BREVE INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de uma breve reflexão realizada na disciplina "Experimentação em Audiovisual" cursada no programa de Doutorado de Ciências da Saúde do Nutes/UFRJ.

Até o início deste curso, não tinha um olhar atento para a análise fílmica de maneira sistêmica. Parafraseando Copland, era um assistente passivo em relação aos meandros técnicos e analíticos de elaboração de um filme, mesmo é claro, tendo discernimento bastante para discutir sobre questões culturais, sociais e históricas constantenas películas. Aos poucos pudemos perceber que, do roteiro a distribuição de um filme, passando pela decupagem, escolha dos planos, cortes, locações, edições, montagem, etc, existe um universo epistemológico a explorar. Para tal, uma aproximação mais atenta às técnicas analíticas de elaboração de um filme, como sujeito e não apenas como meio, se faz imperativa para que possamos entender o fator expressivo que existe por traz de um filme, vídeo, documentário ou qualquer outra forma audiovisual.

Na música que, aliás tem estreita relação com o cinema, o termo "Imagem Pictórica" surge, ainda no romantismo do século XIX, emprestado das artes plásticas. Mais tarde, já na década de 1970, Schafer nos traz outro termo de igual importância; "Paisagem Sonora". Ambos esses termos têm em comum a busca por imagens sonoras e sua relação com o ambiente social.

A partir de nossas reflexões em sala de aula e alimentados por extenso aporte teórico norteador da disciplina, vislumbramos uma relação estreita entre paisagem sonora e audiovisual, relação esta que procuraremos, um pouco que seja, aqui entender.

PAISAGEM SONORA

O som é formado por vibrações de pressão que se propagam no ar em movimentos de ir e vir, de compressão e dilatação, gerando ondas que são percebidas pelo ouvido humano através do tímpano - parte externa do ouvido que é sensível às vibrações sonoras. É então o som, a forma audível de vibrações que como as ondas do mar, vão e vem alimentando o sentido da audição.

Paisagem Sonora é uma expressão usada nos países latinos, traduzida do inglês "soundscape" - neologismo criado por Schafer -, que tenta descrever - qual uma pintura - os sons de um determinado ambiente. Para SCHAFER, "paisagem sonora é todo campo de estudo acústico"(2001, p. 23) e o mundo é uma macro-composição sonora onde cada ambiente soa como um movimento musical independente. Os ambientes se diferem; uns são mais quentes que outros; mais iluminados, mais harmoniosos, mais silenciosos ou barulhentos; sendo assim, se fotografássemos ou filmássemos estes diferentes ambientes, teríamos retratos e filmes distintos de cada um deles. Com a paisagem sonora ocorre o mesmo. Ambientes diferentes nos remetem a paisagens sonoras também diferentes. Por exemplo: pensemos numa fazenda; podemos traduzir num certo número de palavras as imagens que nos remetem ao ambiente rural: gado, mata, pássaros, estrada sem pavimentação, dentre outras.Agora pensemos no centro de uma cidade como o Rio de Janeiro ao final de um dia de trabalho normal e por volta das 18 horas: buzinas, motores, apitos dos guardas, são imagens que naturalmente se manifestam. Observemos que no exemplo da cidade destacamos um horário específico, o que nos remete à possibilidade de descrever imagens diferentes para um mesmo ambiente a partir de horários e situações distintas. Assim como podemos traduzir em palavras um determinado ambiente, podemos traduzi-lo também em desenhos sonoros e estes desenhos são a descrição da paisagem sonora destes ambientes.

Toda paisagem sonora possui recortes, ou seja, elementos distintos que a compõe. Chamamos estes recortes de imagens sonoras, que são acontecimentos auditivos que formam a paisagem sonora ambiental, nos remetendo a visões pictóricas e a sinais visuais. Usamos o termo imagem sonoracomo toda informação sonoro-ambiental que compõe a paisagem e toda informação sonora que é acrescida ao ambiente, torna-se, naquele momento, parte integrante da paisagem sonora; descrevê-las é como olhar a nossa volta e traduzir os sons que ouvimos. Esta tradução pode ser feita de várias formas, dentre elas, gráfica; a escrita musical se configura numa forma de representação gráfica, semiótica, que através de sinais e códigos pode prescrever ou descrever[1] visões sonoras. Podemos descrever em sinais musicais, por exemplo, a estrutura rítmica do termo "imagens sonoras".

