ANÁLISE DO CAPITAL CULTURAL E SUA MANIFESTAÇÃO NO FILME ESCRITORES DA LIBERDADE

Daniel Pereira Lopes[1]

RESUMO

O ensaio presente propõe uma análise na teoria de Pierre Bourdieu quanto ao capital cultural e a aplicação da mesma no filme Escritores da liberdade. A metodologia utilizada, inicialmente,  será a exposição da visão de Bourdieu, concebida por meio de leitura de uma obra do sociólogo. O eixo temático será deixar  em evidência aspectos pertencentes à teoria, dando aplicabilidade às cenas que envolvem um ambiente escolar norte-americano, efetuando uma correlação entre a ideia de capital cultural e o filme. Pretende-se  moldar uma percepção a respeito da influência da teoria e seus modos distintos de reprodução no âmbito social escolar, levando-se em conta  o acúmulo de conhecimento adquirido por fatores familiares e conciliados com a instituição escola e o grau de variabilidade entre estudantes, visto que fatores socioeconômicos e a posição hierarquicamente ocupada é um papel decisivo na consolidação de normas, valores e conteúdos. Em palavras sucintas, demonstrar a lógica de Bordieu frente à sua análise teórica, colocando a instituição escola como reprodutora das desigualdades.

Palavras-chave: Capital Cultural. Escola no século XX. Família. Filme Escritores da liberdade.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

1.1  O CAPITAL CULTURAL DE PIERRE BOURDIEU

Qualquer que seja o assunto, generalizar é um pecado. A escrita é sempre objetiva, no entanto a riqueza de informações  torna a pauta mais minuciosa. Nesse sentido, a análise a seguir busca, em alguns pontos, a riqueza de informações sem a intenção de generalizar ou emitir algum dado.

  Pierre Bourdieu utiliza um termo emprestado da economia, termo esse essencial para o seu pensamento sociológico: capital cultural. Os estudos de Bourdieu acentuaram uma dimensão na origem social dos alunos. Seu ponto de partida é de que a origem social dos alunos se constitui em desigualdades escolares. Inicialmente, deve-se partir para a regra do método, ou seja, começar definindo o termo cunhado pelo sociólogo francês.  Quando Bourdieu emprega o termo capital cultural, ele designa o sucesso ou o fracasso do aluno. Pontua-se que algumas evidências assinalam que as limitações do conceito de capital econômico explicam o elo entre o nível socioeconômico e os bons resultados educacionais. Com isso é possível estabelecer uma relação entre as formas de capital – como o social e o cultural – e de como elas são fatores que contribuem diretamente ou interagem com o capital econômico para fortalecer as relações sociais estabelecidas.

Como uma referência necessária para presente estudo, adentremos ao século XX, momento em que a visão predominante atribuída à escola era a função de construir uma nova sociedade, justa, moderna e democrática. A escola pública e gratuita seria  responsável pelo acesso à educação e, consequentemente, a instituição reprodutora da igualdade de oportunidades. Entretanto, a universalização – ou democratização – do acesso à escola fundamental e o prolongamento da escolaridade obrigatória tornou explícito o problema das desigualdades de escolarização entre as classes sociais. O otimismo presente no século antecedente ao atual foi substituído por uma postura mais pessimista, moldada a partir da influência da origem social nos desempenhos escolares, ou seja, a forte relação  existente   entre desempenhos escolar e origem social – fatores classe, etnia, sexo, local de moradia, entre outros.

De acordo com Bourdieu (1930-2002), não há dúvida de que os julgamentos que pretendem aplicar-se a pessoas em seu todo levam em conta não somente a aparência física propriamente dita, que é sempre socialmente marcada (através de índices como corpulência, cor, forma do rosto), mas também o corpo socialmente tratado (com a roupa, os adereços, a cosmética e, principalmente, as maneiras e a conduta). (1998, p. 193).

