Antes de mais, uma ressalva à premissa de as consciências individuais serem sempre determinadas pela consciência coletiva, admitindo que, quando ocorre o inverso, faz-se sempre regrada pela última. Logo a legitimação da dominação por via de sistemas simbólicos, seria possível se tomados como sistema de instrumentos estruturados e estruturantes. Notamos entretanto,  que o processo de monopolização do uso legítimo da violência física, em outras palavras, de formação do Estado-nação moderno, implica a postura em prática de um combate da civilização contra a barbárie, tendo em vista o equilíbrio de poder e a elaboração e refinamento dos padrões sociais. 5  Desse modo, a manutenção do monopólio da violência física, a formação do Estado, depende em parte do monopólio da violência simbólica, impondo princípios comuns de visão e de divisão para construção de um habitus  nacional 6 .

O conceito processo civilizador, foi desenvolvido para analisar a dominação simbólica no Estado-nação moderno. Implica na introdução e planificação de sistemas simbólicos, de comunicação e conhecimento cujo poder serve à construção da realidade, tende a estabelecer um sentido imediato do mundo social, ou seja, uma concepção homogênea do tempo, do espaço, da causa, tornando possível a concordância entre os atores, ou o equilíbrio de poder não significando necessariamente igualdade de poder. Seguindo essa ordem, o Estado demarca as fronteiras de um povo, e cuida para que este se reconheça como Nação.

Seria demasiado simplista avaliar o ultranacionalismo de massa como única alternativa viável ao internacionalismo soviético, mesmo que a assertiva encerre grande valor explicativo. A geração marxista da escola de Frankfurt definiu a resposta dada, pelo ocidente em geral, ao aceno da Revolução Russa como uma guinada para a direita. Enquadrando as ditaduras fascistas européias, o macarthismo estadunidense, e as ditaduras militares da América Latina, e o massacre no Vietnã, como facetas de uma contra-revolução preventiva de caráter global por medo do que poderia vir a ser a primeira grande revolução global 7. Não é preciso, entretanto, crer na progressão retilínea da história com o fim último na revolução socialista, e a supressão das classes, para notar a subversão no significado tradicional de direita, perpretado pelos movimentos fascistas.

Fato é que o nazismo consegue a supressão não somente das classes, mas também do indivíduo, deslocando a tensão social da dicotomia rico-pobre para o problema do cancro judaico, estimulando um fascínio pela revolução socialista nacional. Logo assumiu o aspecto de falácia anti-semita, atribuindo  aos judes a culpa por todo e cada elemento da intensa crise  em que se afunda a Alemanha na República de Weimar, desde a derrota na guerra ao crescente desemprego.

Em suas origens históricas, desde o fim do Sacro Império Romano Germânico, a região que hoje constitui o território alemão foi marcada por intensa fragmentação política, resultando numa relativa fragilidade perante  invasões externas. Conhecida somente durante a era augusta da casa de Brademburgo, a superioridade da Nação alemã, tanto militar como econômica, teve sua breve existência finalizada com o humilhante tratado de Versalhes. Extinto o  Império Prussiano, um Estado-nação fortemente militarizado e  centralizado administrativamente, a fragmentação e a violenta luta política, afogaram a recém criada República de Weimar num sem fim de ordens e organizações paramilitares. Aliada à crise econômica, sentida mais fortemente na camada empobrecida, a violência  cria uma situação anômica, e anula a possibilidade da República  mediar as relações entre o Estado e os interesses da indústria e do operário. Acaba gerando um sentimento saudosista dos tempos de estabilidade e progresso proporcionados à Nação alemã  por um Estado forte e centralizado 8.

