Uma sociedade isenta de preconceitos não passa de uma mera utopia pueril mesmo porque, qualquer posicionamento a favor da religião, família, política, ideologia, ciência, pátria, cultura, normas de asseio, etc, não está isento da sensação, da emoção e do sentimento que levam à opinião e à ação preconceituosa. Conseguintemente, ter preconceito faz parte da natureza humana assim como ter inveja, preguiça, raiva, tristeza, vaidade, alegria, amor, felicidade, arrogância, dentre outros. 

                Levando-se em consideração que a palavra preconceito resulta da fusão entre pré e conceito e que pré significa "antes" e conceito como "algo que a mente concebe", é compreensível que nos perguntemos: "Antes do que a mente concebe as ideias que concebe?" Conforme a maioria das definições vigentes no dicionário poderia-se dizer que é antes dos fatos, mas a este respeito o filósofo empirista David Hume (1) já nos adverte que "não há nada em nossa mente que já não tenha estado em nossos sentidos". Isso significa que um preconceito se forma com base em fatos.

                   Mas se é em base em fatos, por que rechaçamos os preconceitos com tanta veemência?

                   Porque apesar destes não serem formados na total ausência dos fatos, eles são formados através de uma consideração parcial dos mesmos. É um tipo de falácia indutiva onde partindo-se  de alguns exemplos fornecidos pela experiência particular faz-se generalizações precipitadas.

                   O preconceito também não é coisa que se dá só de forma depreciativa de A em relação a B ou de B em relação a A. Estamos tão absorvidos em destacar o significado negativo desta palavra que nos esquecemos do seu significado positivo. Um exemplo clássico e relativamente recente que pode ilustrar o viés tanto negativo quanto positivo da mesma, deu-se na segunda guerra mundial. Os alemães nutriam preconceitos raciais negativos em relação aos judeus mas, ao mesmo tempo, nutriam preconceitos raciais positivos em relação à raça ariana da qual se gabavam de pertencer. Outro exemplo que faz parte do dia a dia da maioria das famílias é o dos preconceitos positivos que os pais, quase sempre, nutrem em relação aos filhos. É mais fácil uma mãe ocultar o seu filho criminoso da justiça, do que entregá-lo pois tem, em mente, o preconceito de que ele é uma boa pessoa.

                  Está claro portanto, que não há como se conceber um ser humano normal sem se admitir que o mesmo carrega uma certa bagagem de preconceitos dentro de si. Até mesmo aqueles que se anunciam  como sendo destituídos de todo preconceito não passariam no teste já que temos preconceitos de natureza sensorial. Muitos dos alimentos que consideramos agradáveis ou desagradáveis devem-se a preconceitos adquiridos através do costume. O preconceito que adquirimos em relação a certos odores surgiu de estudos científicos que levaram às normas de higiene e de saúde pública pois, apesar do cheiro de certas substâncias não ter efeitos deletérios à nossa saúde o que vêm com eles, muitas vezes, tem. Na idade média, por exemplo, não havia sistema de esgoto e cidades como Londres e Paris eram grandes depósitos de lixo e excrementos humanos. As pessoas conviviam com o mau cheiro e isso não as incomodava.

                 Fica assim estabelecido que preconceitos existem em abundância e se dão de forma negativa ou positiva em relação a pessoas, coisas, hábitos, costumes, outros seres vivos, etc. Resta agora estabelecer em que situações deveríamos considerá-los como crime.

                     Primeiramente é preciso mencionar que os seres humanos em suas interações sociais se expressam de cinco modos que se dão através da fala, dos gestos, das atitudes, da arte e da escrita. Não menciono os recursos tecnológicos, porque todos eles guardam uma relação com estas cinco maneiras. Isso significa que não é possível comunicarmos a nossa inclinação preconceituosa a não ser através de um destes modos. Por outro lado, nem todo modo de expressar nossas inclinações preconceituosas deveria criminalizar-nos.

                     O parâmetro necessário para que se faça esta distinção é a prejudicidade ou seja: se através de algum ou de alguns destes modos de expressar as nossas inclinações preconceituosas formos capazes de causar danos a alguém, então não deveremos empregar tal modo para não sermos criminalizados.

                     Sendo assim temos que verificar de que modo ou até que ponto dentro destes modos podemos expressar nossos preconceitos sem causar prejuízo aos outros.

