“Do gibão à Batina”: a ocupação de Nossa Senhora da Glória e o papel da Igreja para o desenvolvimento de “Boca da Mata” (fins do século XVIII ao início do século XX)

                                                                  Airles Almeida dos Santos

Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS)

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar as divergentes teses que explicam o processo de ocupação e povoamento a partir da expansão pecuária da atual cidade de Nossa Senhora da Glória, localizada no sertão sergipano, mostrar o papel da Igreja Católica para o desenvolvimento do Povoado Boca da Mata, a introdução de costumes e as transformações que conduziram a criação da referida cidade.

Palavras-chaves: Boca da Mata. Ocupação. Pecuária. Igreja. Nossa Senhora da Glória.

   Introdução

         Ao analisarmos o processo de colonização de Sergipe, a partir da conquista violenta de Cristóvão de Barros em 1590, percebemos a sua especificidade ao compararmos com outras capitanias, principalmente as vizinhas, Pernambuco e Bahia. Diferentemente destas duas, onde prevaleceu a produção da cana de açúcar, um produto agro-exportador, a capitania de Sergipe del´Rey se insere nesse contexto e se destaca não pela produção desse gênero agrícola, mas sim pela criação de gado, ou como diria Felisbelo Freire “antes do sergipano ser lavrador, foi pastor”. Foi a criação de gado que possibilitou o povoamento das terras do sertão. É a partir desse “desbravamento” das terras sertanejas que analisaremos o processo de ocupação e povoamento da atual cidade de Nossa Senhora da Glória e por fim mostrar o papel da Igreja Católica para o desenvolvimento e constituição da referida cidade.

1 A ocupação de Nossa Senhora da Glória

A história da origem do município de Nossa Senhora da Glória - Sergipe, a 126 Km da capital Aracaju – insere-se no contexto do terceiro ciclo da ocupação do sertão sergipano (fins do século XVIII e início do XIX), muito semelhante em relação a história de outros municípios dessa região. Explica-se o início do povoamento da atual cidade a partir da expansão da atividade pecuária, resultante na ocupação de fazendas e sítios a partir do século XVIII compondo os primeiros núcleos de povoamento. O primeiro nome dado a esse insipiente aglomerado humano foi Boca da Mata por servir de ponto de parada aos viajantes, boiadeiros, tropeiros, tangedores de gado e interessados na compra do açúcar e no jabá da região do Cotinguiba, que preferiam pernoitar ao adentrar à noite na mata alta e densa. Foi graças aos ranchos desses viajantes que se formou o primeiro núcleo habitacional no local.

Entretanto, ao analisar esse processo de ocupação, aparecem várias querelas, principalmente no que se refere ao período. A maior dificuldade para o estudo do tema é a falta de documentação ou pesquisas relacionadas ao assunto, pois “dados mais positivos sobre o primeiro aglomerado humano, que deu início ao povoado de Boca da Mata, não foram localizados” [1]. Acreditou-se a muito que a povoação que possibilitou a criação da atual cidade de Nossa Senhora da Glória teria surgido por volta de 1600 a 1625, século XVII, como afirma o historiador sergipano Carvalho de Lima Júnior em História dos Limites entre Sergipe e Bahia. Esse autor defende a tese de que as terras pertencentes ao referido município pertencia a Tomé da Rocha Malheiros, que obtivera uma sesmaria de 10 léguas da Serra da Tabanga, estendendo-se para o sertão [2]. Essa tese, tida como irrefutável, passou a ser contestada. Segundo o professor José Carlos de Souza, em tal afirmação ocorreu um equívoco e ao analisarmos a história de Gararu (Curral de Pedras), a qual Boca da Mata pertencia, percebemos alguns problemas ao afirmarmos que a região foi ocupada no século XVII. O povoamento de Curral de Pedras teria sido resultado da fuga de colonos portugueses que se refugiaram na Serra da Tabanga, apavorados pela ação dos holandeses em território sergipano a partir de 1637. “Portanto, por ser uma região de difícil acesso, a Boca da Mata dificilmente seria colonizada no século XVII antes de “Curral de Pedras” (Gararu), como não foi, uma vez que estava localizada nas margens de um rio perene [o São Francisco] e isso é um fator facilitador da ação de colonos em um território” [3]. O sertão sergipano foi ocupado basicamente pelo elemento europeu, quase não havendo a presença de indígenas, mas sim de alguns caboclos, fruto da miscigenação. Estes caboclos se tornaram vaqueiros, sendo os primeiros a provocarem o processo de expansão das terras para o sertão, compondo figuras principais das fazendas de criar.