Compartilhando a crença iluminista na utopia da interferência no mundo pela vontade humana emancipada, o movimento nazista  reivindica os termos definidores do sentido moderno de revolução, menos aquela parte da liberdade. Entendendo que um levante social vitorioso, usando de violência como meio de suprimir qualquer diferencial de poder, e reformular a ordem social geralmente inspirado por um passado glorioso, próximo ou distante (divino ou litúrgico) só poderia ser considerado como revolucionário se a criação desse novo governo tivesse como objetivo último a luta pela emancipação do homem, ou a constituição da liberdade. 9 O problema do uso da violência como meio de estabelecer o poder, ou de controlar a violência arbitrária, é que ela pode se perder facilmente na relação meiofim, visto que no calor dos acontecimentos o fim nunca pode ser previsto de maneira confiável. 10

Não creio ser necessário reiterar a consonância do nazismo com o pensamento ocidental, com a crença inabalável na força criadora da criatividade humana, no progresso e no desenvolvimento tecnológico com a direita não representando nenhum aspecto de ruptura, conseqüentemente, nenhuma revolução. A única real ruptura que poderíamos constatar seria a elevação da crueldade à virtude, rompendo com a hipocrisia burguesa. Ademais o movimento nazista encerra o receio pequeno-burguês, em iminência de proletarizar-se, mesmo que acabe por incorporar o vermelho à sua bandeira.

Dentro do discurso nazista, esses elementos são conjugados para confecção de seu projeto de sociedade, onde o volk ariano 11 se veria emancipado, libertado do jugo da cruel tirania judaica. Visto que uma revolução almeja re-estruturar a ordem social, regulando novas relações de poder com uma forma de governo adequada a um novo homem. A criação de um novo homem, por sua vez, implica a criação de uma nova forma de educá-lo, de doutriná-lo,  a fim de interiorizar um novo habitus,  o revolucionário. Prática que pode ser exemplificada pela: adoção do novo calendário, do calendário revolucionário; ou pelo Despotismo da Liberdade  da Revolução Francesa; pela ditadura do proletariado de Lênin. Ou de forma mais radical: pela História oficial da Revolução Russa de Stalin;  ou e pela Revolução Cultural de Mao Tse Tung.

Podemos facilmente identificar um problema comum imposto aos jovens Estados que se inserem na cena mundial do século XIX, um processo civilizador que se apressa por forjar seus símbolos identitários, constituintes de sua identidade nacional. Se pudéssemos reconhecer algum caráter nacional alemão, poderia ser o habitus da violência, de herança prussiana 12. Entretanto, para a retórica revolucionária assumida pelo nazismo, criar a Nação ariana não implica somente doutrinar ou educar o novo homem, implica também a noção de purificação, de expurgo, ou seja, a necessidade do extermínio real dos não-arianos, o que acabaria por culminar na mórbida solução final para a questão judaica. Auschwtiz se diferencia do Kulak soviético, da fábrica capitalista, da bomba atômica e da guerra do Vietnã, pelo fato de a violência, a morte ou o extermínio, constituir um fim em si mesmo.

Antes da invasão ao oeste da URSS, o nazismo não possuía suficiente  reserva humana supérflua para implantar um regime totalitário 13, e interiorizar através da prática a crença na dispensabilidade da vida.  Entretanto a identificação do bacilo judaico representa a pedra fundamental para a construção da identidade do grupo, muito antes do mesmo assumir o poder. O desenvolvimento dos recursos tecnológicos também teve um papel fundamental para a recuperação econômica da Alemanha nazista, sobretudo pela indústria de guerra protecionista montada para ocupar o vácuo deixado pelo tratado de Versalhes. Contribui também para a construção de uma importante justificativa retórica, o aspecto de verdade científica conferido às suas mentiras propagandísticas. 

Mas um outro avanço tecnológico teve maior importância que a câmara de gás para o movimento nazista, a abertura de um canal de diálogo com seu público alvo e poder galgar a posição dos mais altos escalões do poder, garantindo sua legitimidade: os veículos de comunicação em massa. Mesmo que a intensa propaganda política fosse acompanhada de atos terroristas, por assassinatos seletivos que reforçam eloqüência da retórica argumentativa, deve-se cuidar para não pensar em termos de lavagem cerebral. 

Seria pertinente ressaltar que uma comunicação implica necessariamente a existência de um emissor, de uma mensagem, e de um receptor inteligente, capaz de decifrar-lhe o conteúdo. Além de dominar a língua, o receptor deve dominar a linguagem, os conceitos, os significados das categorizações, constituintes do corpo da mensagem. Esse canal de diálogo possível entre o partido nazista e seus simpatizantes, o rádio, foi essencial para estabelecer o poder de impor uma visão única de identidade (ou idêntica de unidade) ao grupo nós-ariano, construindo-a em oposição diametral ao eles-judes.