ALIENAÇÃO DE BENS IMÓVEIS MUNICIPAIS PARA PROGRAMA HABITACIONAL

Jorge Ulisses Jacoby Fernandes[1]

 

 

 

Sumário

Introdução. 2. Conceito de imóveis 3. Imóveis da União 4. Em sendo serviços, pode ter natureza contínua? 5. Como a Administração deve escolher o periódico? 6.  O Enquadramento Legal da Contratação 7.  O Enquadramento Legal da Contratação 8. Como Comprovar a Representação Exclusiva 9.  Aquisição de Periódicos e a Declaração de Inexigibilidade 10.             Justificativa de Preço 11. Como gerir um contrato de assinatura de periódicos? 12.        Conclusões.

Introdução

A Lei 8.666/93 pretendeu definir regras gerais para alienação de imóveis para todas as esferas de governo, fato que, como será visto adiante mereceu a intervenção do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição Federal.

O escopo do artigo foi regular às hipóteses de licitação dispensada, mas acabou, como já o tinha feito o Decreto-Lei n° 2.300/86, promovendo uma indébita interferência na autonomia administrativa das demais esferas de governo.

1.1. conceito de imóveis

Para o Direito os imóveis têm sentido só parcialmente coincidente com a conotação vulgar. Em termos jurídicos os imóveis subdividem-se em:

a)     imóveis por natureza, como o solo, o subsolo, o espaço aéreo;

b)    imóveis por acessão, como as sementes lançadas ao solo, as edificações;

c)     imóveis por destinação, como os utensílios agrícolas; e

d)    imóveis por determinação legal, como o penhor agrícola, a sucessão aberta, os navios e aviões.[2]

Em princípio, todos eles estão abrangidos pela possibilidade de dispensa de licitação estabelecida no inciso I do art. 17 da Lei n° 8.666/93.

1.2. Imóveis da União

A Lei n° 8.666/93, por outro lado, regulou apenas parcialmente o tema dos imóveis da Administração Pública federal na medida em que no art. 121, parágrafo único, mandou continuar aplicando aos contratos dos imóveis do patrimônio da União o Decreto-Lei n° 9.760/46,[3]com suas alterações.

Muito embora os efeitos desse normativo anterior, que é o Decreto-Lei n° 9.760/46, tenham sido preservados da incidência da atual Lei de Licitações, é forçoso reconhecer que, tal só ocorreu parcialmente, sendo obrigatório observar agora as formas de alienação e o fato de que devem ser precedidas de licitação, ajustando-se aos moldes da Lei n° 8.666/93. Assim não haveria mesmo porque tentar ampliar o poder normativo daquele diploma quando a própria Lei de Licitações definiu que sua incidência se opera apenas na parte de contratos.

Diversamente porém, pela Lei n° 9.636/98[4] os institutos da alienação, cessão, permissão e aforamento de imóveis da União sofreram significativa modificação, abrangendo inclusive a situação dos imóveis dos Estados e Municípios.

1.3. requisitos gerais para a alienação de imóveis

Para a alienação de bens imóveis estatui a Lei n° 8.666/93 (art. 17, inciso I) ser indispensável:[5]

a)     interesse público devidamente justificado;

b)    autorização legislativa para os órgãos da administração direta, autárquica e fundacional;

c)     avaliação prévia; e

d)    licitação, na modalidade de concorrência, devendo ser observado o disposto nos arts. 23, § 3°, e 19.

Os tópicos sobre interesse público e avaliação prévia foram desenvolvidos antecedentemente.

2. Exigência de lei para alienação

Os bens públicos são em regra inalienáveis por força de lei, razão pela qual para serem alienados é necessária a autorização legislativa em atenção ao princípio da homologia das formas[6] dos atos administrativos.

