Por: Laércio Becker, de Curitiba-PR 

É inegável que carnaval e futebol são manifestações conjuntas da identidade nacional (Damatta). Nesse sentido, sempre são lembradas as influências do futebol no carnaval carioca. A começar pelos inúmeros enredos compostos sobre temas futebolísticos – p.ex., O mundo é uma bola, da Beija-Flor, em 1986. Também algumas escolas de samba tiveram origem em times de futebol. P.ex., a GRES São Clemente foi fundada em 1961 a partir do São Clemente FC, surgido em 1953, e teve as cores (amarelo e preto) inspiradas não no time que lhe deu origem (azul e branco), mas no uruguaio Peñarol. Já a GRES Mocidade Independente de Padre Miguel – apesar da estrela na bandeira, que lembra o escudo da AA Portuguesa carioca – é originária do Independente FC, um time de várzea da Zona Oeste, da década de 50. Aliás, a primeira Escola de Samba, a Deixa Falar, teve as cores inspiradas no America FC. E há quem diga que a verdadeira inspiração de Cartola para as cores da sua Estação Primeira de Mangueira não foi o Rancho Arrepiados, das Laranjeiras, mas o seu Fluminense FC, do mesmo bairro. Mas aqui vamos tratar é da contra-mão. E, de preferência, de histórias bem antigas, de influências do carnaval no mundo do futebol.

Nas primeiras décadas do século XX, as influências eram nitidamente recíprocas. Basta lembrar entidades híbridas, como a Sociedade Carnavalesca Miséria e Fome Foot-ball Club, fundado em 1914. E o Fidalgo FC que, em 1919, incorporou a sociedade carnavalesca Tenentes do Diabo de Madureira e passou a se chamar Fidalgos de Madureira. (Em 1933, mediante fusão com o Magno FC, daria origem ao Madureira, como já dissemos em nosso artigo “Madureira, o Tricolor Suburbano”.)

Talvez o primeiro autor a intuir isso tenha sido, ironicamente, o grande adversário do futebol: Lima Barreto (ver nosso artigo “Contra o foot-ball”). Na crônica “Bailes e divertimentos suburbanos”, publicada na Gazeta de Notícias de 07.02.1922, ele afirma que, em relação aos clubes dos “bairros elegantes”, a diferença é que, nos suburbanos, havia o costume de “festejarem a vitória sobre um rival, cantando os vencedores pelas ruas, com gambitos nus, a sua proeza homérica com letra e música da escola dos cordões carnavalescos. Vi isto só uma vez e não garanto que essa hibridação do samba, mais ou menos africano, com o futebol anglo-saxônico, se haja hoje generalizado nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto afiançar.”

A mistura do DNA inglês com o brasileiro, esboçada nesse trecho de Lima Barreto, é retomada por Gilberto Freyre (ver nosso artigo “Gilberto Freyre e o futebol”). Em Sobrados e mucambos (1ª ed. de 1936), diz que a agilidade do mulato com os pés o habilita ao samba e ao futebol. No artigo “Foot-ball mulato”, publicado originalmente no Diário de Pernambuco, em 18.06.1938, ele também disse que o jeito brasileiro de jogar futebol era “dançado”, o que nos remete ao samba e ao carnaval. No ano seguinte, na crônica “Brasil-Argentina”, Mário de Andrade também compararia o futebol brasileiro a um bailado. Não seria a ginga do jogador brasileiro uma influência carnavalesca? A refletir.

 

Fontes:

ANDRADE, Mário de. Os filhos da Candinha. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 67.

ARAÚJO, Hiram. Carnaval: seis milênios de história. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003. p. 542.

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DAMATTA, Roberto. Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: Universo do futebol. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. p. 33.

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FARIAS, Julio Cesar. O enredo de escola de samba. Rio de Janeiro: Litteris, 2007. p. 73-4.

