Com a evolução do ser humano, o homem percebe que ele também tinha o poder de construir. A sua evolução lhe permitiu capacitar-se e desenvolver novas ideias de como viver. As cavernas e os abrigos naturais não mais atendiam às necessidades das tribos e a partir daí, o homem inicia o processo de construção das primeiras moradias. Com o tempo, essas moradias primitivas evoluíram para algo mais sofisticado e o homem começa a transformar a matéria prima que o meio lhe oferecia para construir as primeiras edificações de barro, de adobe e em pedra. Aparecem então as primeiras vilas e povoados. Com o passar dos séculos, o homem aprimora sua habilidade de construir e as novas técnicas lhe permitem melhorar as edificações. Com as moradias aparecem os templos, os palácios, as arenas, os largos públicos e os edifícios do Estado. Através desse processo construtivo o homem cria as primeiras cidades.

Mesmo que primitivas, essas cidades fazem estabelecer uma série de relações humanas, antes inexistentes. Então, o homem não só se inter-relaciona com as pessoas, mas também com a cidade. Com o aparecimento da “estrutura urbana”, o homem se vê obrigado, a partir de agora, a lidar com as diferentes interfaces que essa nova estrutura concreta e social faz surgir. No início essas relações eram meramente de trabalho e religiosa. A relação de trabalho era baseada, quase na sua totalidade, na servidão ou no trabalho escravo. A doutrina religiosa possuía também um caráter impositivo de crenças, tabus, leis e deuses. Nas sociedades primitivas, também chamada de comunas primitivas, nem o trabalho e nem a religião possuíam um aspecto de opressão. Porém, a partir da evolução da sociedade, esse dois setores da atividade humana adquirem um caráter de dominação e consequentemente de poder. O homem que era livre para caçar, pescar e compartilhar com sua tribo o que ele produzia, perde essa condição de liberdade e passa a ter uma função predeterminada na sociedade com a aparecimento das cidades e das estruturas sociais mais complexas. Função essa, que é determinada a priori ao nascimento das pessoas. Isso porque a partir desse momento o sistema social registra o aparecimento de classes sociais. Não estamos dizendo aqui que as cidades criaram as classes sociais, não é isso. Porém, com a evolução da sociedade e do modelo econômico, as classes sociais aparecem em função da relação de trabalho e dos meios de produção. O poder da “Cidade-Estado” de então estava nas mãos do Imperador e este detinha o poder pleno sobre todos os bens e sobre a população. Basicamente existiam predominante quatro classes sociais: a classe dominante representada pelo senhor rei e a realeza, a classe religiosa dos sacerdotes, a classe trabalhadoras e a dos escravos. Os impérios da Babilônia e dos Assírios aparecem entre os primeiros impérios cidade-estado. A partir da criação das cidades e dos sistemas sociais, o homem que queria ser livre, teria que viver fora delas. Isso porque as inter-relações criadas com as cidades e as suas estruturas sociais pré-estabeleciam regras, status quo e funções para cada indivíduo que nelas viviam. Ironicamente, o homem evolui e criou estruturas e leis para aprisionar o próprio homem. O império romano é se sobressai como o melhor exemplo desse tipo de organização social e econômica com uma duração cerca de 1500 anos. Mas podemos citar os impérios Inca, Persa, Turco (Otomano), Macedônico, Chinês e muitos outros.

As cidades evoluíram para se tornarem impérios, e a finalidade desses impérios, que apareceram a partir de sistemas sociais mais complexos, era o poder e a dominação. O homem passa a saborear imensamente a concepção de que ele, através da dominação e exploração do trabalho do outro ser humano, pode obter grandes benefícios para si e sua família. É em meio a essa dinâmica de dominar e dominado que muitas cidades aparecem e desaparecem no mundo antigo. Mesmo antes da era cristã, certas cidades já apresentavam uma complexidade social, filosófica, política e tecnológica invejável. As cidades gregas e romanas são grandes exemplos de tamanha prosperidade e complexidade no continente europeu. As cidades incas e astecas no continente americano são também extraordinários exemplos. Os avanços alcançados nas cidades greco-romanas influenciaram muitos aspectos das cidades modernas. Os templos, os teatros, os edifícios públicos e as praças têm influenciado gerações e gerações de povos até nos dias de hoje. Isso acontece porque essas estruturas urbanas provaram ser irrefutavelmente de grande importância para o funcionamento da sociedade e das cidades. Elas criam relações importantes para a dinâmica social e para a evolução da sociedade. Sem essas relações nós seres humanos estaríamos vivendo até o momento na idade primitiva. E nossas cidades não teriam a complexidade que possuem nos dias de hoje.

