É discurso recorrente em qualquer abordagem ou raciocínio que envolva o tema “Polícia”, as tristes lembranças dos tempos em que vivemos sob a égide de um Estado autoritário.

De toda sorte, é indeclinável um breve escorço histórico ou considerações pontuais dos tempos de antanho, colimando fundamentar os argumentos, ou tão só para que jamais esqueçamos o que se não deve repetir.

Não obstante outros períodos históricos, tendo em vista a inarredável objetividade pretendida, são de todo pertinentes algumas elucubrações acerca do golpe militar de 1964, recrudescido com o chamado “milagre econômico”, e findo com a eleição indireta pelo colégio eleitoral do primeiro presidente civil pós-golpe, o mineiro Tancredo de Almeida Neves.

O falacioso argumento de que o então presidente João Goulart flertava com o socialismo e que estaria na iminência de implantar ventilado modelo de Estado, constituiu-se em discurso que incutiu temor à população, “legitimando” um governo de exceção, suprimindo-se direitos e garantias que vinham sendo conquistados arduamente.

O que era para ser paliativo e transitório, conforme prometido pelos próprios militares, tornou-se permanente, encontrando o regime excepcional seu auge no governo do General Emílio Garrastazu Médici.

A abertura política foi lenta, e recebeu os primeiros pálios de luz com o presidente Ernesto Geisel, que revogou o malfadado Ato Institucional nº 5 (AI-5), mas que ainda precisou endurecer e retroceder de algumas decisões que preparavam o terreno para a normalidade.

É nesse contexto histórico de ditadura militar que a Polícia adquiriu dísticos e rótulos que perduram até hoje, configurando quase uma marca indelével e intransponível.

A polícia daquela época era inegavelmente a “Polícia do Estado”, configurada e arregimentada para manutenção do poder, uma ferramenta de opressão contra os que ousassem a questionar ou simplesmente satirizar o governo.

Quadra constar, que no Brasil há uma forte tendência em supervalorizar o Poder Executivo em detrimento do Legislativo, que é o legítimo poder majoritário e é apanágio de um sistema de representação popular.

Como consequência, temos um campo fértil para governos populistas, muitas vezes divorciados do parlamento, e que, para dissimular seu despotismo, inundam o povo com direitos sociais, a exemplo do que fez Getúlio Vargas.

No caso dos militares, como é comum ocorrer nos governos de exceção, lançou-se mão de um plano salvador, uma panaceia para todos os males. Com a ala militar denominada “linha-dura”, capitaneada pelo presidente Médici, levou-se a efeito o famigerado “milagre econômico”.

Não há como afirmar se a Polícia daqueles tempos era arbitrária no conceito legal do termo, pois tudo era engendrado e executado sob os auspícios do governo, que era sim um Estado de Direito, como era a Alemanha de Hitler, por exemplo.

A pretexto de salvaguardar o Estado, e dentro da óptica daquele regime que assombrou e marcou negativamente o país, a Polícia cometeu todo tipo de excesso, impingindo perseguições, e torturas de toda a ordem.

A criação de órgãos como DOI-Codi (Destacamento de Operação de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna), do II Exército, o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) e o DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), é a mostra de como o Estado se aparelhou, preparou-se para manter os golpistas no governo, tão logo saíram dos quartéis e se enamoram do poder.

Ambas as polícias ficaram marcadas por sua atuação nesse período, a Polícia Militar por sua truculência na ruas, a Polícia Civil por seu métodos cruéis de investigação nos porões iníquos das Delegacias.

Veio a redemocratização, conceito nesse caso até duvidoso, que pressupõe termos sido uma democracia antes do golpe, o que, em tese, não é propriamente um axioma, se considerarmos que por pouquíssimos momentos tivemos uma democracia, e em qualquer caso, uma débil democracia, mercê de qualquer brisa.

A Constituição de 1988, de cunho eminentemente democrático, a primeira que trouxe antes mesmo dos poderes e estrutura do Estado, os enunciados sobre os direitos e garantias fundamentais, verdadeiro arcabouço do Estado Democrático de Direito, não só Estado de Direito, traz supeditado a soberania popular, conforme assentado no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

A partir dessa nova realidade, a Polícia vem tentando resgatar sua verdadeira identidade teleológica, buscando se firmar como “Polícia do cidadão”, e não do Estado, sendo que uma das suas diretrizes é ser mais pró-ativa e menos reativa.