FREYRE, Gilberto. Foot-ball mulato. Diário de Pernambuco, 18.06.1938.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 14ª ed. São Paulo: Global, 2003. p. 739.

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Toda crônica. Rio de Janeiro: Agir, 2004. v. 2, p. 503-4.

MENEZES, Pedro da Cunha e (org.). Fluminense Football Club: 100 anos de glórias. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2002. p. 28.

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PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 244 e ss.

TOLEDO, Luiz Henrique de. Torcidas organizadas de futebol. Campinas: Autores Associados, 1996. p. 88 e ss.

As cores dos clubes e das sociedades carnavalescas

Antes do futebol, os cariocas se dividiam entre as chamadas “grandes sociedades carnavalescas”. Eram clubes em que, durante o resto do ano, os sócios se dedicavam a beber, jogar cartas e discutir política. Assim como os clubes de futebol, elas tinham apelidos, cores e fãs ardorosos. Falaremos das três maiores e mais famosas.

A primeira é o Clube Tenentes do Diabo, fundada em 31.12.1855 com o nome de “Zuavos Carnavalescos” e com as cores vermelho, branco, azul e preto. Dela participaram grandes romancistas da época, como Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida e Machado de Assis. Conhecida como Tenentes do Diabo a partir de 1861, mudou oficialmente de nome em 1904, quando resumiu suas cores ao vermelho e preto. Seus foliões eram chamados de “baetas”, nome de um cobertor de lã rubronegra, em alusão às cores do tecido adotado em suas fantasias. O símbolo (mascote), como não podia deixar de ser, era o diabo – aliás, a fantasia de diabo era a que predominava nos carnavais de antigamente, como relata Luís Edmundo.

A segunda grande sociedade é o Clube dos Democráticos, fundado em 19.01.1867, tendo por padroeira Nossa Senhora da Glória. Freqüentaram seus salões ilustres políticos como José do Patrocínio e Benjamim Constant. Suas cores eram verde, amarelo, preto e branco. Em 1894, reduziu para listras pretas e brancas. Os foliões eram chamados de “carapicus”, que é uma espécie de sardinha alvinegra.

A terceira grande sociedade é o Clube dos Fenianos, fundado em 07.12.1869, com o apoio de Rui Barbosa, Evaristo da Veiga, Quintino Bocaiúva e Silva Jardim, entre outros. Suas cores eram vermelho e branco e seus foliões em conhecidos como “gatos”. O apelido surgiu porque as mascotes do Clube eram bichanos que viviam espreitando pelas janelas da sede.

Vemos nesses clubes carnavalescos algumas características em comum com os de futebol. Em primeiro lugar, todos são clubes dedicados ao lazer. Em segundo lugar, além do nome, têm um apelido extensivo aos seus fãs e inventado pelos rivais – como os torcedores do Flamengo, apelidados de “urubus” pelas outras torcidas. Em terceiro lugar, os clubes carnavalescos tinham até mascote – como boa parte dos clubes de futebol, sendo que a dos baetas é igual à do America: o diabo. Em quarto lugar, os Democráticos tinham até padroeira – como o Flamengo adota São Judas Tadeu. Em quinto lugar, os clubes carnavalescos tinham seus “pufes”, que eram poemas surgidos a partir de 1877 que, entre outras coisas, procuravam exaltar seus próprios méritos – assim como os hinos oficiais e extra-oficiais dos clubes de futebol.

Mas o mais importante, em minha opinião, é a questão das cores. Os Tenentes do Diabo eram rubronegros, como o Flamengo. Os Democráticos eram alvinegros, como Vasco e Botafogo. E os Fenianos eram alvirrubros, como o America e o Bangu.

Não queremos, com isso, insinuar que a escolha das cores dos clubes de futebol foi feita com base nas cores dos clubes de carnaval. Quando o Flamengo mudou de azul e dourado para vermelho e preto, os Tenentes do Diabo ainda tinham quatro cores – e cogita-se que o Flamengo se inspirou no Jockey Club (ver nosso artigo “Camisas de clubes de cores diferentes”).