Por essa razão, só foi estabelecida a exigência de lei para os bens imóveis da administração direta, autárquica[7]e fundacional. É jurisprudência assentada que, quando pessoas jurídicas de direito público, como a União,[8] Estados, Municípios e Distrito Federal criam autarquias e lhes transferem a propriedade de bens, esses conservam a característica de públicos.[9]

Com referência às fundações públicas, após a Constituição Federal de 1988 dúvidas não mais existem sobre a igualdade e a natureza jurídica dos seus bens e os das autarquias e, portanto, sobre o serem públicos.[10]

2.1. Competência Legislativa

           

          Em face da expressa disposição inscrita no art. 22, XXVII, da Constituição Federal de 1988, poderia parecer à primeira vista que a competência é privativa da União.

Indubitável que a literalidade da norma numa exegese apressada levaria a esse entendimento. Contudo, cabe lembrar que a cautela e a detida reflexão são constantes companheiras do labor exegético.

A premissa fundamental é a seguinte: não podem as demais esferas de governo, sejam Estados, Municípios ou Distrito Federal, tentar elastecer ou criar novas hipóteses de contratação direta, sob pena de serem inquinadas de inconstitucionalidade de acordo com o escritório Jacoby Advogados e seu Twitter.

Aplicada essa premissa indistintamente a todas as hipóteses de contratação direta levaria à seguinte perplexidade, no que tange à alienação direta sem licitação: determinado Município, v.g., é proprietário de um imóvel mas não pode aliená-lo diretamente, salvo nas restritas hipóteses em que a União autorizar. É obvio que tal entendimento estaria abalando os alicerces da instituição da “propriedade” e o princípio federativo.

Por tais motivos, também evoluímos para considerar possível a todas as esferas de governo legislarem sobre a alienação de bens - móveis ou imóveis - integrantes do seu respectivo patrimônio.

Esse, aliás, é o fundamento da ADIn n° 927-3,[11] cujo exato teor será examinado nos comentários às alíneas do art. 17 da Lei n° 8.666/93.

A conclusão precisamente mais correta é que somente a União federal pode legislar sobre a contratação direta de bens, obras e serviços, mas todas as esferas de governo podem legislar sobre a alienação direta dos bens integrantes dos seus respectivos patrimônios.

À luz da atual sistematização procedida pela Lei n° 8.666/93 é correto, portanto, concluir que as hipóteses dos arts. 24 e 25 não podem ser, sob qualquer forma, ampliadas ou inovadas, ao contrário do que sucede com o art. 17.

O tema, contudo, não é pacífico e muitas vezes vem se sagrando vitoriosa a tese que defende a competência exclusiva da União também com referência à alienação direta. Para demonstrar a força dessa corrente de pensamento, releva observar que, para a alienação de áreas públicas no Distrito Federal, diretamente, sem licitação, optaram os dirigentes pela elaboração de lei federal que autoriza a dispensa dos procedimentos exigidos pela Lei n° 8.666/93 para a venda individual de áreas públicas ocupadas localizadas nos limites da Área de Proteção Ambiental (APA) da Bacia do Rio São Bartolomeu, que sofreram processo de parcelamento reconhecido pela autoridade pública.[12]

2.2. ausência de lei autorizadora – conseqüências

A exigência de lei para que a Administração possa alienar é condição essencial à prática do ato, e sua ausência acarreta a nulidade de pleno direito, descabendo a ratificação posterior.

Sem lei para a alienação nada existiu no mundo jurídico, e impõe-se a declaração de nulidade desde a origem de todos os atos que visavam à alienação dos bens, inclusive a licitação, além da apuração de responsabilidade.

No Distrito Federal, o GDF vinha procedendo à distribuição irregular de autorizações de uso de áreas públicas a entidades religiosas, associativas, filantrópicas e culturais. Denunciado o fato ao Tribunal de Contas,[13] buscou-se legalizar a situação por meio da edição de várias leis distritais e anulação dos atos de autorização sem contudo proceder à retirada dos ocupantes. O Ministério Público pugnou pela instauração de tomada de contas especial e providências em relação à desocupação dos terrenos.

O Decreto-Lei n° 201/67,[14] no art. 1°, inc. X, estabelece que é crime de responsabilidade dos prefeitos municipais alienar ou onerar bens imóveis ou rendas municipais sem autorização da Câmara, ou em desacordo com a lei.