Em que pese os esforços para que a população mude o seu conceito com relação à Polícia, e faça com que a comunidade enxergue nos policiais antigos amigos que saíram da própria sociedade para cumprir o mister de guardiães da ordem, e das garantias e liberdades individuais, procedendo para que a criminalidade permaneça em patamares toleráveis segundo contribuição de toda a coletividade, urge a revisão, por exemplo, do conceito mais ideológico de “polícia cidadã”, ou seja, discutir se os seus destinatários gozam de cidadania plena, quem são seus verdadeiros destinatários, e mais, se os próprios policiais são dotados de cidadania plena.

Em países como o Brasil, denotam-se que os direitos sociais antecederam ao direitos civis e políticos, sendo que a própria liberdade no Brasil, que é um direito fundamental de primeira geração ou dimensão como preferem alguns autores, não foi um primado absoluto em nosso solo, bastando destacar o que preleciona José Murilo de Carvalho: “ Muitos libertos possuíam escravos. Dava-se até mesmo o fenômeno extraordinário de escravos possuírem escravos. Esses dados são perturbadores. Significam que os valores da escravidão eram aceitos por quase toda a sociedade”. (José Murilo de Carvalho. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, pp. 48-49).

Tal assertiva encerra algumas consequências, já que o quarto Estado, ou o proletariado, ou simplesmente os trabalhadores, pleitearam e lutaram durante o auge do Estado Liberal para o reconhecimento dos direitos civis e políticos, mormente os políticos, para que pudessem controlar o poder, ou mesmo a ele ascender.

A adoção de direitos sociais divorciados dos direitos civis e políticos soa como demagogia em governos populistas, e mesmo em governos democráticos podem se constituir em mero assistencialismo que mantém o sistema paternalista e clientelista dos tempos feudais ou do coronelismo no Brasil.

Num Estado Liberal ou neoliberal a concessão de alguns direitos sociais é artifício para que não haja insurgências popular. Vale assinalar, que outrora, alguns direitos sociais reconhecidos à classe trabalhadora foi por esta negados, sob o argumento de que aventada atitude por parte do governo se afiguraria em humilhação, concessão de migalhas.

Não devemos nos prender a conceitos e divisões estanques, nem mesmo ao mero formalismo constitucional, mas devemos antes pensar nos direitos fundamentais de forma contextualizada e em sua concreção e operacionalidade.

As gerações dos direitos fundamentais não se sobrepõem umas as outras, nem têm uma delimitação tão visível. Basta acudir que depois da Revolução Francesa de 1789 e como corolário da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, o lema da Revolução: “liberdade, igualdade e fraternidade” foram institucionalizados.

Para a liberdade, 1ª geração, correspondem os direitos fundamentais civis e políticos. São direitos que protegem a esfera pessoal contra o arbítrio do Estado. Civis no tocante à liberdade, à vida etc.; políticos quanto ao direito ao sufrágio universal e direitos de nacionalidade. É ínsito à ideologia do Estado Liberal, instituindo-se um Estado mais omisso em prol da liberdade do indivíduo. Marcos: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Revolução Francesa, 1789), Declaração de Independência de Virgínia (EUA, 1776).

Para a igualdade, 2ª geração, os direitos sociais econômicos e culturais, tais como saúde, educação, saneamento básico etc. Percebe-se aqui forte intervenção do Estado que atua na proteção dos hipossuficientes e na busca de uma igualdade material, não meramente formal. Marcos: Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (Revolução Soviética, aprovada em 1918) e Constituição de Weimar, 1919.

Para a fraternidade, 3ª geração, direitos de solidariedade, ao desenvolvimento e a paz, por exemplo. Têm como destinatário o gênero humano e desenvolvidos a partir das discussões advindas pós 2ª guerra mundial e criação da ONU. Marco: Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O Professor Paulo Bonavides alude a um direito de 4ª geração, que seria o direito à democracia, à informação e ao pluralismo. A importância estaria em contraditar a questão da globalização política neoliberal, propondo como contra-ataque para reduzir seus efeitos nefastos a globalização dos direitos fundamentais (Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. 13 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 524-526).