O clube da colina adotou o preto dos “mares ignotos” e a faixa branca foi para representar a rota de Vasco da Gama para a Índia (ver o capítulo “Primeiras camisas com faixa diagonal”, em nosso livro Do fundo do baú). Para seu uniforme alvinegro listrado, o Botafogo FC buscou inspiração na Juventus de Turim (idem). O CR Botafogo foi fundado exatamente no ano em que os Democráticos adotaram o preto e o branco, mas a inspiração foi outra, cf. Auriel de Almeida: o branco da Estrela d’Alva, que indicava aos remadores a hora de voltar, e o preto do céu noturno, quando ela ficava mais brilhante.

Quanto ao vermelho e branco, o America mudou para essas cores por sugestão de Belfort Duarte, inspirado nas cores da AA Mackenzie College, na qual ele havia jogado antes de se mudar para o Rio. Já o Bangu se inspirou nas cores do escudo do Southampton FC, ou nas de São Jorge, padroeiro da Inglaterra, cuja bandeira é uma Cruz de São Jorge (ver nosso artigo “As cruzes dos times de futebol”). Ou seja, nada a ver com os Fenianos.

Nada a ver também com a capoeiragem. Expliquemos. Antes de serem proibidos pela polícia, os capoeiras se organizavam em maltas (conhecidas por apelidos, tal como no futebol, cf. vimos em nosso artigo “A gramática dos nomes de clubes brasileiros de futebol”) e nações (no futebol, a famosa Nação Rubronegra, cf. Marcel Pereira). As duas maiores nações cariocas eram os nagoas e os guaiamus. Seus adeptos usavam trajes distintivos próprios, com a finalidade de rápida identificação. Os nagoas vestiam cintos com cores brancas sobre a encarnada, enquanto os guaiamus, cintos de cores encarnadas sobre a branca (cf. revista Kosmos, 1906, apud Dias). Em resumo, vermelho e branco. Mas, como vimos, sem relação com a escolha das cores dos clubes alvirrubros do Rio de Janeiro.

O único dos grandes clubes cariocas de futebol cuja combinação de cores destoa das usadas pelos clubes carnavalescos é o Fluminense. Como já dissemos no capítulo “Primeiras cisão, fusão, incorporação, troca de nome, de cores e de cidade”, do nosso livro Do fundo do baú, o Fluminense quase nasceu alvi-anil (cores da bandeira do Rio de Janeiro), mas acabou nascendo cinza e branco em 1902, mudou para grená, verde e branco em 1904 (combinação escolhida em Londres, por Oscar Cox), e se aventurou pelo laranja em 2001 (ver nosso artigo “Camisas de clubes de cores diferentes”). Note-se que nenhuma das combinações escolhidas encontra respaldo nas cores dos clubes carnavalescos. Será que isso não reforçou a postura diferenciada que sempre teve o aristocrático tricolor das Laranjeiras? Interessante que, em 2011, o Fluminense lançou uma camisa três inteira grená com detalhes em dourado. Alguém diria: como se estivesse, mesmo que involuntariamente, tentando ocupar, no imaginário popular, o mesmo espaço dos três clubes alvirrubros da cidade – Fenianos, America e Bangu – e das duas nações de capoeira. Pouco provável, quase impossível, mas se alguém quiser prosseguir nessa hipótese, fique à vontade.

Antes de chegarmos à conclusão deste capítulo, precisamos mencionar que, na crônica “Rei Momo”, escrita em 1935, Mário de Andrade afirma que azul e vermelho “são as cores tradicionais da alegria brasileira”. Refere-se ao carnaval daquela época. Diz que a fama da combinação dessas cores vem das danças dos Congos e Gingas, dos Congados e Moçambiques, bem como das Cavalhadas, em que o azul representava os cristãos e o vemelho os mouros. Apesar de estender ao Brasil, será que estava tomando por base o carnaval paulista? De qualquer modo, o mais importante clube carioca rubroanil é o Bonsucesso FC, enquanto o maior clube paulista a combinar essas cores (e com o branco) é o Nacional AC.