O capital cultural que Bourdieu refere-se está associado à inserção no mercado discutido pelos marxistas. Indaga-se sobre a articulação  do processo inicial de acumulação do capital cultural. Ainda que, de modo inconsciente, a aquisição é obtida na relação familiar, onde os membros que compõe a família detém o capital cultural. A situação cria a possibilidade de um filho que pertence à família de classe média ter mais êxito do que o filho de um operário. Assim, a posse de capital cultural seria o fator  a favorecer o desempenho escolar à proporção que facilita a aprendizagem dos conteúdos. As referências culturais, as instruções e o domínio maior ou menor da língua culta, trazidas de casas pelas crianças facilitam o aprendizado escolar  conforme funcionariam como alavanca entre o mundo familiar e a cultura escolar. Pode-se visualizara  educação escolar, no caso de crianças provindas de meios culturalmente favorecidos como uma forma continuada da educação familiar, enquanto que para outras crianças significaria algo estranho, distante ou mesmo ameaçador.

2 O FILME ESCRITORES DA LIBERDADE

A título de exemplo de como o  capital cultural é relevante no processo de formação, mais   que isso, como é determinante no sucesso ou no fracasso de uma trajetória escolar, é o filme Escritores da Liberdade. Entre outros inúmeros filmes cujos estudantes são norte-americanos indisciplinados, este filme de 2007 tem caráter diferencial: ainda que despropositadamente, Escritores da Liberdade traz à tona a relevância do capital cultural na sociedade escolar. Baseado em fatos reais, na história de Erin, interpretada por Hilary Swank, o filme inicia-se com a  narração de uma das  alunas.  A professora novata em questão, interessada em lecionar Língua Inglesa e Literatura, vê-se diante de uma turma de adolescentes resistentes ao ensino convencional – alguns estão ali cumprindo pena judicial, quase todos são reféns das gangues avessas ao convívio pacífico com os diferentes.

É neste cenário problemático que a Professora Erin Gruwell, filha de um antigo defensor dos direitos civis durante os distúrbios raciais sérios que abalaram a cidade de Los Angeles, na Califórnia, em 1992, está frente a frente  de um  desafio: educar um massa de estudantes  aceito compulsoriamente na Escola Wilson, após a criação de uma lei de integração racial, aprovada pela Secretaria de Educação do estado.

Nesta classe do primeiro ano colegial a professora depara com uma diversidade  racial ampla: brancos, negros, hispânicos e asiáticos, que são obrigados a conviver no mesmo espaço. Na própria sala de aula é perceptível fronteiras que distanciam o contato social entre os estudantes. Recém-graduada, Erin chega à escola empolgada,  repleta de sonhos e ideias renovadoras.

Previsivelmente, ela é recepcionada por uma realidade completamente diferente da que imagina, enfrentando problemas de ordem social, caracterizado por adolescentes marginais. Além disso, enfrenta a ausência de inovação por parte dos educadores que compunham o corpo docente da instituição: muitos estavam inseridos em um sistema monótono há aproximadamente trinta anos e recusava alterações. Em outras palavras, o universo é preconceituoso e fechado às ideias.

Um obstáculo é colocado:  qual seria a metodologia a ser utilizada para  impor a este grupo de estudantes, diversificados e distintos, uma linguagem considerada estrangeira por eles e, mais que isto, um instrumento de manipulação política?

Em seu primeiro dia de aula, Erin já vivencia uma antevisão do universo violento e caótico que a aguarda. A escola, que já havia sido um centro de excelência,   agora sofre com a evasão de seus consideravelmente  melhores alunos, depois do ingresso de alunos que, para os demais professores e profissionais da escola que representam um retrocesso à instituição, fator que moldou-a  em cenário de constantes combates de gangues.

Diante desta realidade nada romântica, Erin questiona sua vocação e o papel do educador, principalmente quando seu pai reage negativamente ao seu projeto de lecionar para estes garotos. Mas, a partir do momento em que uma caricatura desenhada por um dos alunos, com o objetivo de humilhar um dos estudantes negros, vai parar em suas mãos, ela inicia uma nova trajetória de descobertas e revelações.

