Qual Foi o Significado Dado à Cirurgia e à Anatomia Por Vesálio? Como Eram Feitas as Dissecações de Cadáveres? Por Que Vesálio Discordava de Galeno?

 

André Vesálio (1514/1564) nasceu em Bruxelas à vista do monte onde os criminosos eram executados e, por isso mesmo, quando criança deve ter visto com frequência os corpos deixados suspensos para serem limpos pelas aves. Seu pai era boticário do imperador e a família era conhecida na profissão médica. Ao contrário de Paracelso, Vesálio recebeu a melhor instrução médica que o seu tempo oferecia. Matriculou-se na Universidade de Paris onde foi aluno de Sílvio, o célebre defensor de Galeno.

Mas, quando a guerra entre a França e o Império Romano foi deflagrada, Vesálio viu-se obrigado a sair de Paris, pois era considerado estrangeiro inimigo. Daí foi para Pádua – a escola de medicina mais considerada da Europa – e recebeu o grau de doutor em medicina. Ele deveria ser muito versado no saber convencional, pois aos 23 anos foi-lhe confiada a cadeira de Cirurgia e Anatomia da Universidade local. 

Vesálio deu à cirurgia e à anatomia um novo significado, pois ele jamais considerou seu dever principal ser o intérprete dos textos de Galeno. Ao orientar a anatomia que lhe era exigida, não procedeu conforme o costume e, ao contrário dos professores antes dele, Vesálio não ficava sentado na sua cadeira professoral enquanto um cirurgião-barbeiro (de mãos ensanguentadas) tirava os órgãos do cadáver. Ele próprio manipulava o corpo e dissecava os órgãos. 

A fim de ajudar seus alunos, Galeno preparou alguns auxiliares de ensino sob a forma de quatro cartas anatômicas pormenorizadas, a fim de mostrar ao estudante a estrutura do corpo quando não havia nenhum cadáver disponível. Cada parte estava rotulada com o seu nome técnico e o simples uso dessas cartas já era uma grande novidade. 

Durante a Idade Média os desenhos anatômicos tinham sido raros e, no século XVI quando foram redescobertos, editados, traduzidos de novo e impressos os textos de Galeno, continuaram a não lhes ser acrescentados desenhos anatômicos.

 

Se não houvesse impressoras, talvez Vesálio não se sentisse tentado a publicar as cartas que elaborara para seus alunos. Mas, quando uma delas foi plagiada Vesálio mandou publicar todas. Três eram desenhos de um esqueleto, as outras três “tábuas” eram radicalmente originais desenhos do próprio Vesálio das veias, artérias e sistema nervoso. 

A novidade residia mais no modo como mostravam do que no que mostravam. E com essas tábuas Vesálio inventou o método gráfico em anatomia. Hoje parece surpreendente que um auxiliar de ensino tão óbvio tivesse alguma vez de ser inventado. Durante séculos, mesmo quando o treino de médicos nas escolas médicas da Europa incluíra algumas oportunidades de ver o interior do corpo humano, tinham sido poucas e muito espaçadas. 

Durante as Cruzadas surgiu uma oportunidade macabra de estudar o esqueleto humano, quando os corpos dos que tinham morrido durante a viagem eram desmembrados e cozidos, para que seus ossos pudessem ser convenientemente enviados para sepultamento em sua terra natal. 

Este costume estava disseminado de tal forma que deu origem a uma bula do Papa Bonifácio VIII, que proibiu tal prática. No século XIV, a dissecação humana se tornou mais habitual em faculdades médicas e quando o Papa Alexandre V morreu, em 1410, foi efetuada uma autópsia no seu corpo. 

No entanto, os atos de dissecação pareciam contrários à natureza e à vontade de Deus. “Anatomizar” também significava fazer nascer uma criança por operação de cesariana. De vez em quando, o tribunal ordenava uma autópsia a fim de estabelecer se os ferimentos do falecido tinham sido a causa da morte. Quando a saúde da comunidade estava em jogo, as autópsias podiam ser toleradas e até exigidas. 

Depois da peste negra de 1348, a Saúde Pública de Pádua ordenou que sempre que uma pessoa morresse de causas desconhecidas, o corpo só poderia ser sepultado após o exame de um médico. E, para encontrar os gânglios linfáticos enfartados, que eram o diagnóstico da peste, era necessário dissecar o corpo e os estudantes de medicina de Pádua aprenderam com esses espécimes. 

Como os corpos de criminosos executados eram a fonte principal de cadáveres, os cadáveres femininos eram particularmente escassos, o que constituía mais um obstáculo à descoberta do processo de procriação e de gestação. Só gradualmente a anatomia deixou de significar a abertura ocasional de um corpo para responder a uma pergunta específica e passou a significar o estudo sistemático do corpo. 

Como vimos, existiam muitos obstáculos ao estudo continuado do corpo humano e, a falta de refrigeração, exigia que uma anatomia fosse efetuada de forma apressada, antes de o corpo se decompor. E, mesmo nas melhores universidades só se efetuavam dissecações anualmente. 