Diante do que foi exposto, tudo indica que não houve influência dos clubes carnavalescos na escolha das cores dos clubes de futebol. Contudo, não custa especular que essas combinações de cores – rubronegro, alvinegro e alvirrubro – já estavam bem presentes na tradição cultural do lazer carioca e, por conseqüente, no imaginário popular. Não é de admirar, por isso, que tenham obtido tamanha popularidade, talvez no vácuo dessas grandes sociedades que, com o tempo, foram desaparecendo do cenário e dando lugar a outras manifestações populares, como os blocos e escolas de samba. O terreno já estava preparado. É uma hipótese a considerar.

 

Fontes:

ANDRADE, op. cit., p. 149.

ARAÚJO, op. cit., p. 125-9.

CAMPOS, Alexandre; SILVA, Da Costa e. Dicionário de curiosidades do Rio de Janeiro. São Paulo: CIL, s/d. p. 95, 114-5, 282-3.

COELHO NETTO, Paulo. História do Fluminense: 1902-2002. 2ª ed. Rio de Janeiro: Pluri, 2002. p. 17.

COSTA, Haroldo. 100 anos de carnaval no Rio de Janeiro. São Paulo: Vitale, 2001. p. 20 e ss.

CUNHA, Orlando; VALLE, Fernando. Campos Sales, 118: a história do América. 2ª ed. Rio de Janeiro: Didática e Científica, s/d. p. 47.

DIAS, Luiz Sergio. O linguajar do submundo no Rio antigo. In: LESSA, Carlos et alii. Rio de Janeiro: panorama sociocultural. Rio de Janeiro: ed. Rio, 2004. p. 149, 179.

DINIZ, André. Almanaque do carnaval. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 23.

EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003. p. 479-80, 490-1.

MOLINARI, Carlos. Nós é que somos banguenses. Brasília: ed. do autor, s/d. p. 10.

MORAES, Eneida. História do carnaval carioca. Rio de Janeiro: Record, 1987. p. 49 e ss.

PEREIRA, Marcel. A Nação: como e por que o Flamengo se tornou o clube com a maior torcida do Brasil. Rio de Janeiro: Maquinária, 2010.

VALENÇA, Rachel. Carnaval: para tudo se acabar na quarta-feira. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. p. 28-9.

 

A expressão Fla-Flu

Reza a lenda que o termo “Fla-Flu” foi cunhada pelo grande jornalista Mário Filho. Será?

Quem vai mais a fundo, inclusive o próprio Mário Filho, informa que quem inventou esse termo foi a imprensa, para ironizar o selecionado carioca que disputava o Campeonato Brasileiro de seleções estaduais. Isso foi em 1925. É que o scratch carioca, escalado pelo rubronegro Joaquim Guimarães e pelo tricolor Francisco Bueno (Chico Netto), só tinha jogadores do Flamengo e do Fluminense. Os jornais reclamavam que muitos jogadores bons do Vasco, do Botafogo e do America ficaram de fora. Poderiam ter chamado essa seleção de Flumengo ou Flaminense, como aqueles times fictícios das antigas revistinhas do Zé Carioca. Em vez disso, chamaram de Fla-Flu, tentando ridicularizar. Só que o combinado Fla-Flu venceu os paulistas e conquistou o título daquele ano. Era realmente a melhor seleção possível. O Fla-Flu, de termo pejorativo, virou expressão de respeito.

Mais tarde, em 1933 (cf. Fatima Antunes) ou 1936 (cf. Ruy Castro), Mário Filho aproveitou o nome Fla-Flu para denominar o clássico entre os dois grandes times. Ou seja, inverteu o sentido: o que antes significava cooperação passou a simbolizar a rivalidade. Com isso, Mário Filho deu o pontapé inicial para a construção de toda a mística que envolve esse clássico.