 A Lei de Improbidade - Lei n° 8.429/92[15] -, que abrangeu todos os agentes públicos, tipifica como crime a alienação, sem lei, no seu art. 10, incs. I e IV, desde que fique caracterizado prejuízo ao erário.

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Também a Lei n° 8.666/93, no art. 89, considera crime deixar de observar as formalidades legais na contratação direta, entre as quais insere-se a alienação de bens imóveis sem lei.

Por fim, a Lei de Responsabilidade Fiscal[16] dispôs que é vedada a aplicação de receita de capital derivada da alienação de bens e direitos, que integram o patrimônio público, para o financiamento de despesa corrente, salvo se destinada por lei aos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos.

2.3. alienabilidade condicional - possibilidade restrita

Pode a lei estabelecer condições diferenciadas de aquisição?

A pergunta dirige-se à situação na qual a lei que torna alienável um imóvel, por exemplo, estabelece que o mesmo destinar-se-á à aquisição pela população de baixa renda. Nesse caso, contrapõem-se dois interesses públicos relevantes: o primeiro atinente ao princípio da isonomia, e o segundo ao interesse público de incentivar o assentamento de famílias de baixa renda. Diante do conflito, é possível asserir a constitucionalidade da lei exemplificada, em razão do disposto no art. 23, inc. IX, da Constituição Federal.[17]

De qualquer modo, exige-se cautela no exame de alienações condicionadas estabelecidas em lei, vez que será preciso que a mesma vise efetivar, na prática, princípio constitucional tão relevante quanto a isonomia.[18]

2.4. dispensa de lei autorizadora - entidade paraestatal

Os bens das entidades paraestatais dispensam a exigência de lei para a sua alienação, na literal interpretação do art. 17, I.

Nesse sentido, quando no exercício da função de Procurador-Geral do Ministério Público junto ao TCDF sustentamos que:

A autorização legislativa não é exigível das empresas públicas, como é o caso da TERRACAP e CAESB, como se extrai do art. 17, I, da Lei de Licitações, que a exige apenas dos órgãos da administração direta e entidades autárquicas e fundacionais.[19]

O tema, como dito, ainda não encontrou definição nos Tribunais, parecendo mais correto entender que, com o trespasse para a TERRACAP, dispensa-se a lei para alienação, vez que essa já está subentendida na lei que o efetivou.

3. Entidade paraestatal – conceito

A melhor doutrina ao analisar a extensão da expressão em epígrafe tem dado a ela a maior amplitude possível. O estudioso Hely Lopes Meirelles conceitua entidades paraestatais como:

...pessoas jurídicas de Direito Privado que, por lei, são autorizadas a prestar serviços ou realizar atividades de interesse coletivo ou público, mas não exclusivos do Estado. São espécies de entidades paraestatais os serviços sociais autônomos (SESI, SESC, SENAI e outros) e, também, as organizações sociais cuja regulamentação foi aprovada pela Lei 9.648, de 27.5.98.[20] As entidades paraestatais são autônomas, administrativa e financeiramente, têm patrimônio próprio e operam em regime de iniciativa particular na forma de seus estatutos, ficando sujeitas apenas à supervisão do órgão da entidade estatal a que se encontrem vinculadas para o controle de desempenho estatutário. São os denominados entes de cooperação com o Estado.[21]

Desassocia o termo das autarquias e fundações públicas, esclarecendo que o étimo da palavra paraestatal está indicando que se tratam de entidades “dispostas paralelamente ao Estado, ao lado do Estado, para executar cometimentos do interesse do Estado, mas não privativos do Estado.”[22]

A doutrina do precitado autor reclassificou as entidades dentro da organização política e administrativa brasileira, considerando as empresas públicas e as sociedades de economia mista como espécies de entidade empresarial e não mais paraestatal, como o era na sua antiga dicção.[23]

