ARTICULAÇÃO ENTRE POLÍTICA PÚBLICA E AGRICULTURA FAMILIAR: CONTRADIÇÕES DESAFIOS E POSSIBILIDADES ÀS MULHERES RURAIS

Gisleide do Carmo Oliveira Carneiro.

 

O público e o privado são âmbitos que se complementam. Embora sejam espaços distintos, nos quais os indivíduos integrados a um determinado organismo social interagem, eles se articulam entre si formando uma mesma dimensão duplamente facetada. O público é um espaço social de interação dos atores da sociedade que nele encontram um lócus apropriado para expressões das mais diversas naturezas. O privado é seu oposto, mas não sua negação, sendo antes uma espécie de complemento ou adendo indispensável. É nessa zona restrita da vida em sociedade que o indivíduo encontra meios de realização de seus temas mais íntimos, sendo, dessa forma, território de intimidades e de pleno domínio do individual sobre o coletivo. Privacidade, como nos afiança uma pensadora moderna que sobre esse tema dedicou atenção, significa delimitar claramente o espaço de atuação e convívio social do indivíduo (ARENDT, 2004).

Hanah Arendt (2004) diz que a interação, na Grécia antiga, entre o público e o privado não se fazia sem o indispensável auxílio da loquacidade, daí porque era tão importante, para a prática da cidadania grega, o domínio sobre as formas de expressão retórica. Por essa razão, escravos e bárbaros estrangeiros eram postos como não-habitantes da Polis: não possuíam capacidade de expressão e, por isso, encontravam-se banidos da vida pública e das assembleias, cenários onde tudo se decidia por meio da persuasão retórica. Ação e discursos eram elementos fundamentais para a constituição do homem político, do modo como o define Aristóteles (1998): o ato de encontrar palavras certas, adequadas para comunicar o que se pretende transmitir, constitui o conceito de ação.

As duas esferas eram mais do que simples zonas de atuação política. Arendt (2004) defende que a ação é uma das matrizes caracterizadoras da vida humana em sociedade. E a ação depende de uma interação com outros no seio das atividades coletivas. O agir se liga a uma intervenção política e por isso será sempre uma atividade pública que se contrapõe ao domínio dos acontecimentos da vida privada grega, na qual predominava o trabalho como uma necessidade à sobrevivência biológica ou à produção técnica. Arendt (2004) caracteriza o espaço privado-doméstico como reino do despotismo no qual o chefe familiar organizava uma micro-sociedade na qual todos viviam juntos subordinados por necessidades e carências biológicas como alimentação, proteção e um alojamento. Nessas condições, o que reina é a desigualdade: o líder do clã doméstico, no exercício de sua autoridade, priva todos os outros membros de uma ação política efetiva. O que disso tudo resulta é a constatação de que, na esfera privada, o homem se encontraria privado de uma de suas mais importantes capacidades, a ação política, ou a interação pública com outros membros do organismo social em proveito da condução da coisa pública. As esferas do público e do privado são importantes para se compreender as políticas públicas e seu significado.

As políticas públicas podem ser entendidas como o conjunto de ações e práticas de um governo, as quais influenciam direta ou indiretamente a vida de seus cidadãos (BUCCI, 2017). Também podem ser entendidas como decisões governamentais que visam tentar solucionar, de forma emergencial, situações sociais de nível problemático. Normalmente essas ações são desenvolvidas pelo Estado em parcerias com setores não governamentais, incluindo, entre elas, a iniciativa privada ou mesmo ONGs. No contexto de países de economia periférica, como o Brasil, esse tipo de ação estatal tem se mostrado recorrente devido ao acentuado grau de vulnerabilidade econômica na qual se encontram situados setores da sociedade civil e social.

O processo de formação histórica do Brasil contribuiu para o desenvolvimento de uma sociedade centrada na desigualdade social e em processos de exclusão. Parcelas significativas da sociedade foram postas à margem ao longo dos séculos tendo escassa ou nula possibilidade de ascensão econômica. Temos também neste universo, pessoas com direitos básicos negados, direitos fundamentais que poderiam contribuir para a sua formação integral como cidadãos. Muitos brasileiros não possuem meios básicos de exercício da cidadania participativa, em muitos casos por absoluto desconhecimento das prerrogativas constitucionais que lhes cabem. Nessas condições, a capacidade de intervenção do indivíduo nas arenas políticas – espaços de conflito de interesses: fóruns, conselhos, conferências –, fica seriamente comprometida ou mesmo impossibilitada dado que a maior parte das suas energias encontra-se direcionada para solução de problemas elementares para manutenção da sobrevivência. O fim último das aplicações de políticas públicas reside na execução do bem-estar comum da comunidade e, por isso, exige-se, tendo em vista um maior grau de eficiência, atores políticos comprometidos com a coisa pública (BUCCI, 2017). Ao menos essa é uma perspectiva teórica que não corresponde necessariamente a uma aplicação efetiva e real.

