas, em um contraste binário:

a) Complexidade estrutural: a estrutura marcada tende a ser mais complexa que a estrutura não-marcada correspondente;

b) Distribuição de frequência: a estrutura marcada tende a ser menos frequente do que a estrutura não-marcada correspondente; e

c) Complexidade cognitiva: a estrutura marcada tende a ser cognitivamente mais complexa do que a estrutura não marcada correspondente (Martelotta; Areas, 2003, p. 34).

Numa perspectiva funcional, a construção da voz verbal deve ser vista a partir de um olhar semântico-oracional e pragmático discursivo, portanto a construção passiva é definida como um domínio multifatorial e, por isso, sujeita a uma caracterização prototípica a partir da qual ganham contorno próprio (Camacho, 1999).

 

2.1. Revisão da literatura

Nesta secção propomo-nos a trazer resultados de alguns estudos feitos sobre a voz passiva. Assim, vale lembrarmos que apesar dos vários trabalhos efectuados sobre voz passiva não há um consenso entre os gramáticos em relação a sua definição. Em Bechara (2004), a definição não difere da tradicional, apesar de incluir entre os verbos que funcionam como auxiliares nessas construções, os verbos estar e ficar.

O autor sublinha a diferença entre passividade e voz passiva, em que aquela nem sempre corresponde a uma voz passiva, podendo estar na voz ativa se o verbo tiver sentido passivo, ex.: “Os criminosos receberam o castigo merecido.” (2004, p. 222). Ainda em Bechara (2004), a voz sintética é tratada como reflexiva quando a acção verbal reverte-se ao próprio agente (sentido reflexivo propriamente dito), quando atua reciprocamente entre mais de um agente (reflexivo recíproco), quando o sentido é de impessoalidade e quando o verbo é empregado em forma reflexiva propriamente dita.

O autor deixa lacunas ao não exemplificar cada uma das ocorrências da voz reflexiva apontadas por ele, o que torna difícil a compreensão.

 

Nesse sentido, Abreu (2006), por seu turno, afirma que uma construção activa somente poderá ser transformada em passiva se o sujeito for um agente, ou seja, requer um verbo de ação. O autor ressalta ainda que há construções análogas à voz passiva pronominal, as construções com verbos intransitivos, ex: “Anda-se muito de bicicleta em cidades planas”, nessa oração o agente experienciador é indeterminado, sendo apenas pressuposto.

Abreu (2006) explica que “como não há nenhum termo com que o verbo possa concordar, essas orações não têm sujeito” (Abreu, 2006, p. 120).

Moreno & Guedes (1986:103) são de opinião que “a frase passiva pode aparecer sem o agente da passiva por ser ele desconhecido, ou simplesmente por uma deliberada intenção de omiti-lo.”

Segundo Vilela, (1992:60)) “costuma-se falar da oposição «activa» «passiva», por um lado, e, por outro, da oposição «activa/passiva» – «reflexiva inerente».” O mesmo autor escreve ainda que na activa, dá-se a perspectivação do estado de coisas a partir da acção, na passiva com ser (ou passiva de processo), com a mudança do agente, apresenta-se o mesmo estado de coisas (que na activa), mas como um processo.

Há ainda a passiva de estado (com estar), em que se designa o estado resultante desse processo:

(1)

  1. Alguém guarda o preso.
  2. O preso é guardado por alguém.
  3. O preso está guardado por alguém.

A passiva de estado deve provir da passiva de processo. A passiva de estado que tenha como base a reflexiva inerente, como:

(2) a. O estudante arrepende-se por ter cabulado.

     b. O estudante está arrependido de ter cabulado.

Embora seja também (+ resultativo), não é passiva de estado, pois não houve destransitivização nem despersonalização. Acrescente-se ainda que a possibilidade de existência da passiva de processo nem sempre arrasta consigo a necessidade de existência da passiva de estado:

(3) a. Alguém admira a moça.

      b. A moça é admirada por alguém.

    c. O preso está guardado por alguém.  (Vilela, 1992, p. 60)

 Mateus et.al (2003) apresentam os seguintes exemplos para diferenciar frases activas das passivas:

  1. a) O Luís ofereceu um livro à Maria.

     b) O livro foi oferecido à Maria pelo Luís.

Os exemplos apresentados em (1) descrevem sensivelmente o mesmo tipo de situação e sucedem às mesmas condições de verdade. Desde a tradição gramatical greco-latina que se considera que a diferença entre (1a) e (1b) reside na diátese ou seja, no modo como é perspectivada a situação descrita pela frase: em (1a) tal situação é perspectivada a partir da entidade com o papel temático externo, enquanto em (1b) se perspectiva a situação descrita pela frase a partir da entidade com o papel temático interno (directo). No primeiro caso, a frase tem uma diátese activa e, no segundo, uma diátese passiva.

