RESUMO

 

Minha infância foi vivida entre goiabeiras, laranjeiras, bananeiras em tons de muita brasilidade e carioquice, porém, com toques marcantes de uma periferia periurbana. As brincadeiras incluíam o soltar de pipas, corridas tipo pique bandeira, jogo de pelada e bola de gude. Como meu pai era coveiro, Manoel Fernandes, eu tinha o compromisso de levar seu almoço ao Cemitério de Ilha de Guaratiba.  Por isso mesmo, nenhum sentimento de rejeição pelo campo dos mortos. Adolescente, por conta de poucos recursos, passei a militar como feirante vendendo legumes, hortaliças e verduras por mim mesmo cultivados. Todo este acervo me conduziu a uma experiência de forte apego ao meu universo vivido e sua gente em mim interiorizados.

Nesta jornada intelectual, entrelaçado com o meu lugar, utilizo minha experiência vivida e, irmanado, com os membros de minha coletividade, empreendo esta saga sobre o nosso universo vivido. Esse memorável lugar, inscrito em nossos corações e mentes, Ilha de Guaratiba, vem sendo metamorfoseado pela ambição e perspectivas especulativas em seus domínios. Aqui nasci. Assisti o bairro com sua fisionomia rural/agrícola, em décadas anteriores, agora substituído mais fortemente pelo urbano residencial com vistas a se constituir em uma porção espacial de enorme valor econômico do seu solo, por conta dos agentes imobiliários contando com o incentivo/ganância do Poder Público. Mais recentemente, assistimos ao que pode se chamar do desaguar de um Rio olímpico sobre Ilha de Guaratiba e esta envolvida em seus meandros singrando, igualmente, e se enveredando por sua calha.

Na verdade, há tantas geografias quantas são as interpretações do mundo vivido de cada indivíduo e/ou grupos sociais (JOHNSTON, 1986 a). Partindo da ideia de que “o conhecimento do lugar é calcado na experiência” (HOLZER, 1992), os geógrafos humanísticos têm se debruçado sobre as experiências vividas, buscando nos relatos das pessoas comuns o alicerce com vista às suas investigações. Nesta vertente, o ser humano é o ator geográfico que, ao transformar o seu meio ambiente, modifica, igualmente, a sua vida de relações (JOHNSTON, 1986 b). Isso ocorre porque, na indissociabilidade fenomenológica que norteia o humanismo em geografia, o indivíduo não é distinto de seu lugar (RELPH, 1976). Sendo assim, quando o lugar passa por transformações de diversas ordens ou provocadas por dissabores, podem ocorrer mudanças existenciais. Nesses casos, é comum, igualmente, a mudança de relação das pessoas com seu mundo vivido (FERNANDES, 2003; 2006; 2010).

         Perseguindo o rompimento com os paradigmas positivistas e neopositivistas, cujas abordagens privilegiavam apenas os aspectos palpáveis e quantificáveis da realidade, a fenomenologia, desde o início, impeliu os adeptos do humanismo em geografia a deslocar sua atenção dos sistemas espaciais para a experiência humana em seus significados, sejam eles negativos ou positivos (BUTTIMER, 1982; MELLO, 2005). O genuíno conhecimento do lugar, no entanto, envolve – tanto seus valores subjetivos: vivências afetivas, experiências íntimas, pertencimentos, decepções, simbolismos, significados, a vida de relações e a existencial maneira de viver de seus moradores – quanto suas características e valores objetivos: particularidades físicas, estrutura interna, dimensão dinâmica, atributos naturais, localização, valorização imobiliária, nível de urbanização etc. (LOWENTHAL, 1982; FERNANDES; 2009; 2012). Vale frisar que as citadas dimensões são inseparáveis, considerando-se a abordagem humanística em sua postura fenomenológica que privilegia a indissociabilidade sujeito/objeto.