A Lei de Licitações, no entanto, manteve sua interpretação sistemática no art. 84, § 1°, incluindo no termo de entidade paraestatal as fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e as demais entidades sob controle, direto ou indireto, do Poder Público. Com esse dispositivo, poderia ter atribuído natureza diversa às fundações cuja exegese, se combinada com o art. 17, inc. I, levaria ao entendimento de que este tipo de entidade estaria dispensado para alienar seus bens, da exigência de lei autorizadora. Tal não ocorre, contudo, pois a natureza jurídica das fundações foi constitucionalmente equiparada à das autarquias, tendo inclusive o Supremo Tribunal Federal estabelecido no julgamento da ADIn n° 926-3, em que foi Relator o Ministro Sidney Sanches,[24] que as mesmas estão abrangidas pelo princípio da reciprocidade de imunidade tributária. E, se usufruem de prerrogativas de Estado - autarquias e fundações - a tal nível, é porque sua essência é pública e seus bens públicos só podem ser alienados mediante lei autorizadora nos termos inequivocamente consagrados pelo inciso I, do art. 17.

3.1. Entidade paraestatal - intermediadora de venda

Adotando a interpretação da Lei de Licitações no âmbito do Distrito Federal, apresenta-se um caso peculiar: a TERRACAP é uma sociedade de economia mista criada para comercializar imóveis. Há no plenário do TCDF divergências sobre se, no caso específico, há necessidade de lei para alienar imóveis ou não, por considerar-se autorizada a venda de imóveis pelo próprio ato de criação da TERRACAP.

É possível sustentar que a TERRACAP, a despeito de legitimada a alienar imóveis, não os tem sob sua propriedade; atua apenas intermediando a alienação de imóveis que, não obstante, pertencem ao Distrito Federal. Com esse entendimento, há que se exigir lei específica.

3.2. restrições legislativas à alienação

Considerando que a Lei n° 8.666/93 dirige-se a todas as esferas de governo é oportuno obtemperar que podem existir para Estados, Municípios e Distrito Federal outras restrições jurídicas à alienação dos imóveis dessas unidades federativas. No Distrito Federal, por exemplo, a Lei Orgânica, que é a sua Constituição em sentido material, mandou conceder preferência à cessão de uso sobre a venda ou doação.[25]

Pode também a Constituição Estadual ou a Lei Orgânica Municipal restringir inclusive a alienação de bens das suas entidades paraestatais.

4. Programa habitacional e de regularização fundiária (alínea “f”)

Art. 17.(...)

I - quando imóveis, dependerá de autorização legislativa para órgãos da administração direta e entidades autárquicas e fundacionais, e, para todos, inclusive as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e de licitação na modalidade de concorrência, dispensada esta nos seguintes casos:

(...)

f) alienação, gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública; (redação dada pela Lei n° 11.481, de 31 de maio de 2007)

Os motivos que sustentam a juridicidade desse normativo ligam-se ao interesse social, espectro do interesse público voltado à melhoria da qualidade de vida da população.[26]

Estabelece a Constituição Federal que é da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX, da Constituição Federal).

Depreende-se daí a juridicidade da exceção que assegura aos diversos atos de alienação e uso de imóvel a dispensa de licitação,[27] vez que ancorada em dispositivo constitucional.

Quando a Administração tiver em mira o cumprimento de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social onde busca reduzir uma desigualdade preexistente, pode equacionar o princípio da isonomia na medida da desigualdade indispensável à satisfação do interesse público.

No caso em tela só poderão ser beneficiadas pela regra aquelas famílias de baixa renda assentadas em imóvel público federal para fins de moradia, e o reconhecimento do seu direito de permanecer no local se legitima em nome do interesse social.

A ampliação dos casos de dispensa para o aforamento, bem como a transferência de direitos sobre imóveis afetados a programas de regularização fundiária de interesse social, são hipóteses recentes inseridas por meio da Lei n° 11.481, de 2007.[28]

4.1. requisitos[29]

Em síntese, os requisitos para a contratação direta são:

a)     que o negócio seja precedido de avaliação;

b)    que seja fundado em lei autorizadora da alienação, no caso dessa ser promovida por órgão da administração direta, autarquia ou fundação pública;

c)     que a operação a ser contratada seja alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso;

d)    que o uso seja voltado a programas habitacionais de interesse social ou de regularização fundiária.