As formas de expressão da diátese passiva variam inter-intralinguisticamente. Assim, paralelamente a (1b), encontramos em português frases passivas como (2):

(2)   (a) Os artigos publicaram-se no último número da revista.

       (b) Os artigos estão publicados no último número da revista.

A construção passiva ilustrada por (1b) denomina-se passiva sintáctica ou perifrástica, a exemplificada em (2a) passiva de –se, e a ilustrada por (2b) passiva adjectival, resultativa ou de estado.  (Mateus et.al.,  2003, p. 521) 

A complexidade da passiva, do ponto de vista sintático, é explicada pela ordenação dos constituintes da oração, pois na construção passiva a ordem é mais comum (SVO), “em que sujeito e objeto [...] correspondem aos papéis semânticos de agente e paciente respectivamente” (Furtado da Cunha, 2000, p. 108).

É provável que a maior complexidade sintática da passiva, comparada à da activa, esteja associada a uma complexidade perceptual maior. Givón (1979, p. 87) chama a atenção para o facto de que “a surpresa comunicativa (isto é, a quebra da norma comunicativa, representada pela oração activa) se correlaciona diretamente com a dificuldade comunicativa, de modo que quanto mais surpreendente for uma construção, mais difícil será sua interpretação.”

A codificação perceptualmente mais saliente da passiva (uso do auxiliar ‘ser’ + verbo no particípio passado e agente introduzido por Sintagma Preposicionado) previne o leitor/ouvinte de que essa construção é um caso mais complexo, que não se ajusta às estratégias mais frequentes de interpretação.

Assim, se em português os SN’s agentes (sujeito e tópico) tendem a ocupar a posição inicial da oração e os SN’s pacientes (objeto) ocorrem mais frequentemente na posição pós-verbal, a estrutura de passiva afecta a correspondência entre os papéis semânticos e relações gramaticais, pois permite que o objeto de um verbo semanticamente transitivo passe para a posição de sujeito e tópico e, o agente é omitido ou apresentado num sintagma preposicionado (Furtado da Cunha, 2000).

 

3. Análise de dados

A análise vai centrar-se numa notícia veiculada no programa televisivo da Miramar que vai ao ar aos sábados denominado Balanço Geral – Casos de polícia. No referido programa relata-se o episódio do Filipe, um jovem que foi supostamente assassinado à facadas pelo seu primo.

A escolha deste episódio para o estudo justifica-se pelo facto de que se tratando de um caso criminal não é razoável mencionar o agente no âmbito da construção da passiva, uma vez que antes do julgamento em sede de tribunal há prevalece o princípio de presunção de inocência do agente.

Neste sentido, primeiro vamos estudar o caso funcional da topicalicade, seguindo-se a impessoalidade e finalmente a Detransitividade. Com efeito, no que se refere à topicalidade na notícia veiculada no programa Balanço Geral – casos de polícia, usou-se a voz passiva no domínio funcional da topicalidade, cuja pretensão era destacar o sujeito paciente.

 

Exemplo:

  1. a) Morte de um jovem de 24 anos é cercada de mistério em Maputo.

    b) Jovem de 24 anos foi assassinado.

Nos exemplos acima é notório o apagamento do agente da passiva. Este procedimento deve-se ao facto de não se dispor de informação completa sobre o caso. Deste modo, a voz passiva permite que a notícia se veicule sem que se corra o risco de apontar um agente de sem provas, o que pode comprometer, dada a presunção de inocência de eu todo o acusado goza, sobretudo antes de ser submetido ao julgamento em tribunal.

Para reforçar o nosso pensamento, convém evocarmos  a perspetiva de Camacho (1999) ao asseverar que “quanto mais tematicamente importante tendem os referentes tanto mais anaforicamente acessíveis e cataforicamente persistentes, isto é, quanto mais tópicos mais textualmente contínuos e recorrentes.”

 

Assim, no corpus analisado isso é comprovado, pois há um movimento circular do tópico:

 

  1. a) Uma morte misteriosa num bairro em Maputo, a vítima foi um jovem de 25 anos de idade, ele teria sido esfaqueado em plena via pública.

    b) O indiciado de assassinar o seu primo à facada foi neutralizado pela polícia.

    c) A polícia afirma que terá  examinado o corpo do jovem Filipe.

           d) Filipe terá perdido a vida no local do crime.