         Ao assumir que o conhecimento não existe independentemente do ser humano, a fenomenologia apregoa que o saber geográfico precisa ser obtido por meio da experiência humana do mundo. Nesse sentido, o método fenomenológico é oferecido ao geógrafo como um procedimento em suas abordagens sobre o lugar (RELPH, 1970). Em suas investigações, as experiências vividas são fundamentais para o descortinar da multidimensionalidade do lugar dotado de “traços físicos, atividades e funções observáveis e significados ou símbolos” (HOLZER, 1992, P. 251).

         Por serem visíveis, os fatos e fenômenos observáveis podem “servir de ponte entre os enfoques objetivo e subjetivo da geografia” (SACK, 1976). Em sua concepção clássica, o humanismo valoriza a existência em detrimento aos objetos e/ou mundo material (HOLZER, 1992). A principal preocupação da geografia humanística sempre esteve relacionada à vivência dos indivíduos em suas atividades cotidianas (BUTTIMER, 1982; MELLO, 2005). O vivido, no entanto, pressupõe o material e o não-material; o objetivo e o subjetivo; o lugar em sua morfologia e dinâmica espacial e os seus vivenciadores em seus significados e experiências (FRÉMONT, 1982). Como negligenciar a materialidade e os eventos espaciais que nos saltam aos olhos? Será que o mundo material que nos cerca, bem como as dinâmicas pelas quais estamos envoltos, não influenciam nossa existência?

         Nas palavras de Tuan (1961, P. 32), “não temos qualquer obrigação de descrever outra área senão aquela pela qual temos um afeto especial ou uma inexplicável fascinação”. O lugar no qual vivemos é nosso foco fundamental de preocupação. Nosso mundo não deriva de estudos científicos, mas de nossas experiências nele vivenciadas (PICKLES, 1985). De acordo com esses preceitos, o livro perfila com os princípios do humanismo em geografia, sendo desenvolvido no âmbito do próprio lugar vivido pelo autor, baseada em sua própria vivência, bem como as experiências vividas pelos membros de sua coletividade.

Nestas circunstâncias, o elo afetivo entre a pessoa e o lugar, forjado através das experiências vividas, mediadas – na maioria das vezes – por uma longa e/ou intensa interação do indivíduo com seu mundo vivido, salta para ser elucidado no bojo dos cânones acadêmicos. Esses valores são singulares, coletivos, subjetivos e intersubjetivos, fazendo assim parte dos acervos íntimos e particulares dos indivíduos e grupos sociais. Em sua abordagem humanística da relação entre espaço e lugar, Mello (1990), com base em Tuan (2013), assevera que determinados espaços só se tornam lugares após uma demorada experiência. O que inicialmente é feio, sem graça ou até mesmo odiado (espaço), com o tempo pode ganhar foros de lugar. Espaços se tornam lugares em razão do contato com outras pessoas e em trocas afetivas, econômicas etc (MELLO, 1990). Neste contexto, espaços se tornam lugares não apenas por meio de trocas afetivas (valoração), mas também através de trocas econômicas (valorização) ou por questão de status (YÁZIGI, 2003). Certos espaços só se tornam lugares após passarem por um processo de valorização que proporcione uma mudança de seus vivenciadores (valoração) na relação com o seu cotidiano e/ou mundo vivido. Nesse caso, a valorização do espaço pode produzir também a valoração daqueles que o experienciam por seu universo vivido que alcança assim o patamar de lugar (FERNANDES, 2003; 2006; MELLO, 1990; 1991; 2000; TUAN, 1982; 1998; 2013).

Ilha de Guaratiba, porção periférica da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, passa, atualmente, por uma verdadeira metamorfose, uma vez que sua pretérita configuração rural-agrícola vem sendo substituída pela hodierna dinâmica urbano-residencial (FERNANDES, 2006). A crescente especulação imobiliária em voga na localidade teve seu início na década de 1970, intensificando-se nos últimos anos da década de 1990. Esta marcha urbanizadora tem metamorfoseado Ilha de Guaratiba em um dos veios do espraiamento da urbe carioca nos últimos anos. O evento em questão tem estimulado uma considerável mobilidade em direção ao lugar. O local bucólico, visitado esporadicamente por proprietários de residências secundárias – tradicional produtor agrícola – passa por um constante processo de valorização fundiária/imobiliária e por um aumento considerável em sua população residente. A localidade em tela há anos é apresentada como o mais provável alvo sobre o qual incidirá o volátil capital especulativo imobiliário. Muitos especialistas apontam que a cidade do Rio de Janeiro crescerá em direção à Ilha de Guaratiba, notadamente os segmentos mais abastados (LESSA, 2001; REDONDO, 2012; JANOT, 2013).