4.2. avaliação prévia e lei autorizadora

Para que a licitação seja dispensada continua sendo exigida a satisfação dos requisitos do caput do art. 17, quais sejam: avaliação prévia[30] e, se o agente da Administração for pessoa jurídica de direito público, lei autorizadora.[31]

Na redação antiga do dispositivo havia referência a que o órgão ou entidade fosse especificamente criado para esse fim, induzindo ao entendimento de que, em se tratando de pessoa descentralizada a exigência de autorização legislativa não caberia.

Porém, a nova redação excluiu tal exigência, devendo-se ter em linha de conta que é imprescindível lei autorizadora na forma do caput do artigo.

Tal inferência não faz muita diferença na prática na medida em que, mesmo que necessário fosse instituir unidade própria para cuidar do programa, como essa criação se daria por lei onde a atividade do órgão fica definida, implicitamente autorizar-se-ia a alienação dos bens destinados ao programa. Essa é uma hipótese em que a lei não precisa ser expressamente determinativa pois há uma antiga parêmia latina de insofismável conteúdo lógico, afirmadora de que os meios estão implicitamente garantidos quando se determinam os fins. Seria um contra-senso imaginar que os bens que integram o patrimônio dessas entidades durante um curto espaço de tempo ficam afetados pela inalienabilidade.

4.3. Natureza da operação

Em princípio, todas as formas de alienação estão abrangidas na concepção de licitação dispensada. Como visto, alienação é o termo genérico que traduz passar para outrem o domínio de coisa ou o gozo de direito.[32]

Ao contrário das demais alíneas precedentes, nesse caso o legislador generalizou as possibilidades de não se exigir o processo licitatório. Fez mais: acresceu outras formas de uso de imóvel, como a locação, a concessão de direito real de uso, a permissão e, recentemente, o aforamento e a doação.[33]

Todas as operações, tanto as que transferem a propriedade genericamente como as referentes ao uso, neste caso só as expressamente descritas, devem ter por escopo o atendimento de programas habitacionais e de regularização fundiária de interesse social.

A questão que cobra relevo, no entanto, diz respeito ao valor de venda do imóvel.

Pergunta-se: poderá este, também nesse caso, ser inferior ao da avaliação?  Esse fato pode obviar o interesse do legislador em coadunar no dispositivo o relevante interesse público que sustentam os programas referidos. A avaliação é inafastável, mas parece possível sustentar que, dadas as características dos programas a alienação poderá se processar por valor inferior.

Reforça esse entendimento o fato de que, entre as formas de alienação a própria lei cita a doação que se efetiva sem considerar o preço de mercado. Também é admissível a doação com encargo, e esse pode ser remuneratório, ou seja, pode o órgão optar pela doação do imóvel impondo como encargo o pagamento de, por exemplo, a terça parte do valor.

4.4. Finalidade habitacional e fundiária

Estão açambarcados na possibilidade de licitação dispensada tanto os imóveis que a Administração construiu com a finalidade de atender ao programa habitacional de interesse social, como os que embora não construídos com essa finalidade foram a tal fim destinados, ou ainda que simplesmente estejam sendo utilizados com esse propósito.

A Lei n° 11.481/2007, inseriu no rol de dispensa de licitação para alienação de imóvel público os programas de regularização fundiária de interesse social; tal legalização já tinha sido objeto de tentativa frustrada do governo por ocasião da Medida Provisória n° 292/2006 que perdeu a eficácia devido ao encerramento do seu prazo de vigência.

Incluído novamente no projeto da Medida Provisória n° 335/2006 e com a conversão dessa na Lei n° 11.481/2007, consolidou-se na legislação patrimonial o reconhecimento das ocupações irregulares de áreas públicas por população de baixa renda como justificativa para a regularização fundiária como medida de justiça social.