 

Nos exemplos a e c o tópico é o jovem, já no exemplo b  passa a ser o indiciado e depois volta a ser o Filipe, jovem assassinado,  isso prova o movimento circular da informação no fluxo do texto.

Relativamente à impessoalidade,como vimos que se suprime a identidade\presença do sujeito\agente da frase activa. podemos verificar a sua ocorrência nos exemplos:

3) “Polícia crê que Filipe foi esfaqueado

4) Um homem foi transferido do hospital da Moamba para o hospital provincial da Matola.

Os casos de impessoalidade na abordagem tradicional são tratados de forma superficial, pois não se explica o fenómeno da voz passiva com base na análise de textos. O que torna impossível, em alguns casos, o entendimento do sentido da frase.

Quando observado sua realização em frases, como no exemplo 3, percebemos a intencionalidade no uso da voz passiva com o apagamento do agente. No exemplo 4 vemos que a identificação do sujeito/agente diminui, há tendência de apagamento do sujeito.

E tal como assevera Vilela (1992:55) na despersonalização ou impessoalidade “a identificação do sujeito/agente fica diminuída.”

Finalmente passamos a analisar o caso da detransitividade que como escrevemos antes a frase passiva se torna semanticamente “menos activa”, menos transitiva, mais estativa.

Com efeito, não encontramos nas frases analisadas nenhum caso de detransitividade, isso talvez se deva ao facto de não haver possibilidade desse tipo de construção nas frases analisadas. Mesmo observando ocorrências como:

4) “Para a polícia a tela foi cortada

Não existe a possibilidade de se ter uma versão do exemplo 4, como: “A tela cortou-se”. Parece-nos que a detransitividade relaciona- se ao se ter um sujeito que é aparentemente agente, mas que pelo nosso conhecimento pragmático geral sabemos que existiu um instrumental e um agente, que podem exercer a mesma função como, por exemplo:

 “O prego furou o pneu da bicicleta.”

 Assim, podemos fazer fé às palavras de  Abreu (2006) quando escreve  que nem todas as construções activas possuem passivas correspondentes, isso porque para serem passivas as construções activas devem ser prototípicas, ou seja, aquelas em que o sujeito é sempre agente.

 

4. Considerações finais

A teoria funcionalista deu um grande contributo para uma concepção mais aprofundada sobre a voz passiva nos estudos linguísticos. O contributo a que nos referimos assenta essencialmente no facto de esta teoria ter em consideração os aspectos semântico-discursivos e pragmáticos em detrimento de ater-se apenas nos aspectos sintácticos ou estruturais.

A semanticidade da transitividade verbal, torna a construção passiva mais compreensível. Isso porque a partir do momento em que o usuário da língua compreende o que é um verbo de acção, ele tem mais possibilidades de entender que nem sempre uma construção aparentemente de passiva pode ser considerada realmente uma passiva e, assim, usá-la com mais propriedade.

Além disso, ao não enfatizar a questão do complemento agente ser introduzido pela preposição por, essa abordagem permite que se identifiquemos uma construção de passiva em que o apagamento do agente é proposital.

Portanto, a análise da construção da voz passiva na perspectiva frásica, num contexto específico, torna mais claro o entendimento dos motivos para a escolha dessa construção em detrimento da activa.

 

 

Referências Bibliográficas

 

ABREU, Antônio Suárez de. Gramática mínima: para o domínio da língua padrão. 2ª ed.  São Paulo: Ateliê. 2003.

BALANÇO Geral, Casos de Polícia. Reportagem transmitida pelo apresentador Sérgio Sitoe:. In TV Miramar. 02 de Julho de 2016.

CAMACHO, Roberto Gomes. Construções passivas e funções pragmáticas. In: Estudos Linguísticos. São Paulo: São Paulo, vol. 28, p. 410-416, 1999.

CUNHA, Maria Angélica Furtado. A complexidade da passiva e as implicações pedagógicas do seu uso. In: Linguaguem & Ensino, vol. 3, Nº 1, 2000, p. 107-116.

GIVÓN, T. On understanding grammar. New York: Academic Press, 1979.

MARTELOTTA, Mário Eduardo (orgs.). Linguística funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

MATEUS et.al. Gramática da Língua Portuguesa. 23ª edição. Lisboa. Editora Caminho. 2003.

MORENO, C. & GUEDES, P. C. Curso básico de redacção. São Paulo.  Ática, 1986

VILELA, Mário. Gramática de Valências: Teoria e Prática. Coimbra. Livraria Almedina. 1992.

 

[1] As funções da passiva, na perspectiva de   Givón (1981) são: topicalidade, impessoalidade e detransitividade.