Deste momento em diante, a jovem mestra passa a encontrar caminhos alternativos para sensibilizar seus alunos, através de um inusitado paralelo entre o contexto racial atual nos Estados Unidos e o Holocausto, praticado durante a Segunda Guerra Mundial contra judeus, negros e outras raças consideradas inferiores pelos nazistas.

Através desta analogia, a professora começa a transmitir a estes jovens noções fundamentais provindas de um espaço familiar:  tolerância, respeito, aceitação das diferenças e convivência pacífica. Ela desenvolve, então, um método que parte da realidade enfrentada de cada aluno, expressa por meio da escrita e da leitura.

A partir dos diários desenvolvidos pelos estudantes, estimulados por Erin,  os mesmos começam uma projeção nestes cadernos, relatando  suas trajetórias existenciais. Á medida em que a escrita é realizada, os estudantes tecem uma visão diferente em relação ao outro, até então visto como inimigo. Eles conseguem perceber similaridade entre si.  

Ao ver esse filme, algumas cenas  tornam possível pensar em algumas palavras de Bourdieu, mais precisamente nas que definem o que seja capital cultural:

“(...) conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de interreconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis”.

(Bourdieu, 1998, p. 28)

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De acordo com o que foi expressa na concepção de Bourdieu, a família  é quem realiza os investimentos educativos. Um determinado quantum de capital é cultural é transmitido para a criança durante seu processo de socialização, incluindo saberes, valores e normas, práticas, expectativas quanto à escolha profissional par o futuro e a atitude da família em relação à escola. Vale pontuar, ainda, que Bourdieu observa também que o grau de investimento na carreira escolar está vinculado ao retorno provável que se pode obter com o título escolar, não apenas no mercado de trabalho, mas também nos diferentes mercados simbólicos, como o matrimonial, por exemplo.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria de Pierre Bourdieu condiz muito com a realidade educacional vivenciada pela maioria das instituições de ensino do país. No caso do Brasil, pode-se imaginar a complexidade de indivíduos que estão inseridos na rede de ensino e enfrentam problemas sociais e afetivos de diversas ordens e são pertencentes, dentro da hierarquia social, à classe pobre. O que é perceptível na contemporaneidade, no interior da escola, é o desejo de não conciliar os problemas enfrentados pelo próprio estudante e por sua família. A exigência é que os estudantes tragam para o ambiente escolar apenas a cabeça pensante e esqueçam, ao usá-la, dos problemas sociais e familiares que estes enfrentam. Os fatores envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, tais como os elementos da vida emocional ou afetiva do sujeito, são negligenciados, e porque não dizer ignorados, fazendo com que comprometam negativamente o processo.

Romper com o tradicionalismo que molda a instituição  escola,  há décadas, é um desafio para a educação moderna. Os valores adquiridos para a reprodução da educação aparentam ser incorruptíveis, como alguns educadores demonstraram nas cenas do filme Escritores da Liberdade.

É interessante pontuar a ideia de que os agentes construtores de uma escola são os alunos, porém a mesma também os constrói. Na escola abordada no filme, essa atitude  era fragmentada: estudantes capacitados, com  capital cultural complexo, são separados em uma hierarquia: os  intelectuais e os consideráveis não-capacitados, responsáveis por atribuir à instituição como desvalorizada, impotente, destruída intelectualmente. Levando-se em consideração a entrada de estudantes que, segundo a portaria da escola, fragilizaram o espaço, percebe-se que a escola não estava construindo devidamente seus alunos “problemas”, mas reproduzindo incessantemente maneiras de desigualdades em função da origem social de cada estudante  pelo baixo capital cultural.

4 REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.


Escritores da liberdade (Freedom Writers), de Richard LaGravenese. 



[1] Graduando em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Minas Gerais.

Bolsista do PIBID – Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência.

Monitor do Componente Curricular “Sociologia Clássica I: Karl Marx” do Curso de Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado de Minas Gerais.

Relações Públicas do Centro Acadêmico do curso de Ciências Sociais da Universidade do Estado de Minas Gerais.

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