Pois bem, com a queda do império romano e o início da idade média, o período negro se estabelece sobre as sociedades da Europa e parte do oriente. Essas sociedades passaram a sofrer um longo período de estagnação em todos os setores da atividade humana. As duras leis e tabus da igreja católica tornam estéril a criatividade humana e sucumbiu a descoberta científica ao submundo. Agora os homens haviam perdido não somente sua liberdade de trabalho e religiosa, mas também a liberdade da criação. Porque tudo era determinado pela igreja e as leis de Deus. As cidades e a sociedade humana só restabelecem uma dinâmica de criatividade e desenvolvimento a partir do século XV. Com o princípio do restabelecimento da criatividade e do questionamento humano, um novo período se inicia para a raça humana. As novas ideias fazem surgir uma nova ordem social, e essa por sua vez proporciona mudanças nas civilizações, em especial nas sociedades ocidentais. O iluminismo traz para a ciência o pensamento racionalizado e diz que a crítica e a filosofia devem se basear no princípio racional e científico e não nos dogmas estabelecidos pela igreja. Esse movimento global se infiltra em todos os aspectos do pensamento humano. E como não poderia deixar de ser, as cidades foram fortemente influenciadas por esse movimento. Com o renascimento cultural, artístico e científico, as cidades sofrem transformações de toda ordem. Porém, o que se iniciou com as teorias de liberdade, justiça e igualdade para todos perante as leis, chega ao seu pico com a revolução industrial. Um período de descobertas e de crescimento do liberalismo. Aonde os donos das fábricas escravizam seus operários a todo custo em nome do lucro e do livre comércio. As cidades sofrem no decorrer de um século um processo de super população com a migração das sociedades rurais para os centros urbanos industriais. Como consequência, as cidades sem as condições adequadas de acomodar essa enorme massa de mão-de-obra, sofrem um processo de degradação e deterioração de seus sistemas urbanos. Sem um sistema de saneamento adequado capaz acomodar a crescente população, sem moradias suficiente e sem um sistema de saúde para todos, as cidades adoecem. Inúmeras epidemias aparecem castigando a massa operária e resto da população. A promiscuidade habitacional e a falta de assistência médica para todos, fazem com que as cidades se tornem caóticas. A poluição das fábricas, com a queima constante de carvão para propulsão dos motores e máquinas, em pouco tempo cobre as cidades. A miséria nos guetos urbanos e as doenças em massa faziam com que as cidades se tornassem um lugar insalubre e disfuncional. É daí que aparecem as primeiras ideias revolucionárias de Karl Marx e Friedrich Engels, as quais ditam que as classes proletárias devem se organizar para construir uma nova ordem social mais justa com a distribuição dos bens de forma igualitária. Os movimentos operários e a organização dos sindicatos forçam a classe dominante e o Estado a criar programas habitacionais para a classe trabalhadora, melhorar o sistema de saneamento público e melhorar as condições de trabalho. Pela primeira vez na história são escritas as primeiras leis trabalhistas.  Apontada como a primeira lei trabalhista, o Moral and Health Act foi promulgado na Inglaterra por iniciativa do então primeiro-ministro, de Robert Peel, em 1802. E assim, mais uma vez as cidades sofrem novas transformações para se adaptarem a nova ordem social e econômica que se estabelecia.