Só que a história do nome Fla-Flu não termina aí. Durante os carnavais cariocas de antigamente, os foliões mais célebres tinham apelidos curiosos, como os seguintes, citados por Luís Edmundo: Lord Sogra, Lord Fera, Lord Alisa, Lord Craknel, Cacareco, Cardoso Xuxu, Cerca-Frango, Rato-Seco e Peru dos Pés Frios (coautor do samba “Pelo telefone”, com o tricolor Donga). Em meio a tantos Lordes, o jornalista (e torcedor do Madureira) Jota Efegê, conta que um famoso folião daquela época foi o bacharel e advogado militante Pádua de Vasconcelos, conhecido como Lord Taquara.

Ocorre que ele mudou de sociedade carnavalesca e também de apelido: passou a ser chamado de Lord Fla-Flu, ou simplesmente “o Fla-Flu”. Por quê? Porque, por incrível que pareça, ele era sócio de ambos os clubes. (Obs.: ser sócio de ambos era até comum, mas antes de o Flamengo ter seu departamento de futebol. Sobre o assunto, ver o nosso artigo “Fla-Flu, os irmãos Karamazov”.)

O detalhe é que a sociedade carnavalesca em que o Lord Fla-Flu entrou foi Clube dos Democráticos, que, como vimos no capítulo anterior, era alvinegro. Ou seja, o Lord Fla-Flu simplesmente usava as cores de Vasco e Botafogo. Ele era a síntese dos quatro grandes do futebol carioca.

Ocorre que esse apelido foi criado justamente em 1925, ano do tal escrete Fla-Flu. O que me faz perguntar onde é que o termo Fla-Flu surgiu primeiro: no carnaval ou no futebol? Pelo que pude apurar, a partir de junho, mais ou menos, é que as seleções estaduais começaram a treinar para estrear no Campeonato Brasileiro. O carnaval evidentemente já havia passado. Então, é grande a chance de o nome Fla-Flu ter se originado no carnaval, não para significar o embate de dois times, nem para designar um combinado de ambos, mas para apelidar uma pessoa só. (Segundo o livro do centenário do Fluminense, em 1937, a expressão Fla-Flu fez o caminho inverso, retornando do futebol ao carnaval, por meio de uma marchinha de Haroldo Lobo e J. Cascata.)

Para terminar: Guimarães Rosa, em sua obra-prima Grande sertão: veredas, lá pelas tantas, fala no “flaflo do vento agarrando nos buritis”. A primeira edição do livro foi publicada em 1956. Então, alguma influência do Fla-Flu? Nada disso. Segundo Nilce Martins, trata-se de uma onomatopéia criada pelo autor, com o sentido de sopro, barulho. De comum com o futebol, portanto, nem sequer o tipo do barulho.

 

Fontes:

ANTUNES, Fatima Martin Rodrigues Ferreira. Com brasileiro, não há quem possa: futebol e identidade nacional em José Lins do Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues. São Paulo: Unesp, 2004. p. 128-9.

ASSAF, Roberto; MARTINS, Clóvis. Campeonato carioca: 96 anos de história. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1997. p. 129.

CASTRO, Ruy. Flamengo: o vermelho e o negro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 79-80.

EDMUNDO, op. cit., p. 493.

EFEGÊ, João Ferreira Gomes, dito Jota. Figuras e coisas do carnaval carioca. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. p. 165-6.

FILHO, Mário (Rodrigues). O sapo de Arubinha. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 30.

GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. In: Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 2.

MARTINS, Nilce Sant’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2001. p. 230.

MAZZONI, Tomás. História do futebol no Brasil. São Paulo: Leia, 1950. p. 180.

MENEZES, Pedro da Cunha e (org.). Fluminense Football Club: 100 anos de glórias. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2002. p. 106.