Durante séculos na Europa, os únicos corpos legalmente disponíveis para uma dissecação eram de criminosos executados que raramente chegavam intatos. Na Inglaterra, a execução habitual era por enforcamento, mas a algumas pessoas de elevada categoria era concebido o privilégio de serem decapitados. 

Eram raras as oportunidades de dissecar cadáveres que não tivessem sido mutilados durante a execução. Professores aproveitavam todos os ensejos para se apoderarem de bocados de corpos humanos, com as mais desagradáveis consequências. Vesálio aproveitava todas as oportunidades – legais ou não – para se abastecer de espécimes. 

Em Pádua, Vesálio interessou um juiz pela sua investigação e, ele não só lhe ofereceu corpos de criminosos executados, como até adiou execuções para que os cadáveres ainda estivessem frescos quando Vesálio estivesse preparado para dissecá-los. 

Corria o boato de que estudantes roubavam corpos das sepulturas e, após dissecá-los, lançavam seus restos ao rio ou os atiravam aos cães. Em consequência disso, em 1597 um decreto exigia funeral público para os restos de todo o cadáver dissecado. 

Embora ensinasse a partir do texto de Galeno, Vesálio percebeu vários exemplos em que o mestre descrevia o que não se encontrava no corpo humano, que ele não tardou a compreender que a “sua anatomia humana” era na realidade apenas um compêndio das declarações sobre animais em geral. 

Seus estudos anatômicos culminaram com o livro que lhe deu fama: “De Humanis Corporis Fabrica”, conhecido como “Fábrica” apareceu em 1543, mesmo ano do livro de Copérnico. Destinado a ser para anatomia o que a obra de Copérnico foi para a astronomia, justificaria o trabalho de uma vida inteira, mas foi completado entre os seus 26 e 28 anos. 

Como estava decidido a mostrar com precisão apenas o que confirmara com seus olhos e suas mãos, Vesálio sabia que o valor científico do seu produto dependeria da qualidade das suas ilustrações. Por isso procurou os melhores artistas xilogravadores venezianos. Desenhista bem dotado, ele próprio desenhou algumas das suas figuras.

 A escolha do impressor adequado para sua obra era de importância crucial e Vesálio sabia disso. Poderia parecer que um professor de Pádua mandasse imprimir sua obra na capital. Veneza fora desde os primeiros tempos da imprensa, um quartel-general de grandes casas impressoras. 

No princípio do século XVI, a arte de imprimir já atingira o apogeu nos produtos elegantes de Aldo Manúcio. O famoso frontispício ([1]) ilustrado da “Fábrica” reproduzia o congestionado cenário de uma “anatomia pública”, tal como exigiam os estatutos da Universidade de Pádua. 

Na ilustração, o próprio Vesálio tocava nos órgãos abdominais expostos do cadáver aberto de uma mulher. 

Para realçar que se tratava de uma anatomia humana, vê-se um esqueleto acima do cadáver, enquanto uma figura masculina nua olha de lado. Em 1º plano, sentados debaixo da mesa de dissecação, estão dois barbeiros afiando as lâminas do professor. No canto esquerdo, um macaquinho e, no direito, vê-se um cão. 

O título da sua obra (“De Humanis Corporis Fabrica”) sugeria que ele estava interessado tanto na estrutura quanto no funcionamento e, para os estudantes, Vesálio realçava a estrutura interna do corpo, servindo-se de um bocado de carvão para marcar na carne do cadáver a forma do esqueleto interno. 

A obra se afasta da ordem da dissecação que fora determinada pelo ritmo da putrefação e, em vez disso, começa pelos ossos (estrutura fundamental do corpo) e prossegue para os músculos, para os sistemas vascular e nervoso, órgãos abdominais, tórax, coração e cérebro. 

Decorrido ½ século, a anatomia vesaliana predominava nas escolas médicas europeias e o estudo da anatomia no Ocidente nunca mais voltaria a ser o que era. O que Vesálio disse sobre o coração (ou cérebro) foi pouco importante, quando comparado com o caminho aberto aos estudantes a fim de aprenderem sobre todos os órgãos do corpo. 

Desacreditar Galeno não bastava e tinha de haver um novo entusiasmo pela dissecação repetida. De nenhum outro modo poderia o médico ter a certeza de que não descrevia anomalias. 

A fim de satisfazer sua curiosidade sobre o fluido do pericárdio, Vesálio fez questão de presenciar o esquartejamento de um criminoso ainda vivo. Depois levou para estudar o coração, o pulmão e as “vísceras”. Murmurava-se que a sua avidez por espécimes o levou – algumas vezes – a dissecar corpos antes de estarem mortos. 

Depois de publicada, a “Fábrica”, o jovem Vesálio trocou o estudo da anatomia pela prática da medicina e conseguiu ser nomeado médico do imperador Carlos V. Na sua prática clínica revelou-se muito especializado e, como a lascívia ([2]) e a gula eram os pecados da corte, Vesálio preocupou mais com o “mal francês, perturbações, gastrointestinais, e enfermidades crônicas dos seus pacientes”. E, após isso, Vesálio viveu mais vinte anos.