Carnaval - Linda Morena

Na ruela calçada ao estilo “pé-de-moleque”, os restos do carnaval de ontem, retratavam a alegria a qualquer custo na noite anterior.

Um pouco abaixo do desnível do passeio, uma ‘havaiana’ solitária que, a despeito da propaganda, tinha uma das tiras solta e se sobrepunha a um caco de garrafa.

Nada além de confetes pisados, montes de arrebentadas serpentinas, uma ou outra máscara de papel, latas e tampinhas de cerveja naquele canto de porta do boteco; um calção de futebol surrado, um penico colorido e um bêbado sentado entre a parede da velha casa e um poste, aparentemente, velho também.

Apenas isso.

Cinco e meia da manhã. A Lâmpada do poste, ainda acesa, coloca sobre o homem, sem barba e de camisa aberta por todos os lados, uma sombra vaga, quase invisível, nesse dia que começa a despontar.

Aos poucos, a claridade do dia reduz a necessidade da lâmpada e acende alguns sons do local. Em destaque, um toc-troc de tamancos se aproxima vindo do lado alto da rua, que eu diria ser mais uma ladeira. Sobre o tamanco e entre os panos de um vestido caseiro, surge uma bonita morena, com um lenço improvisado nos cabelos, pernas roliças, seios firmes e um sorriso seguro. Desce até onde se encontra o combalido, ajoelha-se ao seu lado e o acompanha em “As Pastorinhas”, marcha-rancho de Carlos Alberto Ferreira Braga (ou “Braguinha” ou “João de Barro”) e Noel Rosa, num tom mole, próprio dos embriagados. Abaixa-se um pouco mais, beija-lhe carinhosamente o rosto, coloca o braço dele sobre seu ombro; abraça-lhe a cintura e o ajuda a levantar-se. O rapaz, com um sorriso tão alegre quanto os excessos da noite anterior lhe permitem, pergunta:

- Como é que você me achou?

Ela, novamente, com carinho, beija-lhe o rosto e responde com doçura:

- Sei onde você se esconde!...

O ano anterior havia sido difícil demais para ambos. Com perda de parentes em situações policialescas; além das inúmeras ameaças e tentativas de agressão que ela sofrera e que, com muita coragem, ele, apesar de sua condição PcD, repelira demonstrando seu grande amor a ela. E quando tudo se resolveu, ele estava ferido, cansado, alquebrado e, ainda assim, amando-a com admiração, profundamente.  Na manhã daquela terça-feira gorda, ele a convidou para a última noite do carnaval de rua, para “afogar as mágoas”, sambar até o sol raiar. Ela preferiu o descanso e o estimulou a ir, afinal ele gostava daquela alegria, do samba, da festa desde sempre e ela, respeitando suas diferenças ajudou-o na preparação da fantasia, do lanche para ‘forrar o estômago’ e ainda sugeriu:

- Aproveite bem a noite.

E completou sorrindo:

- Só não me troque por nenhuma beldade, nem por nenhum rebolado matreiro.

Ele não trocou. Só teve muita saudade dela e, como diria a grande Elizeth Cardoso, interpretando Risque, de Ary Barroso: “... mas, se algum dia, talvez, a saudade apertar, não se perturbe, afogue a saudade nos copos de um bar...”   

Que noite! Que noite!