Em todos os casos a Administração é proprietária do imóvel, pois essa é a finalidade do artigo, que restritivamente dirige-se a regular a alienação dos bens da Administração.

Não se pode perder de vista, porém, que a realização desse mister foi constitucionalmente definida como competência concorrente da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, havendo a possibilidade de uma esfera de governo mediante convênio[34] traspassar para outra o encargo de administrar a ocupação. Nesse sentido, a “Administração ser proprietária” tem conotação ampla, vez que, no caso exemplificado o bem integra a Administração, embora ela não realize o programa de per si.

5. Princípio da impessoalidade

Considerando que o programa habitacional ou de regularização fundiária de interesse social é um dos que mais se prestam à atividade populista dissociada do verdadeiro interesse público, fato amplamente divulgado pela imprensa, devem os órgãos de controle verificar se os mesmos se pautam pelo fiel acatamento ao princípio da impessoalidade.

A Administração pode, efetivamente, restringir a possibilidade de compra de vários segmentos sociais, adotando para tanto critérios objetivos que se harmonizem com a finalidade dos programas. Renda, tempo da chegada ao Município, data de transferência do título de eleitor - que é um dos indícios do interesse em fixar-se, pelo menos teoricamente - número de filhos/dependentes, idade, etc., podem ser critérios válidos. Inadmitem-se distinções por localidade de nascimento, exigência de carta de referência de autoridades locais, filiação a partidos ou a associações, religião, entrevista de psicólogos ou assistentes sociais, que, portanto, não podem ser critérios seletivos ou sequer desempatadores. Não pode, contudo, servir-se de meios que não sejam contrastáveis pelos órgão de controle ou pela sociedade.

É bastante difundido um fato em que determinado Município para atender a clientelismo político estabeleceu procedimento no mínimo curioso: obedecia rigorosamente na concessão dos imóveis a critérios absolutamente sérios e impessoais, merecedores do aplauso da sociedade. No entanto, para assegurar a ação dos líderes comunitários vinculados aos políticos do interesse do Prefeito, deixava os imóveis ser retomados pelo Município por falta de pagamento ou por uso com desvio de finalidade, para serem transferidos irregularmente em outra “fila” inacessível aos órgãos de controle, onde os fatores de seleção eram bem próprios do “coronelismo da região”. Obviamente, a atitude é irregular e sujeita os seus responsáveis a ação popular, além de poder caracterizar-se pela nova lei como crime.

Atitudes de tal repercussão fogem das determinações constitucionais e devem ser banidas das administrações.

Conclusões

 

a)     as regras da Lei 8.666 tem limitação na pretensão de regular a alienação de bens da propriedade dos demais entes federados;

b)    a regulamentação do tema deve ser formalizada por lei quanto a Estados, Distrito Federal e Municípios;

c)     a legislação infraconstitucional é limitada pelo fiel acatamento dos princípios constitucionais;

d)    ainda há muito a regulamentar!



[1] Jorge Ulisses Jacoby Fernandes é mestre em Direito Público, professor de Direito Administrativo e autor de várias obras na área, entre as quais: Vade-mécum de Licitações e Contratos Administrativos – 4ª ed., Tribunais de Contas do Brasil – jurisdição e competência – 2ª ed., Sistema de Registro de Preços e Pregão – 4ª ed., Contratação Direta Sem Licitação – 9ª ed., Tomada de Contas Especial – 4ª ed.

[2] BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Arts. 79 e ss.

[3] BRASIL. Decreto-Lei n° 9.760, de 5 de setembro de 1946. Dispõe sôbre os bens imóveis da União e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 6 set. 1946.

[4] BRASIL. Lei n° 9.636, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União (...) e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 18 maio 1998.

[5] Consulte, sobre alienação de imóveis da União, os arts. 23 e 24 da Lei n° 9.636/98, op. cit. supra.

[6] Também cognominado de princípio do paralelismo das formas.