As cidades contemporâneas continuam a se transformarem e adaptarem às novas demandas da sociedade moderna. Nesse processo de constante reconstrução das cidades observamos dois aspectos importantes. O primeiro é o da reurbanização. Isto é, a reorganização das cidades para que elas sejam capazes de atender às necessidades da vida moderna. Quando essa reurbanização é construída sob um forte apelo social, chamamos esse processo de humanização das cidades. O segundo aspecto é a manutenção e preservação do acervo histórico. Essa preservação possibilidade a manutenção da memória histórica de cada povo. Se olharmos as nossas cidades de hoje, podemos perfeitamente observar que elas trazem as “memórias” do passado. Isso quer dizer que elas trazem traços do que foi construído e descoberto através dos séculos. Mesmos as cidades construídas no século XX trazem essas “memórias” do passado. Isso acontece porque ninguém constrói nada do nada. Tudo é baseado em experiências passadas. Aldo Rossi chama essa memória urbana de “fatos urbanos”.

Rossi escreve: “A concepção dos fatos urbanos como obra de arte abre caminho para o estudo de todos aqueles aspectos que ilumina a estrutura da cidade. A cidade, como coisa humana por excelência, é constituída por sua arquitetura e todas aquelas obras que constituem seu modo real de transformar a natureza”.

Muitas cidades brasileiras que nasceram no início do século XX, longe do ambiente europeu, trazem várias características das cidades dos séculos XVIII e XIX desse continente. Isso porque vários dos nossos arquitetos estudaram na Europa e grande parte da população imigrante veio desse continente. Assim, traziam as experiências arquitetônicas, urbanísticas e cultural do continente europeu para o Brasil. Como temos uma ordem social, cultural e política distinta dos países europeus, as nossas cidades foram adaptadas às nossas condições. Podemos assim dizer que o homem molda as cidades e as cidades moldam o homem no decorrer da história. Assim, o homem por ser um ser social, faz da relação homem-cidade mais do que uma coisa inerente, ela representa a continuidade e a evolução da espécie. Por isso a cidade não pode ser roubada dos homens. Se isso acontecer, a sobrevivência do ser humano estaria seriamente comprometida. Isso porque, nós seres humanos, abandonamos as selvas e as cavernas há milhares de anos atrás e não saberíamos como sobreviver sem as estruturas e as comodidades que as cidades nos oferecem.

Imaginemos nós humanos desprovidos das estruturas e sistemas criados com as cidades? As sociedades urbanas modernas vivem em estruturas urbanas por demais complexas e é praticamente inimaginável conceber a vida moderna sem elas. Outro aspecto dessa equação é que todas essas estruturas estão inter-relacionadas numa malha de sistemas de comunicação que vão além do nosso território imediato. As redes de comunicação, as cotações e índices de mercado e as bolsas de valores ao redor do mundo estão intimamente conectadas. Se algo acontece na China, sentimos os efeitos de imediato aqui no lado ocidental. Por causa desses sistemas de comunicação operantes atual, as disparidades entre o campo e as cidades estão cada vez menores nos países mais desenvolvidos. Devido a esse fenômeno, um número cada vez maior de pessoas está voltando a morar em pequenas comunidades, ou mesmo em regiões rurais. Mesmo com esse movimento migratório da população urbana, as estatísticas indicam essa população ainda tem fortes laços trabalhistas com os grandes centros urbanos. Com o inchamento das cidades e os custos cada vez mais altos de se viver nesses centros, as pessoas começam a migrar de volta para as áreas rurais ou pequenas comunidades vicinais às grandes cidades. As linhas férreas de grande velocidade e a farta malha rodoviária possibilitam esse processo em inúmeras cidades. Outro fenômeno que ocorre com a informatização do trabalho e de negócio, é a possibilidade de se trabalhar em casa. Em países da América do Norte, Europa e Ásia essa prática já se tornou corriqueira através dos escritórios virtuais chamados de SOHO (Small Office and Home Office).