 Com efeito, a análise dos espaços e lugares, por meio de pesquisas qualitativas, engloba dimensões concernentes aos significados, às questões existenciais e mesmo as metamorfoses simbólicas e sentimentais dos seus vivenciadores, registrando o seu modo de ser e sentir o seu mundo. Neste ponto, cabe indagar: todo esse turbilhão de alterações do rural para o urbano tem interferido no sentimento dos guaratibanos em relação ao seu lugar?

Concernente às transformações que ocorrem em um dado lugar, pensamos que as metamorfoses existenciais, as perspectivas e as demais experiências vividas por seus habitantes não devem ser negligenciadas. Partindo destas premissas, os contextos geográficos pretéritos e contemporâneos de Ilha de Guaratiba serão interpretados considerando as experiências relatadas por seus vivenciadores.

A expansão do tecido urbano carioca, notabilizado pelo fenômeno descrito por Abreu (2008) como “febre imobiliária,” depois de ter percorrido o litoral a partir do centro da cidade (Área Central – Zona Sul – Barra da Tijuca – Recreio dos Bandeirantes) e, mesmo no interior, no âmbito da Zona Norte, “Central do Brasil”, Leopoldina e Zona Oeste tradicional, urge por atravessar o maciço (Serra da Grota Funda) em direção à Ilha de Guaratiba (LESSA, 2001), envolvendo um espaço a ser descortinado, quem sabe, alçado à categoria de lar ou lugar, tendo em vista a chegada de novos moradores que, segundo Haesbaert (2004), tanto podem influenciar os grupos mais enraizados, como podem por eles ser subordinados.

         Com os lugares sofrendo intensas transformações torna-se indispensável saber de seus próprios indivíduos quais os seus sonhos, premências, embates e triunfos. Com efeito, o livro opta por um atalho de significativa pertinência, dando voz aos seus moradores para o entendimento de seus universos vividos.

         A passagem de espaço para lugar, como temos discorrido, emerge das experiências vividas pelos indivíduos e/ou grupos sociais em seus lugares. Por ser de natureza existencial, essa metamorfose subjetiva ocorre a partir da mudança de postura das pessoas com seu mundo vivido. Por fazer parte do acervo íntimo de cada indivíduo, esse tipo de experiência pode ser descrita por meio de depoimentos nos quais a pessoa relata suas práticas cotidianas e os valores materiais, históricos, culturais, afetivos, sociais, estéticos, econômicos e simbólicos atribuídos a um outrora espaço indiferenciado que – após ganhar visibilidade e/ou permanência – se transforma em lugar (FERNANDES, 2003; 2006; MELLO, 1990; 1991; 2000; TUAN; 1998; 2013).

         Ao focalizar a transformação do espaço indiferenciado em lugar através, tanto das experiências nele vividas, quanto do processo de dotação de valor ao mesmo, Tuan (2013) refere-se ao valor simbólico e afetivo (valoração) atribuído por indivíduos e grupos sociais a uma dada localidade. No entanto, a passagem de espaço para lugar não envolve apenas o valor simbólico e afetivo da porção espacial na qual o indivíduo está inserido. Em muitos casos, o valor econômico (valorização), ou de outras esferas, conferido a um artefato, logradouro ou área, pode representar um elemento indispensável para transformações espaciais qualitativas (FERNANDES, 2006).