PEREIRA, Luís Miguel. Bíblia do Flamengo. São Paulo: Almedina, 2010. p. 118.

Os hinos dos clubes e as marchinhas de carnaval

Como bem observa Celso Branco, os hinos dos clubes de futebol compostos na década de 10 ainda carregavam uma evidente “inspiração bélica”. Ela dava ao jogo um status de batalha e ao clube um caráter nitidamente épico, sublime e marcial. Tomemos por exemplo o Hino oficial do Fluminense, composto pelo compositor e violinista Antônio Cardoso de Menezes Filho. Sob um andamento Allegro marziale, sua letra fala em luta, “peleja incruenta”, “furor da batalha”, “avante, ao combate” e apresenta ainda os seguintes versos que sintetizam bem essa tendência militar dos hinos da época:

“Nossas bolas – são nossa metralha,

Um bom goal – nosso tiro de morte!”

(Obs.: o compositor do hino tricolor tem vários parentes ligados tanto ao carnaval quanto à música com temática futebolística. É filho do compositor e pianista Antônio Frederico Cardoso de Menezes e Sousa (1849-1915), autor de uma Marselhesa dos escravos e casado com a pianista Judite Ribas. É irmão do compositor e pianista Osvaldo Cardoso de Menezes (1893-1935), conhecido como Menezes Filho, que tocou em ranchos carnavalescos como o Kananga do Japão, de Sinhô, compôs o tango El Rey de la pelota, dedicado ao craque Arthur Friedenreich. É tio de Carolina Cardoso de Menezes Cavalcanti (1916-1999), pianista e compositora de vários estilos, inclusive de músicas de carnaval, autora de uma composição intitulada Fla-Flu. Talvez seja parente do dramaturgo F. Cardoso Menezes, autor da peça Dois a zero (1919), sobre a devoção ao futebol. Apesar dessa proximidade familiar com o carnaval, o hino composto por Antônio Cardoso de Menezes Filho não tem nada da festa de Momo, senão teria antecipado em trinta anos a tendência inaugurada por Lamartine Babo, como veremos adiante.)

Na realidade, essa tradição bélica perdurou mais ou menos até a década de 50, tanto que, como lembra Bernardo Buarque de Hollanda, a famosa Charanga do Flamengo (ver o capítulo “Primeira torcida organizada”, do meu livro “Do fundo do baú”) era composta por músicos que tocavam na banda da Polícia Militar.

Ainda segundo Bernardo Buarque de Hollanda, nas décadas de 40 e 50, Mário Filho tinha por projeto trazer o carnaval para as torcidas de futebol. Nesse primeiro momento, os estádios e o repertório das charangas foram tomados pela marchinha de carnaval. Somente a partir do final dos anos 60 é que as torcidas organizadas dissidentes – as chamadas “torcidas jovens” – aumentaram a importância da percussão (bumbos, taróis etc.) e mudaram o ritmo para o samba. Vem daí as paródias de alguns sambas de enredo feitas pelas torcidas organizadas, p.ex., a versão flamenguista de Bahia de Todos os Deuses, do Salgueiro, 1969; e a versão tricolor de Bom, bonito e barato, da União da Ilha, 1980.

Após a fase da carnavalização, Maurício Murad nota que, a partir da década de 70, as torcidas organizadas passaram a uma fase de militarização – que podemos chamar de “remilitarização”, já que foi essa sua origem, como vimos acima. Nesta fase, observa o autor, as torcidas se organizam em “tropas-de-choque”, seus líderes são chamados por patentes militares, como capitães e sargentos, sua simbologia, seus gritos de guerra e sua hierarquia são de inspiração nitidamente militar. Retornamos ao assunto em nosso artigo “A futebolização da política”.