            Dessa forma, a primeira povoação que deu início ao povoado de Boca na Mata surgiu a partir do fim do século XVIII e início do XIX, sendo constituído primeiramente Curral de Pedras e a partir daí os ranchos de tropeiros para pernoitar, dando origem aquele. Foi a formação desses ranchos que provocou a gradativa derrubada da mata para o desenvolvimento de culturas agrícolas, como mandioca, milho e é claro para servir de pastagens para o gado.

          Outras evidências mostradas por José C. de Souza nos faz perceber a invalidade da tese de Lima Júnior. Depoimentos colhidos por ele de João de Sousa e Honório Mandacaru, primeiros a residirem em Boca da Mata, mostram que este povoado teve início nos fins do século XIX, pois os respectivos entrevistados nasceram em 1865 e 1868.

          A Igreja Católica também foi uma instituição responsável pelo processo de colonização de Sergipe e “a chegada [dela a algum] povoado possibilitaria uma elevação futura daquela localidade em freguesia” [4]. O lugar onde fosse construída uma igreja, ao mesmo tempo em que possibilitaria um aumento demográfico, elevaria sua situação e seu status, passando a ser mais valorizado. Foi dessa maneira que muitas das povoações da capitania surgiram e passaram de freguesia à vila, e desta a cidade. Porém, no que se refere aos primórdios da ocupação do que veio a se tornar Nossa Senhora da Glória, esse processo ocorreu de modo peculiar. Diferentemente das povoações que surgiram a partir de uma capela, “Boca da Mata” teve a sua construída apenas em 1904 (apesar da primeira missa ter sido celebrada por volta da última década do século XIX), enquanto o início da povoação seu provavelmente em 1879.

          Conforme Santos [5], as primeiras habitações de Boca da Mata foram a fazenda de mesmo nome, pertencente a Antônio de Souza Corrêa, na atual Avenida 7 de Setembro; a casa de Senhor Xixiu (Francisco Teles Trindade), no lado direito de onde veio a ser construída a capela e a casa de Antônio Pereira de Sousa, a primeira da Rua Velha, hoje Praça da Bandeira.

          A evolução política de Boca da Mata iniciou-se em 1922, quando passou a ser sede do segundo Distrito de Paz de Gararu, já com a denominação de Nossa Senhora da Glória. A emancipação deu-se em 26 de Setembro de 1928 pela Lei Estadual no 1014 quando passou a condição de vila e foi desmembrada de Gararu e passou a pertencer a Comarca de Capela. Foi a partir de então que começou sua fase de apogeu. No dia 1 de Janeiro de 1929, a vila teve nomeado como primeiro intendente João Francisco de Souza, que construiu a prefeitura. Ele foi nomeado para o período de 1930 a 34, mas teve o mandato interrompido pelo movimento revolucionário. Sobre o ocorrido, Santos narra em “Glória Cantada em Versos – 80 anos de Emancipação Política”: Em vinte e nove assumiu / Nosso primeiro intendente: / João Francisco de Souza. / Este governou somente / Um ano de seu mandato, / Pois não era o candidato / Do lado do Presidente [6] (grifo do autor).

           Esse mesmo ano de 29 marca a passagem do bando de Lampião, no dia 20 de abril, pela feira de Glória e da volante de Zé Rufino. Somente em 1938, a vila foi elevada à categoria de cidade. Com a criação de novas comarcas em 1945, Glória passou a pertencer juridicamente a Nossa Senhora das Dores. Em 24 de julho de 1957 foi criada a comarca de Nossa Senhora da Glória.

2 A chegada da Igreja e a transformação de “Boca da Mata” em Nossa Senhora da Glória

          Como foi dito anteriormente, diferentemente do que ocorreu com outros núcleos de povoamento em Sergipe, onde foi a presença da Igreja que possibilitou em parte, a valorização do local, Boca da Mata não surgiu após a construção de uma capela. Esta apenas foi construída em mutirão no ano 1904, aproximadamente 25 anos após o início da povoação. Segundo fontes historiográficas, o terreno onde aquela teria sido construída foi doado pelo senhor Francisco Teles Trindade, conhecido como Xixiu – primeiro habitante – que possuía uma casa ao lado direito de onde veio a ser a capela. O primeiro nome do povoado foi modificado pelo primeiro capelão Francisco Gonçalves de Lima, quando este fez campanha junto à comunidade para comprar a imagem de Nossa Senhora da Glória, a partir de então consagrada padroeira, e o sino para a primeira capela. Foi apenas em 1959 que a Igreja Matriz passou a ser paróquia e teve como primeiro pároco José Amaral de Oliveira.