         Os lugares são repletos de símbolos, sendo este preceito defendido pelos geógrafos do horizonte humanístico, segundo os quais os lugares e seus símbolos adquirem profundo significado de acordo com os laços emocionais tecidos ao longo dos anos (MELLO, 2003; TUAN, 2012; 2013). Nestas condições, o campo humanístico tem como uma de suas tarefas conciliar, entender e decodificar o conteúdo simbólico dos lugares, uma vez que, o indivíduo não é distinto de seu lugar, como defende Relph (1976) e cada pessoa possui uma geografia particular e pessoal (LOWENTHAL, 1982; COSGROVE, 2004), faz-se necessário uma abordagem fenomenológica que privilegie o indivíduo em seu mundo vivido.

         Este livro tem por meta traduzir as geografias de Ilha de Guaratiba a partir da memória geográfica de seus moradores. A abordagem partirá dos depoimentos dos guaratibanos e procurará descortinar, igualmente, o sentimento e o entendimento destes com respeito às permanências e transformações nos seus espaços e lugares. Nessa trilha, pretendemos decodificar suas geografias pessoais, forjadas por meio das experiências vividas, vivências estas responsáveis pela eleição de símbolos pretéritos e hodiernos e por uma forte identificação com seu lugar.

A presente pesquisa se justifica pela necessidade de um enfoque de indivíduos e grupos sociais integrantes de uma porção estratégica da cidade do Rio de Janeiro (LESSA, 2001), quadro este que está sendo rapidamente modificado pelas alterações vigentes. O perímetro em destaque, alçado ao patamar de lugar, tem sido estudado por agrônomos, biólogos, ambientalistas e arqueólogos buscando salientar sua importância relacionada à fauna, à flora e à natureza de uma maneira geral. No entanto, Ilha de Guaratiba, assim como vários bairros da zona oeste, carecem de pesquisas que privilegie o elemento humano em relação às mudanças espaciais e ambientais, bem como espaços e lugares, campo este específico das ciências sociais e da geografia em particular (MORAES, 2007).

No mais, por representar meu universo vivido, Ilha de Guaratiba sempre foi meu foco de pesquisas em minha trajetória acadêmica. Sempre morei em Ilha de Guaratiba, sendo desbravador e conhecedor de seus domínios, possuindo uma grande identificação com meu lugar vivido. Evidentemente que apenas este fato não é suficiente para justificar um trabalho acadêmico. No entanto, Ilha de Guaratiba é um lugar relevante para ser explorado e, nestas condições, ser foco de estudos e pesquisas, razão para que esta obra seja desenvolvida com maior motivação.

         Nesta senda, a pesquisa procura apresentar um quadro de transformações, experiências, vivências simbólicas e afetivas, entre outras, pelas quais o lugar focalizado vem passando, aguçando seu estudo a partir das experiências vividas pelos indivíduos e grupos sociais.

        

Por privilegiar o(s) indivíduo(s) em seu lugar vivido, a presente pesquisa se pauta no método fenomenológico, utilizando também outro suporte filosófico pertencente ao nicho das filosofias do significado, qual seja, a hermenêutica. As bases teóricas deste livro foram buscadas em obras de filósofos e geógrafos humanísticos que se fundamentam em subjetividades, simbolismos e identidades, portanto, em adeptos do método fenomenológico e da hermenêutica como Relph (1976), Schutz (1979); Buttimer (1982), Tuan (1982; 1998; 2012; 2013), Holzer (1992; 2001; 2008), Mello (1990; 1991; 1993; 1999; 2000), entre outros.

         Procuramos manter esta linha metodológica nos baseando nos pressupostos da fenomenologia e da hermenêutica que buscam decodificar as geografias existenciais por meio de análises qualitativas onde o indivíduo é indispensável e o seu mundo vivido fundamental (ARANHA, 1996; ABBAGNANO, 2007) em meio à indivisibilidade sujeito/objeto. Sendo assim, a metodologia proposta baseia-se em pesquisa bibliográfica e coleta de material filosófico que tem nos fornecido um relevante apoio teórico-conceitual. Nestas condições, não ferindo os princípios do humanismo em geografia, recorremos a entrevistas e conversas informais com os guaratibanos, onde buscamos explicitar e interpretar a geografia dos indivíduos entrevistados, em uma tentativa de decifrar as geografias memoráveis de Ilha de Guaratiba com base e compromisso com o referido mundo vivido. A fim de alcançar uma análise fenomenológica, decifrando o sentimento e o entendimento dos indivíduos e grupos sociais em relação ao espaço forjado, vivido e reverenciado, procuramos conduzir nossas pesquisas qualitativas (entrevistas) “ao ritmo da pessoa entrevistada, ou seja, livre, espontânea, informal, sem limitações de tempo e temas e em seu próprio meio”, como preconiza Nogué Y Font (1992, p.90).