No Brasil, é força admitir que muitos direitos e garantias se encontram etéreos, dormindo ainda em estado letárgico do formalismo. Isso implica desconsideração da dignidade da pessoa humana, atributo inafastável do ser humano, e que os direitos fundamentais se encarregam de dar suporte.

Muitos dos direitos apregoados não são cumpridos de maneira satisfatória, citando-se alguns deles como saneamento básico, saúde, moradia etc, e que por isso a cidadania fica comprometida, e por corolário, esvaziando a força da democracia, pois esta deve ser exercida por cidadãos plenos para que se atinja o escopo precípuo da participação e representação conscientes que reclama a soberania popular.

Ora, se os policiais são arrebatados do próprio seio coletivo, atraídos muitas vezes por certa estabilidade de se trabalhar para o Estado, estaria o policial livre dos traumas de haver sido despojado de seus direitos enquanto cidadão comum?

E depois, já nas instituições policiais, recebem os policiais garantias mínimas de trabalho para que eles laborem com eficiência, respeitando os direitos fundamentais mais sensíveis?

É notório que muitos policiais sequer possuem moradia própria. Um grande número reside em subúrbios longínquos, por vezes na própria favela, onde precisa manter sua identidade em sigilo, já que combatem muitos de seus vizinhos que vivem nas sendas do crime.

Não são raros os relatos de esposas que lavam a farda do marido, mas não podem secá-las no quintal de casa, tendo de escondê-las visando não chamar a atenção para a condição de policial do marido.

Os policiais têm idêntico sonho de dar educação para os seus filhos, também precisam da presença do Estado em suas vidas, não só como Estado-patrão, mas como Estado provedor de direitos.

O policial no Brasil é pouco valorizado, não possui as garantias mais prementes para execução de seu trabalho (observação adquirida por experiência própria).

Sequer os coletes balísticos são suficientes, os policiais saem para sua jornada de enfrentamentos a peito nu, entregando-se a própria sorte, não sabendo se voltam para casa ou se seus filhos ficarão órfãos de pai ou mãe.

Ademais, a própria instituição, não é incomum, encarrega-se de desnudar os policiais de seus direitos elementares, sujeitam-nos a jornadas estafantes de trabalho, e esses suportam uma hierarquia e disciplina que por vezes se extrapolam e beiram às raias da humilhação. Inexistem em muitos estados efetivos centros de acompanhamento médico e psicológico de policiais, de modo que, não raras vezes, eles transformam-se numa “bomba-relógio” prestes a explodir.

A questão salarial é outro tormento na vida do policiais, tendo esses que recorrerem, em algumas cidades, a uma segunda jornada de trabalho, emprego informal denominado “bico”, visando complementar a renda da família.

Embora não seja justificativa os baixos salários, muitos se enveredam para a criminalidade, maculando toda a instituição, dando eco assim para o conceito negativo e de desprestígio. Mas por outro lado, deixam em evidência as mazelas da Polícia. Só não vê quem não quer ver.

Pouco se investe na formação dos policiais, pois o combate a violência, e isso está demonstrado empiricamente, não se faz pautado exclusivamente em repressão, é necessário investimento no ser humano, exploração e valorização do intelecto, desenvolvimento e aprimoramento de técnicas, expansão e modernização dos laboratórios forenses, tecnologia etc.

Em tempos de verdadeiras guerras urbanas no Brasil, muito se discute sobre criminalidade e violência. Espocam discursos vãos e demagogos . Propostas miraculosas e salvadoras se espalham como poeira ao vento.

O problema de tal estado de coisas não é só da Polícia, é de ordem mais macro, e começa no comprometimento de uma Nação com os seus cidadãos, no investimento em educação, com a concretização dos direitos e garantias que já estão estabelecidos na Constituição Federal.

