Obra Cinematográfica "Cão sem Dono”: perspectivas da dicotomia do bem/mal a partir de Michel Maffesoli em “A parte do diabo”

Paloma Eugênia Monte de Sousa

Universidade Federal do Ceará
 

 

1. Introdução

            A obra cinematográfica Cão sem dono, dos diretores Beto Brant e Renato Ciasca, adaptada do livro “Até o dia em que o cão morreu” de Daniel Galera, pode-se dizer, aborda a temática dos opostos. Solidão e companhia, felicidade e desespero, esperança e desilusão: são alguns deles. Assim como o autor Michel Maffesoli tratou de escrever, em sua obra A parte do diabo a respeito dessas dicotomias e de como o 'mal' está presente e faz parte – sendo peça essencial – na completude do 'bem', o filme ilustra como o personagem do jovem Ciro pode ir de um oposto (total indiferença à personagem Marcela, considerada por ele apenas um caso de uma noite) ao outro (totalmente sem rumo e desesperado pela ausência e distância de sua amada, que passou a ser um Norte para ele e, por que não, 'sua dona') .

            Cabe levantar a questão de até que ponto as sociedades contemporâneas vêem  como normal esse afundamento no qual muitos jovens têm se colocado – seja por conta dos chamados “vícios” (bebidas, drogas, jogos), por conta de uma falta de motivação e  perspectivas futuras ou até mesmo por conta de certos estilos musicais, que pregam atitudes incomuns à maioria das pessoas.

            Será que a juventude se 'corrompeu' completamente neste século, onde tanto se martelou a respeito do comportamento moralmente correto, socialmente apresentável e responsavelmente elogiável? Caberá a quem mostrar a medida do certo e do errado? Poderemos estar à beira de um colapso nos sistemas doutrinários religiosos, que tanto se sustentaram e remodelaram? Estarão estas novas gerações mostrando ao mundo a forma correta de viver a vida? Buscar o prazer em todas as suas formas e com todas suas consequencas seria o melhor caminho a seguir?

           

2. Fundamentação

            “A proximidade do excesso é uma prática recorrente nas histórias humanas (…) parece tão difícil aceitar que possa haver uma forma de grandeza na negatividade. Normalmente, a única perfeição admitida é a das alturas” (MAFFESOLI, 2004, p.37). Com esta colocação, Maffesoli isola bem o fenômeno ao qual pretende analisar, e que podemos relacionar ao filme Cão sem Dono, onde Ciro passa por uma profunda angústia antes de ressurgir do mundo dos 'sem dono'. Ele precisou sentir o poder da solidão completa e do abandono, precisou passar momentos de desespero, afogado no excesso do vício da bebida, para levantar e seguir em frente, dando rumo às coisas em sua vida. É disso que fala Maffesoli. O mal está associado ao bem, e pode ser um caminho para se chegar até ele.

            Sem perspectivas, Ciro vive uma vida vazia de significados, tendo como companhia apenas um 'cão sem dono' – que parece existir apenas para ilustrar o verdadeiro cão sem dono da história: Ciro. Tanto é que, ao reencontrar seu cão, na casa de seus pais – onde passou a viver novamente após sua depressão –, este acaba morrendo e Ciro o enterra. Nesse momento, ele se senta na calçada, onde fica por alguns instantes. A cena parece ilustrar a morte do verdadeiro cão sem dono que havia dentro de Ciro – dependendo sempre de alguém que indique o caminho a seguir, seja seus pais ou Marcela. “Intuição  da  sombra  e do mal  aliando-se  à  vontade  obstinada  de  viver  apesar  de tudo” (MAFFESOLI, 2004, p.47) - assim se manifesta Maffesoli, ao falar da filosofia  de Schopenhauer. A vontade de continuar é superior ao mal que possa haver na existência. Não temer viver esse mal é que fará o homem mais forte e completo. “A lembrança da morte, sua encenação barroca,  indicam que a  longo prazo o  fracasso é inelutável, a  finitude está  aí mesmo. Mas  isto  não  deixa  de dar  uma  forte  intensidade ao que  é vivido,  por  si mesmo,  em dado momento” (MAFFESOLI, 2004, p.51).

            Ciro, ao aceitar a relação com Marcela, não percebe que está entregando a ela as rédeas de sua vida, tornando-a sua guia. Mas, ao receber a informação de que Marcela irá se afastar dele, para se tratar de uma doença – a qual poderá não resistir – ele começa a perceber o espaço que Marcela ocupava em seu viver. Ciro percebe o que poderá perder se perder a companhia de Marcela – temporária ou permanentemente. E assim, ele cai em profunda angústia, numa cena repleta de significações, onde escreve seus devaneios a respeito da vida, regado a bastante álcool,  para somente depois, com a ajuda de seus pais, se reerguer.  Para Maffesoli, o poder da perda como meio de salvação é inimaginável e

encontra múltiplas modulações,  literárias,  poéticas,  mitológicas  e,  naturalmente,  cotidianas (…) Para subir é necessário descer. Cair no abismo, beber até a última gota o cálice amargo da desolação é uma forma de perda que permite o reencontro consigo mesmo. (MAFFESOLI, 2004, p.92)

            No entanto, após enterrar seu cão, Ciro deixa de ser um 'cão sem dono', passa a ser dono de suas próprias decisões, ele mantém-se vivo, mesmo após a 'própria morte' e, nas palavras de Hegel citadas por Maffesoli, “conquista sua verdade encontrando-se por sua vez no dilaceramento absoluto...” (MAFFESOLI, 2004, p.66), transformando-se, dessa forma, do “nada em ser”. (MAFFESOLI, 2004, p. 66). A partir de então, sua vida poderá ser tão sublime quanto queira, estando do lado de Marcela ou não, ou poderá tornar a passar pelo mesmo ciclo de dor e felicidade.