Políticas públicas se fazem necessárias em um contexto econômico como o do Brasil porque a condição de desassistência, de despreparo e de ausência de recursos educacionais mínimos que proporcionem o desenvolvimento de uma postura social crítica se fazem ausentes na maioria dos círculos sociais, notadamente os de baixa renda, que constituem a maioria.

A garantia de exercício de um básico elementar, como o de viver isento de preocupações com a manutenção física da existência – portanto, exercitando um bom viver, na atual conjuntura político econômica nacional –, não é um direito extensivo a todos, restringindo-se na prática à uma pequena minoria. E essa realidade se faz ainda mais presente nas áreas rurais onde uma multidão de pequenos agricultores sobrevivem em precárias condições de existência material. Impossibilitados de acesso à uma educação que lhes permitisse adquirir um instrumental que os inserisse no mercado formal de trabalho. Desse contingente, muitos se veem obrigados, por força das circunstâncias, a viver sob amparo da assistência pública, que fornece complementos financeiros por meio de programas de transferência de renda.

Esse tipo de auxílio estatal acaba sendo uma faca de dois gumes, pois, ao tempo que funciona como auxílio e incentivo – ou seja, como uma garantia de que o cidadão não será exposto à ameaça de completa degradação financeira –, com o tempo pode comprometer a dignidade do assistido pelos programas sociais do Estado. Um longo período de permanência, atrelado a um programa de assistência, pode deixar o indivíduo marcado, em razão da perda da dignidade, e deixá-lo com sentimento de degradação por não conseguir manter a própria subsistência. Nos recentes governos petistas de Lula e Dilma Rouseff houve um grande processo de distribuição de renda via programas sociais (Bolsa família, por exemplo). Embora a quantia não fosse das mais significativas, ele se caracterizou como uma reparação socioeconômica sobre uma parcela da população que se encontrava abaixo da linha de pobreza. O programa Bolsa Família não incorreu no erro de parecer que se tratava de uma simples “doação” governamental. Um dos critérios estabelecidos pelo programa, o da frequência escolar pelas crianças ligadas às famílias assistidas, contribuiu para a construção de aspecto de seriedade que não se vinculava apenas a uma mera transferência de valores monetários ao estilo de assistencialismo.

Nesse sentido, políticas públicas devem estar voltadas para o fortalecimento de laços de pertencimento locais; ao favorecimento de atividades econômicas que incentivem a produção local fortalecendo matrizes identitárias regionais que concedem fundamento simbólico ao existir do homem em comunidade, notadamente pequenas comunidades rurais. Esse processo pode se desenvolver a partir de incentivos financeiros aos sistemas de produção local. Fortalecer práticas e fazeres locais implica no revigoramento econômico e também sociocultural na medida em que concede poder de atuação e intervenção sobre a realidade circundante e concede aos cidadão um grau mínimo de emancipação. Na medida em que o indivíduo desenvolve ou adquire meios de subsistência própria, ele se vê livre da ameaça de ter que abandonar seu local de habitação em demanda de melhores condições de vida em outras localidades urbanas. O que, por sua vez, gera um fortalecimento dos laços de pertencimento local. A produção de renda concede ao indivíduo um sentimento de autonomia que o estimula a se fixar num dado ponto.

Sentimento de perda de dignidade, resultante da constatação de incapacidade de suprir as próprias necessidades de subsistência, pode acarretar consequências duradouras tanto do ponto do indivíduo quanto do efeito de desagregação sobre o corpo social do qual o cidadão é parte integrante. O estudo de Guerin (2005), que embora tenha se centralizado numa comunidade europeia, pode ter suas conclusões estendidas para um contexto exterior, demonstra o quão nocivo pode ser o efeito de um prolongado período de atrelamento a uma linha de programa de assistência social do Estado, desvinculado de programas outros que incentivem a autonomia financeira.