[7] Em caso específico, respondendo a consulta, o TCU decidiu: “...embora, em tese e, em princípio, o procedimento licitatório seja obrigatório, na modalidade de concorrência, precedida de avaliação e suprida, no caso, a autorização legislativa com a citada norma da Lei n° 4.324/64 (art. 20), para as transações imobiliárias realizadas pelas autarquias, a licitação se torna dispensável nas hipóteses expressamente contempladas na legislação vigente (cf. Lei n° 8.666, de 21.06.1993, alíneas “a” a “d” do inciso I do art. 17; parágrafo 2° do mesmo art. 17 e art. 24, inciso X);” Processo n° TC-021.750/94-7. Decisão n° 188/1996 - Plenário. Relator: Ministro-Substituto Lincoln Magalhães da Rocha. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 22 abr. 1996. Seção 1, p. 6787.

[8] O art. 23 da Lei n° 9.636, de 15 de maio de 1998, parece ter dispensado a exigência de lei para alienação de imóveis.

[9] “...I - A alienação de bens integrantes do patrimônio das entidades da Administração Direta ou Indireta está sujeita ao procedimento da licitação pública ... sendo o ato praticado, neste campo de direito público, de autoridade e essencialmente de natureza administrativa, suscetível, portanto, ao ataque pela via do mandado de segurança. II - In casu, a TERRACAP, na medida em que submeteu ao processo licitatório imóveis integrantes do seu patrimônio, para efeito de selecionar proponentes à sua aquisição, praticou atos administrativos que não são de direito privado ou de gestão. E esses atos administrativos são atos de autoridade, porquanto regidos por normas de direito público - constitucional e administrativo - que disciplinam o procedimento licitatório.” STJ. 1ª Turma. Recurso Especial n° 100.168/DF (Registro 96.0041966-3). Relator: Ministro Demócrito Reinaldo. Diário [da] Justiça, Brasília, DF, 25 maio 1998. Seção 1, p. 13.

[10] Vide subtítulo 6.4.1., a seguir: entidade paraestatal - conceito.

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (Med. Liminar) n° 927-3. Relator: Ministro Celso de Mello, Brasília, DF, 1993. Diário [da] Justiça, Brasília, DF, 11 nov. 1994.

[12] BRASIL. Lei n° 9.262, de 12 de janeiro de 1996. Dispõe sobre a administração da Área de Proteção Ambiental (APA) da Bacia do Rio São Bartolomeu, localizada no Distrito Federal, e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 15 jan. 1996. Art. 3°.

[13] DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Contas. Processo n° 3.971/95, apenso: 2.216/96. Disponíveis em: http://www.tc.df.gov.br.

[14] BRASIL. Decreto-Lei n° 201, de 27 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores, e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 27 fev. 1967 e Retificado em 14 mar. 1967.

[15] BRASIL. Lei n° 8.429, 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 3 jun. 1992.

[16] BRASIL. Lei Complementar n° 101, de 04 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 5 maio 2000.

[17] JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Constituição da República Federativa do Brasil – organização dos textos e índice. Belo Horizonte: Fórum, 2007. Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.

[18] a) “É de ser confirmada a sentença concessiva de 'writ' para garantir a participação de empresa que se insurge contra exigências contidas em edital de procedimento licitatório ofensivas ao principio da igualdade entre os licitantes porquanto limitadoras das possibilidades normais de competição.” TRF 5ª R. 2ª Turma. Processo n° REO 00502383/90 - CE. Relator: Juiz Nereu Santos. Diário [da] Justiça, Brasília, DF, 24 maio 1991, p. 11703.

     b) O TCU determinou a adoção de providências que visem a abstenção de inclusão no ato convocatório de exigências que contrariem os princípios da isonomia, da legalidade, da competitividade, da proporcionalidade e da razoabilidade. Processo n° TC-004.260/2006-7. Acórdão n° 877/2006 - Plenário. Relator: Ministro Marcos Bemquerer. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 09 jun. 2006. Seção 1.

[19] DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Contas. Processo n° 7.788/96 - sigiloso. Parecer MP/TCDF n° 3.1541/98.