          A chegada da Igreja a Boca da Mata possibilitou a criação e enraizamento de costumes, baseados na ética e na moral religiosa. Por isso, a maioria das festas do povoado passou a estar intimamente ligada à religiosidade desse povo sertanejo. O próprio nome dado ao município reflete essa mentalidade característica das regiões onde a Igreja Católica se fez presente. “De uma forma ou de outra, as pessoas do lugar sempre se viram a título de manifestação religiosa, seja ela vinculada a algum fato político ou social relevante, seja a uma forma de festa ou comemoração coletiva” [7]. Inclusive a instalação da Agência dos Correios só foi possível graças à intervenção do bispo de Aracaju.

          A chegada da santa que dá nome a cidade deu origem a duas festas populares que são realizadas até hoje: a Festa de Santos Reis (06/01/1905) e a Festa da Padroeira (15/08/1906), que marca a chegada da imagem ao povoado. “Mil novecentos e cinco / Um ano que faz história / Aconteceu a primeira / Das Festas de Reis em Glória, / Com bazares, cabacinhas, / Quermesses e ladainhas, / Que ficaram na memória”  [8](grifo do autor).

          Essas duas festas são o reflexo da importância da chegada da Igreja a Boca da Mata, que posteriormente passaria a ser chamado de Nossa Senhora da Glória, contribuindo de forma decisiva para o desenvolvimento do local. Elas refletiram a época e ainda refletem “a condição de fé do povo gloriense, um povo que constrói sua existência através da crença divina na superação dos obstáculos interpostos pela realidade” [9].

Conclusão

          Percebemos então, que a tese que melhor explica o processo de povoamento de Boca da Mata é a que afirma ter ocorrido nos fins do século XVIII e início do XIX, pois aquele jamais poderia ter sido colonizado antes de Curral de Pedras (atual Gararu). Notamos a importância da pecuária e dos criadores de gado para a penetração das terras do sertão sergipano, sem falar do papel da Igreja Católica para o seu desenvolvimento, introduzindo novos costumes e modos de relação entre o homem e seu meio.

                                   


Referência Bibliográfica

Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. XXIV Volume. IBGE, 1959.

GOMES, C.C.S.; SANTANA, B. de B.; SANTOS, M.J.O. Breve História de Nossa Senhora da Glória. In: Memórias e Lembranças de Um Povo: Marcas do Cangaço em Nossa Senhora da Glória (monografia – graduação em história). Universidade Tiradentes. Itabaiana, 2008.

Informações Básicas Municipais. Município de Nossa Senhora da Glória. Breve Histórico. Emdagro, 2008.

SEMEC. Apostila de Pesquisa. Nossa Senhora da Glória. 1988.

SANTOS, Jorge Henrique Vieira. Glória Cantada em Versos – 80 Anos de Emancipação Política. Aracaju, J.Andrade, 2008.

________. Breve relato sobre Nossa Senhora da Glória. Disponível em <http://www.ilzahistoria.xpg.uol.com.br, acesso em 15 de fevereiro de 2013.

________. A Origem do Povoado “Boca da Mata”. Disponível em <http://wwwcapitaldosertao.blog.terra.com.br, acesso em 15 de fevereiro de 2013.

SOUSA, Antônio Lindvaldo. Enquanto a ordem prevalecer: os núcleos de povoamento, o Estado e o Padroado. In: Temas de História de Sergipe II. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, CESAD, 2010.

SOUZA, José Carlos de. Discurso do Homenageado. Discurso proferido na sessão solene da Câmara Municipal de Nossa Senhora da Glória, em 30 de setembro de 2005.



[1] Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. XXIV Volume. IBGE, 1959.

[2] Carvalho de Lima Júnior, apud, Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. XXIV Volume. IBGE, 1959, p. 382.

[3] C. C. S. Gomes; B. de B. Santana; M. J.O, Santos. Breve História de Nossa Senhora da Glória. In: Memórias e Lembranças de Um Povo: Marcas do Cangaço em Nossa Senhora da Glória (monografia – graduação em história). Universidade Tiradentes. Itabaiana, 2008.

[4] Antônio Lindvaldo Sousa. Enquanto a ordem prevalecer: os núcleos de povoamento, o Estado e o Padroado. In: Temas de História de Sergipe II. São Cristóvão. Universidade Federal de Sergipe, CESAD, 2010.

[5] Jorge Henrique Vieira Santos. Breve relato sobre Nossa Senhora da Glória. Disponível em <http://www.ilzahistoria.xpg.uol.com.br, acesso em 15 de fevereiro de 2013.

[6] Jorge Henrique Vieira Santos. Glória Cantada em Versos – 80 Anos de Emancipação Política. Aracaju, J.Andrade, 2008. p. 12.

[7] Cf. nota 5.

[8]  Santos, op. cit., p.10

[9] Idem, Breve relato sobre Nossa Senhora da Glória. . Disponível em <http://www.ilzahistoria.xpg.uol.com.br, acesso em 15 de fevereiro de 2013.