                     Começando pelo exame da fala, o que se pode depreender é que esta não passa de som emitido pelo ser humano, cujo significado depende da compreensão das normas de articulação da mesma por meio da linguagem. Dito de outra forma, uma fala só tem efeito sobre o sujeito se ele conhecer o seu significado que é dado através das normas de articulação deste som, mais conhecido como linguagem. É por isso que uma fala em um idioma que não compreendemos - por mais preconceituosa que seja -  não tem efeito sobre nós.

                    A fala que chega ao ouvido do sujeito não é capaz de produzir nenhum dano ou prejuízo a este porque o falante não fere o ouvido do ouvinte, ou qualquer outra parte do corpo, deste, ao falar. A compreensão do que foi falado depende da compreensão das normas linguísticas e a importância dada não passa de mera transformação na mente do ouvinte.

                  Bem, tendo estabelecido que a fala em si não pode causar dano ou prejuízo, é perfeitamente lógico concluir que não podemos criminalizar ninguém por ter uma fala preconceituosa.

                        O problema que existe e que é atribuído à fala, não se deve à mesma mas sim ao falante e ao ouvinte, quando estes deixam de falar e ouvir e partem para a ação agressiva da qual deriva o dano. Consequentemente, se for o ofensor ou o ofendido ou se forem ambos os autores da ação agressiva e prejuducadora, tanto numa situação como na outra, deve haver criminalização. Porém se ofensor e ofendido se mantiverem apenas no plano da disputa e das ofensas verbais ambos não serão prejudicados o que exclui a criminalização.

                        Alguns poderão objetar que existem pessoas que exercem poder de persuasão sobre os outros por meio da fala, do discurso e que por esse motivo elas deveriam ser responsabilizadas pelas atitudes destes, mesmo sem ter feito nada. Sobre isso há que se dizer que "só nascem coisas se o campo é fértil" ou seja: o ouvinte simpatizante ou antipatizante só é levado à ação, pelas palavras preconceituosas do falante, quando carrega em si o gérmen do preconceito ou do ressentimento.

                 Voltando ao exemplo de Hitler, vemos que em seu livro "Minha Luta" (2) ele diz: "Falei trinta minutos e aquilo que antes, sem o saber, havia sentido intuitivamente estava provado: eu sabia discursar." Esta conclusão de que "sabia discursar" não tem outro significado senão o de que o discurso feito por ele tinha efetividade e era contagiante por estar em consonância com os anseios e sentimentos nutridos pelos alemães naquele dado momento histórico pois se assim não fosse, não haveria nenhuma repercursão.

                A tensão gerada na população alemã em decorrência das decisões do Tratado de Versalhes, após a primeira guerra mundial, estava no seu clímax e na eminência de extravasar. Faltava-lhe apenas a diretriz que foi fornecida pelo discurso preconceituoso de Hitler. A ascensão dele teria sido evitada se as atitudes e não os discursos dos outros países após a primeira guerra mundial tivessem sido menos prejuduciais ao povo alemão. Há que se admitir também, que se Hitler tivesse se mantido apenas no âmbito da linguagem e do discurso preconceituais, sem empreender nenhuma ação, não poderíamos culpá-lo pelas atitudes tomadas pelos alemães após ouvi-lo. O problema é que ele também não se restringiu ao discurso.

            Se queremos que a democracia realmente floresça com toda pujança e diversidade, que a censura impede, temos que dar espaço para aqueles que têm um discurso preconceituoso, contanto que os opositores também tenham esse espaço e que isso não culmine em ação prejudicadora. Só assim, por mais paradoxal que pareça, cria-se a possibilidade de se dissuadir o preconceituoso. Proibir as falas preconceituosas pode gerar mais ódio e mais ressentimento.

               Quanto às demais modalidades de expressarmos nossas inclinações preconceituosas nas interações com os outros, tais como os gestos, a escrita e a arte, elas se encontram na mesma categria das falas. Já as atitudes - que aqui considero como sendo aquela moção dos ser humano para a concretização de algo - se forem de cunho preconceituoso como a discriminação, a militância racista, a agressão, a hostilidade, a intolerância, etc, devem ser criminalizadas, assim como as atitudes preconceituosas em relação aqueles que se manifestam, somente, pela fala preconceituosa.

Bibliografia:

1. Tratado da Natureza Humana. David Hume - Editora UNESP

2.  Minha Luta. Adolf Hitler - Editora Moraes Ltda.