         Nestes termos, estamos trilhando os passos perseguidos pela filosofia fenomenológica, na qual a geografia humanística busca elementos para pautar suas pesquisas. A noção mais frequentemente utilizada pelos geógrafos da ala humanística, justamente o conceito lugar, vale repetir, advém da fenomenológica e indissociável ideia de mundo vivido no qual não há separação entre o sujeito e o objeto. Nestas circunstâncias, o indivíduo e tudo que o rodeia compõem um mundo pleno de valores, sofrimentos, dilemas, alegrias, vivências, “canções que minha mãe me ensinou” (SCHUTZ, 1979, p. 291) e utopias em meio a amigos, parentes, conhecidos, base territorial, sentimentos e assim por diante, compondo um todo de introjeções, estranhamentos, aderências, reinvenções, fobias e pertencimentos (MELLO, 2000).

         O presente livro, vale repetir, se debruça, igualmente, em traduzir, decodificar e interpretar as geografias de Ilha de Guaratiba, dando voz aos seus moradores, sendo estes os desbravadores e profundos conhecedores de seu mundo vivido. Com esse fim, as dimensões espacial, simbólica e/ou existencial do referido lugar são interpretados segundo o entendimento de seus moradores. Vale salientar também que as muitas leituras de porte que fizemos durante nossa trajetória acadêmica, nos possibilitaram caminhos mais profícuos em relação ao método, onde novos e importantes componentes conceituais foram acrescidos. Além disso, as entrevistas empreendidas entre os meses de setembro de 2014 e outubro de 2015, deflagraram novos elementos que foram abordados segundo esses relatos verbais. Por representar uma narrativa da experiência vivida, essas pesquisas qualitativas foram imprescindíveis para o descortinar das geografias de Ilha de Guaratiba, bem como para a decodificação da complexa teia de relações que envolve seus moradores em seu universo vivido.

A partir do processo de renovação da geografia e da eclosão da geografia crítica – entendida como as correntes que romperam com os ideários positivista e neo-positivista – geógrafos de diversas orientações metodológicas (existencialistas, marxistas, ecléticos etc) passaram a assumir uma perspectiva mais humana, buscando por meio da transformação da ordem social, uma geografia mais generosa e um espaço ou lugar mais justo, que fosse organizado em função dos homens (MORAES, 2007). Neste diapasão, pensamos que a melhor maneira de focalizar o ser humano no centro de todas as coisas (MELLO, 1991; 2000; 2001; TUAN, 1982; 1998; 2013) seria por meio da utilização dos acervos íntimos e particulares de cada indivíduo nas abordagens do seu universo vivido, onde seu enfoque fosse a base da investigação científica.

No que diz respeito ao recorte espacial demarcado, uma geografia tem sido forjada, plena de sentimentos e entendimentos, a partir das experiências dos indivíduos e grupos sociais de Ilha de Guaratiba.

 

A pesquisa encontra-se organizada em duas partes. A Parte I representa o arcabouço teórico-conceitual do livro, sendo composta por dois capítulos. No primeiro capítulo, nosso propósito é fornecer as bases filosóficas que nortearão este estudo, bem como os temas e conceitos que servirão de base para a parte substantiva da pesquisa (Parte II). Assim sendo, neste capítulo, intitulado “Em busca de uma geografia mais humana”, nos debruçamos sobre os pressupostos do horizonte humanístico, estabelecendo este viés como uma proposta para a humanização da geografia. Complementando, então, nossa asserção de focalizar os indivíduos no centro de nossa investigação, versamos sobre alguns dos princípios defendidos pela hermenêutica e pela fenomenologia, sendo estes os principais fundamentos filosóficos do humanismo em geografia.