AUDIOVISUAL

Assim como podemos registrar paisagens e imagens sonoras em signos gráficos, o audiovisual o faz por meio de imagens e sons, que ao nosso olhar, são descrições precisas destas paisagens e imagens registradas através das lentes de uma câmera filmadora.

Para melhor entendermos alguns pontos da relação que buscamos estabelecer entre paisagem sonora e audiovisual, se faz necessário uma breve aproximação do pensamento de Aaron Copland, que divide a audição musical em três planos.

COPLAND, compositor e pesquisador americano, divide a audição musical, hipoteticamente para melhor compreensão, em três planos: O plano sensível, o plano expressivo e o plano puramente musical(1974, p.22).

Plano sensível – Neste plano, o ouvinte toma um banho de som sem se preocupar com origens, formas, timbres, tessituras, etc. É, segundo Copland, a forma mais simples de audição musical;

Plano expressivo – É o plano que descreve o significado da obra de arte musical. Copland nos diz que toda música possui um significado, algo que o compositor tenta descrever, porém, somente o próprio compositor pode nos descrever, num certo número de palavras, que significado é este. Nós podemos apenas conjecturar;

Plano puramente musical -É o plano onde buscamos uma compreensão mais apurada da arte musical, ou seja, ouvimos buscando entender suas formas, tessituras, instrumentação, origens, etc. Neste plano, somente com conhecimentos técnicos avançados conseguiremos alcançar.

A exemplo do que fez Copland, nós, dividiremos, também, a percepção sonora, de maneira geral, em três planos: o plano geral, plano significativo e plano consciente.

O plano geral seria aquele onde não nos damos conta do que ouvimos, quanto ou de que forma. Estamos o tempo todo envoltos numa odisséia sonora e mesmo assim não nos damos conta disto, não nos preocupamos em selecionar nenhum som específico, seja ele bom ou ruim, bonito ou feio, agradável ou não. Estamos sendo neste momento específico, afogados num mar de sons e poderíamos também chamar este plano de plano da banalização sonora. No plano significativo nos tornamos um pouco mais atentos, buscamos um sentido, um significado para os sons que ouvimos e/ou produzimos e mesmo ainda não tão preocupados com seus efeitos ou conceitos estéticos, estamos mais atentos. Por fim, temos o plano que mais nos interessa, o plano consciente, onde nos tornamos ouvintes muito mais atentos, preocupados com os sons nocivos ao ambiente, com os sons em extinção, com o nível de decibéis que podemos suportar com segurança, enfim, nos tornamos ouvintes inteligentes, capazes de selecionar com consciência os sons que queremos ouvir ou produzir, os sons que queremos preservar ou extinguir. Como fez Copland, ao dividir o plano de audição musical, nós também o fizemos apenas para melhor compreendê-los e é importante ressaltar que poderão surgir outras terminologias ou formas de entendimento.

A imagem, no cinema ou mesmo no vídeo, pode não corresponder a realidade, a verdade.Segundo MARTIN, "a imagem fílmica restitui exata e inteiramente o que é oferecido à câmera"(1990, p.21), e o que é oferecido, apesar de ter relação com a verdade buscada pelo diretor para a tomada, pode não ter relação com a verdade na essência do que se filmou. Há uma importante diferença entre a representação do objeto filmado e a essência deste mesmo objeto. "A imagem encontra-se, pois, afetada de um coeficiente sensorial e emotivo que nasce das próprias condições com que ela transcreve a realidade. Sob este aspecto, apela ao juízo de valor e não o de fato; na verdade, ela é algo mais do que ma simples representação"(Idem, p. 25-6).

EISENSTEIN apud MARTIN, traz, ao nosso olhar, a construção da interface entre os planos de audição/percepção sonora e o audiovisual. Segundo ele, "(…) a imagem reproduz o real, para em seguida, em segundo grau e eventualmente, afetar nossos sentimentos e, por fim, em terceiro grau e sempre facultativamente, adquirir uma significação ideológica e moral"(Idem, p.28).