                       

3. Conclusão

            A obra de Maffesoli é repleta de críticas à visão doutrinária cristã, onde se afirma que a maneira correta de agir é agir em conformidade com o bem, e na qual se diz “o  que  deve ser vivido  e pensado,  como  se  deve viver e  pensar” (MAFFESOLI, 2004, p.12) . Mas o que vem a ser o bem? Não seria o mal parte integrante e engrandecedora desse bem? Para Maffelosi sim. Não se pode negar que paira na contemporaneidade um ar de incerteza frente a tantas manifestações maléficas feitas em nome do Bem, as quais pudemos perceber ao longo do século. Talvez elas próprias sirvam de testemunha do que defende Maffesoli: o mal é parte impregnada no bem. Pelo menos assim deveriam acreditar os defensores de tais barbaridades (inquisições, colonialismos, etnocídios culturais). Essas teorias do 'agir em nome do Bem' mais parecem formas de adestrar a grande maioria da população. E existem mecanismos a nível regional, nacional e internacional para garantir a efetividade da aplicação dessas teorias do 'bem' .

            Me parece que a juventude tem vivido uma forte apatia frente aos acontecimentos históricos e a todas as amarras que os seguram. São pressões dos pais,  amigos, parentes e da sociedade – na forma de suas diversas instituições (Escola, Trabalho, Igreja). Me parece mais, que eles (os jovens) tentam forçar essas amarram a se partirem, para tentar levar as coisas por um outro caminho, quem sabe melhor, quem sabe pior. Não que a juventude tenha nas mãos a salvação do mundo, mas talvez nessa fase da vida se colocam nas mentes as questões mais absurdas – e porque não dizer, inteligentes – que podem surgir. Nessa fase se questionam os totalitarismos, os certos e errados, os bons e os maus.

            Diz-se que quanto mais se prende alguém, mais o preso quer fugir. Assim parece ser com a atual juventude do excesso, que parece forjar as amarras do moralmente correto e bom, praticando atos que são considerados pela sociedade do ' bem' como condenáveis. São excessos ligados ao álcool, ao sexo e à violência. Quando não  praticam o excesso, se escondem no oposto, ou seja, no mundo da depressão e falta de perspectivas de vida, num “vazio que não  é  a mesma  coisa  que nada, mas,  antes,  condição  de possibilidade do que está por nascer” (MAFFESOLI, 2004, p.74)De toda forma, aos olhos da sociedade coercitiva, eles se entregam aos termos da 'desordem'. No entanto, o que se mostra é uma recusa (por parte destes jovens) em aceitar os termos da

dualidade tradicional da ideologia dominante, é uma tentativa de integrar no cotidiano e no vivido as dualidades e contradições da modernidade. Representa um novo modo de ser, uma busca da “inteireza de ser” e não de adequar-se a um modelo. Exprimindo as múltiplas faces do seu desejo, mesmo as mais imorais, e exercendo a sua pluralidade de papéis, mesmo os mais insignificantes, o indivíduo procura uma integração vivencial, uma participação afetiva na comunidade, no mundo  e consigo próprio. Através disto, a sombra coletiva e individual é aceita, vivida e integrada, podendo ocorrer uma “transmutação do mal”. Assim a sombra transforma-se, retira “a vida do seu torpor”, afirmando a vida em sua totalidade (SERBENA, CARLOS AUGUSTO. 2004. Resenha Crítica publicada na Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis, v. 1, n. 2.)

 

            Não me atrevo a definir um caminho para a humanidade, mas imagino que o caminho menos ligado às ditaduras do certo e errado pode render frutos generosos, baseado num vazio de significados bons/maus. “O vazio, neste sentido, é algo a ser vivido.  E é vivendo-o que podemos chegar a um sobreviver, a um  'mais viver” (MAFFESOLI, 2004, p.74).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

           

MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo: resumo da subversão pós-moderna. Rio de Janeiro: Record, 2004.

 

SERBENA, Carlos Augusto. Resenha Crítica publicada na Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis, vol.1, n°2. 2004. Disponível em: . Acesso em: 12 abril 2012.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

SCHULTZ, Adilson. A parte do diabo: provocações da sociologia maldita de Michel Maffesoli para os estudos de religião. Artigo publicado na Revista Tecer, Belo Horizonte. vol.3, nº.2. Novembro 2009. Disponível em: . Acesso em: 12 abril 2012.

 

Crítica do filme Cão sem Dono.  Disponível em: . Acesso em: 12 abril 2012.

 

Resenha Crítica do filme Cão sem Dono.  Disponível em: . Acesso em: 12 abril 2012.

 

Normas para os ensaios.  Disponível em: . Acesso em: 12 abril 2012.