Mas voltemos às marchinhas. Em boa parte, sua entronização no universo semiológico do futebol carioca se deve a Lamartine Babo, que, em 1945, compôs as marchas de: America, Bangu, Bonsucesso, Botafogo, Canto do Rio, Flamengo, Fluminense, Madureira, Olaria, São Cristóvão e Vasco. Essas marchas de Lalá foram adotadas como verdadeiros “hinos”, oficiais de alguns clubes, extra-oficiais de outros. Como Lamartine foi um grande compositor de marchinhas de carnaval, como “O teu cabelo não nega”, é claro que as marchas dos clubes têm um inegável DNA carnavalesco – porém, sem abrir mão do tom épico que vinha dos hinos dos anos 10. Dito isso, pode-se concluir que o ilustre torcedor do America realmente renovou o hinário dos clubes de futebol.

As composições foram lançadas semanalmente, toda terça-feira, num programa chamado “Trem da alegria”, na Rádio Mayrink Veiga. Lamartine, o guarda-freios, Héber de Bôscoli, o maquinista, e Yara Sales, a foguista, formavam o “Trio de Osso” (um trocadilho com o “Trio de Ouro, formado por Dalva de Oliveira, Herivelto Martins e Nilo Chagas). Uns dizem que foi um desafio de Bôscoli, que ele aceitou. Outros, que ele foi praticamente trancado num apartamento, obrigado a cumprir a tarefa. Poderíamos terminar aqui o capítulo, mas vamos um pouco adiante.

Fato é que ele teve de se socorrer de algumas “citações” musicais, algumas “inspirações” e assim vai. Afinal, não há criatividade que resista a uma maratona dessas. Por isso, a marcha do Fluminense tem a letra de Lamartine, mas para a música ele aproveitou a marchinha Preto e branco, de Lyrio Panicalli (a letra era de Silvino Neto), um maestro paulista, filho de italianos e professor do maestro – e tricolor – Tom Jobim. A marcha do Vasco tem acordes inspirados no hino de Portugal. E a marcha do America (time de Lamartine) é inspirada numa canção dos remadores de Oxford.

Na marcha do Flamengo, a citação está na letra. E é justamente do primeiro verso. “Uma vez Flamengo, sempre Flamengo” foi criação do rubronegro Júlio Silva, que algumas fontes chamam de Júlio Lopes (talvez tivesse ambos os sobrenomes). Com essa frase, em 1929, Júlio venceu um concurso lançado para escolher o melhor slogan para o clube. A marcha de Lamartine colocou-a em destaque e deu-lhe ainda mais popularidade.

O detalhe é que Júlio também foi um célebre folião. Lançou o famoso “Bloco do Eu Sozinho”. E assim, sozinho mesmo, carregando uma tabuleta que identificava seu solitário bloco, pulou os carnavais cariocas de 1919 até 1979, quando faleceu aos 84 anos de idade. Só faltou em 1972, devido à morte de um genro.

No Flamengo, além de torcedor fanático, foi treinador de quadros infantis, participou de várias regatas e até arbitrou partidas. Sozinho, só no carnaval.

 

Fontes:

ARAÚJO, Hiram. Carnaval: seis milênios de história. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003. p. 122.

BRANCO, Celso. Os papéis sociais do futebol brasileiro revelados pela música popular (1915-1990). In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira; SANTOS, Ricardo Pinto dos (orgs.). Memória social dos esportes. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. v. 2, p. 198-9.

BUARQUE DE HOLLANDA, op. cit., p. 498-501, 504-9, 517.

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COELHO NETTO, op. cit., p. 46-7.

CRAVO ALBIN, Ricardo (org.). Dicionário Houaiss Ilustrado Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Paracatu, 2006. p. 59, 474, 476, 840. 1.012.

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NASSIF, Luís. O centenário de Lalá, Folha de S. Paulo, 11.01.2004, p. B3.

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PERPETUO, Irineu Franco. Homenagens lembram centenário de Babo, Folha de S. Paulo, 10.01.2004, p. E8.

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