Não apenas esse sentimento de vergonha e de culpa é difícil de ser vivido, mas ele tende também a inibir capacidades cognitivas de homens e de mulheres, no sentido de que impede toda projeção de futuro e, às vezes, toda tomada de decisão, provocando, então, atitudes contraditórias. O direito a ter direitos elementares básicos é negado a parcelas significativas da população. Situação esta que cria não apenas incertezas quanto ao futuro imediato em termos de sobrevivência, mas também compromete a capacidade de projeções mais amplas. As energias dos indivíduos se voltam quase que exclusivamente para o agora e para questões ligadas ao existir imediato: 

[...] A ausência de projeção no futuro – quando o futuro se mostra muito incerto e triste, que projeção pode haver? – torna ainda mais complicada a capacidade de estabelecer um orçamento, uma poupança e, portanto, um controle de contas. A ausência de confiança em si torna difíceis as negociações com as administrações públicas. (GUERIN, 2005, p. 137). 

Por estas e outras questões aqui já discutidas, o Estado deve buscar estabelecer políticas públicas direcionadas para a realidade da imensa população que vive nas zonas rurais do país. O intuito desses programas deve ser o de buscar alterativas para enfrentamento direto da pobreza e de geração de emprego e renda, elementos indispensáveis para o desenvolvimento de um senso de dignidade da pessoa humana. É fundamental que, por meio dessas ações, sejam encontrados mecanismos de combate à exclusão sócioespacial e sejam viabilizadas novas formas de trabalho. A realidade na qual vivem pequenos agricultores, ligados à tradição agrícola familiar, é da precariedade e escassez de recursos básicos. O quadro geral de crise econômica, que assola o país nos últimos anos, na zona rural se mostra muito mais acentuado, dado às condições de histórica desigualdade entre campo e cidade, desde os primórdios da colonização (MOURA, 2005). O processo de formação histórica do Brasil colonial privilegiou o povoamento a partir do litoral – zona inicial de presença de núcleos de colonizadores – para o interior. Em regiões, como o Nordeste do país, esse processo foi ainda mais nefasto para as gerações futuras. O sistema econômico adotado foi o de exploração da terra que se concentrava em mãos de poucos. Como resultado disso surgiram os grandes latifúndios e a profunda desigualdade social. Restou para a maior parte da população poucas possibilidades de sobrevivência (FAUSTO, 2015). Aqui, defende-se que uma geração de trabalho e renda, associada a um desenvolvimento local sustentável, deveria ser a grande contribuição de políticas públicas para essas áreas interioranas.

Em seu estudo, Aguiar (2016) demonstra que tem se acentuado nas últimas décadas as intervenções de movimentos sociais de mulheres rurais no espaço público. E essas intervenções contribuem para o reconhecimento delas como sujeitos históricos. A atuação e interferência nos assuntos púbicos, aqueles que dizem respeito ao viver em sociedade, concedem visibilidade social a seus atores e protagonistas. De Paula e Chaguri (2018) alertam para o fato de que apesar desses recentes envolvimentos com questões sociais, as mulheres, grosso modo, ainda se encontram em condições de subalternidade nas sociedades rurais, principalmente no que se refere à titulação de posse de propriedade rural.

No âmbito geográfico, abarcado pela presente pesquisa – comunidade da Barra, município de Ichu – as observações teóricas anteriormente elencadas são perfeitamente aplicáveis ao contexto de desenvolvimento econômico local. As políticas públicas de incentivo ao desenvolvimento regional de pequenos produtores de agricultura familiar representam importante contribuição para o fomento de algumas iniciativas dos pequenos empreendedores que agem em sistema de ação cooperativa. A ação empreendedora individual, nesse contexto, não se mostra capaz de subsistir isoladamente e sem auxílio de incrementos financeiros ou auxílio técnico público.

No que se refere especificamente à comunidade em estudo, foi possível constatar que foram realizadas modificações nas condições materiais de existência das empreendedoras coletivistas, que receberam incentivo estatal por via de acesso à políticas públicas, conforme se pode notar nos trechos dos depoimentos dados por Aliene Araújo e por Livânia Maria Dias, respectivamente, mulheres associadas ao empreendimento Nossa Polpa/participantes do empreendimento solidário. [...]