Essa nova onda de mudança comportamental urbana está alterando não só as relações das pessoas, mas como elas se interagem com as cidades em que vivem. Uma consequência direta desse novo comportamento são as relações cada vez mais frágeis entre as pessoas. O contato predominante da inter-relação urbana passou a ser apenas a relação de trabalho. Aquela relação mais completa e mais íntima entre as pessoas está deixando de existir em muitos centros urbanos. As antigas comunidades, por anos sedimentadas, aonde as pessoas se conheciam e se relacionavam de maneira bem mais holística estão aos poucos desaparecendo. Outro impacto direto na vida das cidades é a transformação de suas áreas centrais. Os centros comerciais e de negócios estão se transformando em áreas desertas ou áreas obsoletas. Diante desse fenômeno comportamental urbano, as incorporadoras e empresas de construção civil descobriram nessas áreas, novas oportunidades de novos negócios. Os antigos prédios de escritórios e firmas comerciais estão sendo transformados em imensas torres habitacionais para pessoas solteiras ou casais sem filhos.

No Brasil esse fenômeno acontece de forma distinta. A criação dos condomínios residenciais horizontais tende a atender basicamente a duas premissas: o da segurança e a do contato com o verde sem a presença dos altos muros entre as casas. Porém devido a nossa condição econômica extremamente desigual e uma segmentação social ainda bastante profunda, essas comunidades são restritas às classes sociais mais privilegiadas. Para a classe média assalariada e para a classe pobre trabalhadora, as opções são bem menores. Porém há um crescente movimento de pessoas da classe média que estão deixando as áreas mais centrais das cidades à procura de uma vida mais tranquila e mais saudável em áreas campestres.

É irrefutável como a informática aparece como elemento catalizador importante na transformação comportamental do homem com o seu meio. A informática não só facilita essa mudança das pessoas e das atividades de negócio para outras áreas, como também estabelece uma nova relação entre as pessoas e as cidades. O êxodo rural que se verificou por décadas no passado inchando as cidades, agora testemunhamos um processo ao reverso. Um crescente número de pessoas está deixando as cidades em busca de uma vida no campo ou em comunidades menores. Essa nova onda migratória está definindo os caminhos das inter-relações das pessoas e como nós seres humanos nos relacionamos com as estruturas urbanas.

Esse processo migratório irá desinchar as cidades?

Acredito que não. Pelo menos não num futuro a médio prazo. Acredito que existem alguns aspectos fundamentais a serem considerados. O primeiro fator é que não existem empregos em número suficiente para todos fora das cidades. Em segundo lugar, caso haja um esvaziamento dos centros urbanos de modo mais expressivo, haveria uma falência impactante na área imobiliária, no setor da construção civil, no setor fiscal e nos vários sistemas de infraestrutura já implantados nos centros urbanos. Em terceiro lugar, eu diria que essa migração se torna bastante difícil para as classes menos favorecidas que dependem diretamente dos empregos existentes nas cidades e em seus bairros. Outro aspecto a ser considerado é que, se isso de fato ocorrer, é as cidades se alongariam muito horizontalmente, e isso não seria prático nem econômico. Porém, não se pode negar que esse fenômeno já acontece, mesmo que numa escala ainda não tão expressiva. O que temos que ter como perspectiva é que as cidades são estruturas vivas e dinâmicas. Mesmo que haja um crescente processo de migração para o campo, sempre existirá mercado e demanda para imóveis dentro das cidades. Isso porque não podemos simplesmente abandonar toda estrutura existente em nossas metrópoles. Simplesmente não funciona assim.

No caso das grandes cidades dos países desenvolvidos, em especial das cidades norte americanas, acredito que o movimento de migração para o campo tende a crescer e que os núcleos das cidades sofrerão profundas mudanças. Enquanto que para as cidades brasileiras, existe uma forte tendência de deterioração das estruturas urbanas e em especial para as áreas centrais dos grandes centros. A menos que haja um processo radical de revisão das políticas existentes para o desenvolvimento das cidades, do planejamento familiar e o modelo econômico, não há um futuro muito animador para a relação da população com as cidades.

Acredito que essas futuras políticas precisam dar à sociedade diretrizes disciplinares para que haja um maior equilíbrio populacional diante da distribuição de renda e da inclusão social. O modelo existente se mostra ineficaz para as respostas às mudanças que se anunciam.  Sem essas reformas e sem a adoção de um modelo econômico mais horizontal, é bastante difícil vislumbrar um futuro mais promissor paras as nossas cidades.

 Arq. Avelino Neto