Como dissemos, o arcabouço teórico desta obra se estende também ao segundo capítulo. Como o nosso propósito consiste em estabelecer uma abordagem multidimensional – abarcando o espacial e o simbólico/existencial – elaboramos este capítulo com a finalidade de embasar teoricamente nosso referencial empírico. “As múltiplas dimensões do vivido”, eis o título do segundo capítulo. Neste, buscamos uma base teórica e conceitual que abarque a multidimensionalidade que permeia nossos universos vividos particulares: espacialidades, temporalidades, artefatos, significados, mudanças, permanências etc.

A Parte II deste livro diz respeito à pesquisa em si, sendo constituída pelos demais capítulos, quatro no total. Nestes, caminharemos pelas veredas memoráveis de Ilha de Guaratiba por meio do compartilhamento da memória geográfica de seus moradores. No terceiro capítulo (A escala investigativa de um bairro afetivamente recortado), como o título sugere, enfocaremos as características de Ilha de Guaratiba e de seus moradores. No quarto capítulo, nossa meta é abordar sinteticamente o processo de mudanças na espacialidade em tela, buscando contextualizar as geografias de outrora ao contexto geográfico hodierno por meio de relatos memoriais de guaratibanos que vivenciaram e/ou vivenciam as transformações pelas quais o lugar vem passando ao longo do tempo. Com este fim, utilizamos os pressupostos metodológicos citados anteriormente no intuito de descortinar geografias de outrora e contemporâneas em uma abordagem que privilegie o enfoque dos muitos geógrafos  informais (LOWENTHAL, 1982; COSGROVE, 2004) da localidade em tela, em relação ao fenômeno vigente em seu lugar vivido. Isto posto, neste capítulo – intitulado “A marcha urbanizadora em Ilha de Guaratiba no entendimento de seus moradores” – descreveremos pontualmente a aludida marcha do Rio olímpico desaguando sua urbanidade sobre o bairro e este entre os meandros da calha urbana carioca, com o intuito de alcançar um melhor entendimento acerca do lugar. A abordagem parte do contexto em que vigorava na localidade um panorama rural-agrícola, passando pela desarticulação desta disposição de elementos e culminando com as transformações que conferem, hodiernamente, um arranjo urbano-residencial à antiga porção periurbana da cidade do Rio de Janeiro.

No quinto capítulo, o conteúdo simbólico do lugar assoma em sua plenitude. Por meio de relatos pessoais, buscamos captar e decifrar os símbolos de outrora e contemporâneos de Ilha de Guaratiba.

Finalmente, no sexto capítulo intitulado A valorização do espaço promovendo a valoração pelo lugar, versamos sobre as experiências e sentimentos dos guaratibanos em relação ao seu universo vivido que, ganhando visibilidade, tornou-se o centro (umbigo) do seu mundo, ou seja, com uma expressão etnocêntrica, no que diz respeito à geografia (TUAN, 1980; 2012). A gradativa metamorfose existencial e as demais transformações subjetivas ocorridas na vida das pessoas no desenrolar do processo de mudança (urbanização) que ocorre na localidade, igualmente, merecerão destaque nesta última etapa do livro. Assim sendo, neste capítulo, buscaremos traduzir as metamorfoses existenciais que vicejam no âmago da marcha urbanizadora que vigora em Ilha de Guaratiba, resultante, como já sublinhamos, do desaguar do Rio olímpico sobre o lugar.

Mesmo disponibilizando dois capítulos contendo os princípios filosóficos, metodológicos e teóricos da pesquisa, procuramos observar a articulação entre a base teórico-conceitual e a pesquisa operacional por meio da utilização de temas e conceitos que estão circunscritos a toda esta investigação científica. Vale frisar que a delimitação temática, filosófica, conceitual e metodológica encontra-se implícita e/ou explicitamente circunscrita das primeiras às derradeiras páginas desta pesquisa. Firmemos, portanto, as bases de uma geografia Memorável.

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