O endurecimento da legislação é só um paliativo, e muitas vezes funciona mais como simbolismo, isto é, subterfúgio hábil a aplacar a ira da sociedade. O que falta é o cumprimento das leis já existes. Rousseau já dizia: “o político corrupto não é aquele que deixa de fazer leis, mas aquele que fabrica muitas leis”.

De outra ponta, é necessário estabelecer que a população, iludida pelo sistema, já se encarregou de rotular os criminosos. Por conta de um passado histórico, pautado numa colonização de exploração, em que o componente negro veio para os grandes latifúndios de cana-de-açúcar para trabalhar como escravos, e bem assim os próprios índios, em menor escala, que trabalhavam como escravos em algumas capitanias hereditárias.

Vale dizer que, o negro não teve a proteção que tiveram os índios, nem por parte da Igreja Católica, que inclusive admitia a escravidão, baseada em interpretação literal das Sagradas Escrituras.

A abolição da escravatura, declarada sob forte pressão da Inglaterra, sem um plano de absorção da grande massa de ex-escravos que não tinham para onde ir, agravou os problemas sociais, máxime por conta de um paulatino preconceito contra negros e mestiços, que culminou em racismo velado, e hoje transmudou-se em preconceito social, sem que se extirpasse o preconceito de cor, subsistindo ainda o preconceito regional, como no caso dos nordestinos.

A máxima popular que no Brasil “só se prendem pretos, pobres e prostitutas” (“regra dos três pês”) não é de todo absurda, e deve ser levada em consideração ao menos para que se possa refletir sobre o tema.

E não bastasse isso, nosso Estado é tão hipócrita que, por exemplo, considera a vadiagem como uma infração penal, e só ano passado revogou a contravenção de mendicância.

Assim, diante do que se expendeu ouso entender que “polícia cidadã” é um mero discurso, e ainda no mínimo contraditório (etimologicamente aqui há um pleonasmo terminológico), cotejando-se a realidade dos indivíduos policiais e os indivíduos comuns, isto é, até que ponto a polícia cidadã possui policiais dotados de cidadania para promover a tão propalada cidadania.

A par disso, há que investigar se os destinatários desse modelo possuem cidadania plena, pois se assim não for, como se pode falar em policia cidadã em sede de uma polícia que não conta com efetivos cidadãos e que querem promover cidadania para não cidadãos plenos?

É essa contradição que deve ser discutida, lançando-se argumentos mais amplos para enfrentar essa questão, ou seja, realizando-se uma busca histórica, as raízes das desigualdades sociais, posicionando nosso modelo de Estado, as nuances dos direitos fundamentais (em nível internacional denominados de Direitos Humanos), e o atributo da dignidade da pessoa humana.

Com a devida isenção, há que se retratar a Polícia não só como mecanismo de controle do Estado, mas como instituições que possuem em seus quadros pessoas que, se trabalhadas e valorizadas, bem formadas e preparadas, serão capazes de conferir verdeiro serviço social, começando por gestão séria, comprometimento institucional e social.

Não existem desenlaces mirabolantes e rápidos, qualquer iniciativa nesse sentido pura falácia e discurso eleitoreiro.

A população está cansada de ser aviltada em seus direitos mais primários, e não quer ser vítima também da Polícia.

Muito se fala e se discute acerca de polícia cidadã, e por isso, mister que nos debrucemos sobre o tema colimando entender o que seja aventada polícia, qual o seu verdadeiro papel social, e como se conseguirá alcançar a prometida cidadania.

É importante o tema ainda, à medida que os últimos confrontos entre polícia e criminosos no Rio de Janeiro, tendo como escudo uma população de bem, atônita, desamparada, impotente e sem a quem recorrer, que choram por seu pais e filhos, vítimas de “balas perdidas”, forçam os governantes a tomarem medidas urgentes.

Muitas dessas medidas tendem a repetir os mesmos erros de outrora, pura repressão e recrudescimento da lei.

Em que pese a falta de aperfeiçoamento, pelas questões levantadas, ainda que perfunctoriamente, da aproximação da polícia com o cidadão, não se pode abrir mão do que já foi conquistado. Não se pode mais conceber a polícia inimiga da população, o desrespeito aos direitos e garantias fundamentais, sob pena de macular os fundamentos do Estado Democrático de Direito.