Assim como os planos de percepção sonora, estes "planos" colocados por Eisenstein não são percebidos ou propostos isoladamente, porém, nem sempre todos eles são ativados, pelo menos, conscientemente. O plano geral teria na reprodução seu correspondente, plano significativo o afetar de sentimentos e o plano consciente a significação, respectivamente.

Observamos, também, que assim como os signos sonoros, os audiovisuais precisam ser decifrados para que sejam compreendidos quanto a sua significação. "Ninguém tem a menor idéia do que o autor quis dizer; o próprio autor não domina toda a significação da imagem que produz" (JOLY, 1998, p.44).

O plano reprodução é aquele que todos têm contato direto e imediato à medida que o filme, o vídeo, ou seja, as imagens são projetadas; o plano afetar de sentimentos é aquele em que os assistentes mais atentos procuram entender o fator psicológico das imagens apreciadas; e o plano significativo é aquele onde apreciadores com certo domínio analítico, mesmo que rudimentares, acerca das imagens, buscam um sentido através do aporte técnico apresentado no audiovisual em questão.

Paisagem sonora e audiovisual são, parafraseando Nietzsche, formas de manifestações do espírito, portanto, podem ser analisadas em sua relação com o ambiente social por um prisma artístico. "O som faz parte, sem dúvida, da essência do cinema, por ser, como a imagem, um fenômeno que se desenvolve no tempo" (MARTIN, 1990, p. 111).

A arte sempre esteve ligada ao seu tempo e à sociedade como um todo; o artista só pode exprimir a experiência e a emoção daquilo que seu tempo e suas condições sociais podem lhe oferecer, e esta inerente conexão, nos dá a medida exata da importância de um entendimento acerca do meio social para que se possa estabelecer uma relação entre os objetos, aqui, investigados. Segundo BARRAUD "(…) não há civilização, por mais primitiva que seja, em que o canto, a dança e os instrumentos musicais não estejam intimamente ligados a todos os atos da vida social"(1997, p.12). "O artista não é um criador. A época e a sociedade em que vive não o delimitam de fora, mas o delimitam precisamente na severa exigência de exatidão que suas mesmas imagens lhe impõem"(ADORNO, 2002, p.38). Segundo EISENSTEIN,

"O cinema, sem dúvida, é a mais sensacional das artes. Não apenas porque as platéias de todo o mundo vêem filmes produzidos pelos mais diferentes pontos de vista. Mas particularmente porque o filme, com suas ricas potencialidades técnicas e sua abundante invenção criativa, permite estabelecer um contato internacional com as idéias contemporâneas"(1990, p.11.)

CONCLUSÃO

Concluímos esta breve reflexão, entendendo, um pouco, a estreita relação entre arte e ambiente social, entre arte e seu recorte na paisagem sonora e audiovisual, bem como, a possível interface que se constitui.

A relação artística existente entre paisagem sonora e audiovisual, as torna passível de um estudo analítico buscando uma possível interface entre som e imagem. "É sabido que o cinema se tornou sonoro, e depois, falado (…)" MARTIN, 1990, p.108).

Som e imagem, são então, ao nosso olhar, matérias-primas que unem paisagem sonora e audiovisual. "O cinema sonoro se tornou realidade"(EISENSTEIN,1990, p. 217).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Filosofia da Nova Música. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

BARRAUD, Henry. Para compreender as músicas de hoje. São Paulo: EditoraPerspectiva, 1997.

COPLAND, Aaron. Como ouvir e entender música. São Paulo: Editora Artenova, 1974.

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

JOLY, Martine. A introdução à análise da imagem. Campinas: Papiros, 1998.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.

SCHAFER, R. Murray. A Afinação do Mundo. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 2001.



[1] Prescrever - quando um compositor escreve uma música, ele está prescrevendo os sons que deverão ser executados e apreciados posteriormente. Descrever - quando um compositor compõe uma peça musical, ele pode estar descrevendo em sons, elementos ou emoções por ele captadas ou criadas.