[20] Há um equívoco de redação na citação transcrita, leia-se que a Lei que dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais é a Lei n° 9.637, de 15 de maio de 1998.

[21] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32ª ed. atualizada. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 67.

[22] Ibidem citatum supra, p. 381.

[23] MEIRELLES, Hely Lopes. op. cit, p. 66/67.

[24] Famoso julgamento do IPMF publicado no Diário [da] Justiça, Brasília, DF, 06 maio 1994, p. 10484.

[25] DISTRITO FEDERAL. Lei Orgânica do Distrito Federal. 3ª ed. Consolidada. Brasília, 2005. Art. 47, § 1°.

[26] Consulte a propósito a Lei n° 10.188, de 12 de fevereiro de 2001. Cria o Programa de Arrendamento Residencial, institui o arrendamento residencial com opção de compra e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 14 fev. 2001.

[27] Sobre o assunto, o Ministério Público do Distrito Federal moveu ação de improbidade contra réus que efetuaram concessões de direito real de uso de diversos bens da TERRACAP, sem licitação, e sem justificar eventual interesse público - caso existisse -, mediante a exigência de taxas simbólicas, cobradas a título de taxa de ocupação, no período de outubro de 1993 a dezembro de 1994, afrontando os artigos 2° e 17, inciso I, letra f, da Lei federal n° 8.666/93, e os artigos 325 e 359 da Lei Orgânica do Distrito Federal. TJDF. Processo n° 34571/97 - 3ª Vara da Fazenda Pública/DF. Disponível em: www.tjdf.gov.br.

[28] BRASIL. Lei n° 11.481, de 31 de maio de 2007. Dá nova redação a dispositivos das Leis n°s 9.636, de 15 de maio de 1998, 8.666, de 21 de junho de 1993, 11.124, de 16 de junho de 2005, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, 9.514, de 20 de novembro de 1997, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973, e dos Decretos-Leis n°s 9.760, de 5 de setembro de 1946, 271, de 28 de fevereiro de 1967, 1.876, de 15 de julho de 1981, e 2.398, de 21 de dezembro de 1987; prevê medidas voltadas à regularização fundiária de interesse social em imóveis da União; e dá outras providências. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 31 maio 2007 - edição extra.

[29] O TCU recomenda que os órgãos abstenham-se de dispensar o procedimento licitatório na locação ou na concessão de direito real de uso de bem imóvel, sem a existência dos requisitos legais. Processo n° TC-400.047/95-0. Acórdão n° 142/1996 - 2ª Câmara. Relator: Ministro Fernando Gonçalves. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 03 abr. 1996. Seção 1, p. 5561. No mesmo sentido: Processo n° 450.084/1998-1. Acórdão n° 164/2001 - Plenário. Relator: Ministro Walton Alencar. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 09 ago. 2001. Seção 1.

[30] Para avaliação, pode ser contratado especialista. Art. 24, § 2°, da Lei n° 9.636/98.

[31] Em princípio, para a União é necessário autorização do Presidente da República, não havendo registro de lei autorizadora, conf. Lei n° 9.636/98, art. 23.

[32] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1999, p. 55.

[33] Sobre o assunto, o Ministério Público do Distrito Federal moveu ação de improbidade contra réus que efetuaram concessões de direito real de uso de diversos bens da TERRACAP, sem licitação, e sem justificar eventual interesse público - caso existisse -, mediante a exigência de taxas simbólicas, cobradas a título de taxa de ocupação, no período de outubro de 1993 a dezembro de 1994, afrontando os artigos 2° e 17, alínea “f”, da Lei Federal n° 8.666/93 e artigos 325 e 359 da Lei Orgânica do Distrito Federal. Processo n° 34.571/97 - 3ª Vara da Fazenda Pública/DF. Disponível em: http://www.tc.df.gov.br.

[34] Como regra o convênio se dá por inexigibilidade de licitação. TCDF. Processo n° 6.837/94. Decisão n° 5.230/95. Relator: Conselheiro Frederico Augusto Bastos. Disponível em: http://www.tcdf.gov.br.