O governo Lula segundo o embaixador:

A visão da embaixada americana sobre a política externa no Brasil entre 2003-2010[1]

 

 

No final de 2010, o governo dos EUA foi surpreendido pelo vazamento na internet de centenas de milhares de telegramas diplomáticos emitidos por embaixadas americanas espalhadas em várias partes do planeta. Este acontecimento já amplamente conhecido foi protagonizado pelo então soldado e analista de inteligência Bradley Manning, hoje chamada Chelsea Manning, quando ele entregou arquivos sigilosos do exército americano ao Wikileaks, organização liderada por Julian Assange e reputada por sucessivas publicações de documentos secretos com informações sensíveis de governos e grandes corporações.

 

A pronta reação política do governo Obama logo após o vazamento já sugeria, por si só, a relevância das informações contidas naquelas comunicações. As mais de 251 mil correspondências estão recheadas de dados, orientações, ordens e comentários de diversos diplomatas e altas autoridades, algumas de primeiro escalão, das embaixadas, do Departamento de Estado e demais órgãos da política de segurança e inteligência dos EUA; todas agora expostas ao mundo. Daquele total, pouco mais de 03 mil telegramas foram emitidos de embaixadas situadas no território brasileiro, o que nos permite em grande medida acessar a forma e o conteúdo pelos quais a diplomacia americana entrevia a atuação do governo do Brasil nas diversas áreas da política interna e internacional. Especialmente a atuação do governo Lula, já que o conjunto de memorandos revelados por Manning data justamente dos anos de 2003 a 2010. [2]

 

Estão em análise aqui três desses papers que, apesar de representar apenas a milésima parte de tudo o que foi descoberto do Brasil, qualitativamente nos concedem elementos bastante ilustrativos sobre a política externa americana e sobre seu monitoramento e avaliação da política externa brasileira naquele breve e recente período. A escolha e a qualidade desses telegramas se justificam por dois motivos principais. Em primeiro lugar porque as três mensagens às quais aqui se faz referência foram emitidas no ano de 2009, ou seja, quando o arco do governo Lula já chegava ao fim. E em segundo lugar, pelo próprio objetivo dessas correspondências, reveladas desde o título: Understanding Brazil’s Foreign Ministry. Numa tradução livre, “entendendo o Itamaraty”. Trata-se, portanto, de um balanço feito pela embaixada americana da política externa brasileira durante os dois mandatos do governo petista, assinado pelo embaixador Clifford M. Sobel, e dividido em três diferentes temas e partes (ideological forces, institutional strains e inter-agency competition)[3], sobre as quais falaremos um pouco mais adiante.

 

Colocar a lupa num documento de balanço da embaixada dos EUA sobre a política externa brasileira, classificado por eles mesmos na categoria de confidentials[4], pode nos ajudar a refletir historicamente sob dois pontos de vista complementares. Primeiro: investigar a relação dos Estados Unidos com a América Latina a partir de uma perspectiva de longa duração histórica, tendo em vista a importância do Brasil na parte sul do continente, à qual os norte-americanos foram gradativamente dedicando mais atenção ao longo de dois séculos. E por último, conferir os parâmetros e critérios através dos quais os EUA enxergaram o comportamento do governo brasileiro diante de assuntos internacionais e da configuração política mundial daquele período.

 

A longa trajetória do império no continente 

 

Analisar a longitude histórica da política externa dos EUA em relação ao restante do continente americano requer certa contextualização dos dois últimos séculos, ainda que de forma breve. Certamente o primeiro marco notável da política externa estadunidense destinada à América é a assim chamada Doutrina Monroe, estabelecida quando da conhecida mensagem do presidente James Monroe no ano de 1823, lida ao Congresso, mas destinada às nações europeias e ao complexo contexto de disputas territoriais ao sul e ao oeste dos EUA, quando França, Espanha e Inglaterra ainda pretendiam manter ou constituir domínios do outro lado do Atlântico.

 

A ideia de uma “América aos americanos”, apesar de não ter sido exatamente assim dita por Monroe[5], foi provocada inicialmente pela própria Inglaterra, no intento de afastar os interesses franceses e espanhóis do novo continente. Ao invés de combinar uma mensagem comum, como pretendia o secretário inglês para assuntos estrangeiros George Canning[6], o presidente americano decidiu fazer uma declaração unilateral e anunciar ao mundo o entusiasmo e a ambição dos EUA em lidar diretamente, sem intromissões de fora, com as questões comerciais, políticas e diplomáticas que diziam respeito ao conjunto dos países americanos que passavam ali por processos consecutivos de independência. Seguramente, a região mais ao sul da América não tinha ainda naquele momento a mesma dedicação dos americanos como tinha a região caribenha, em sua maior parte dominada pela Espanha. Mas isso seria apenas questão de tempo à política de expansionismo norte-americana e seu pretencioso desejo e “destino manifesto” de alcançar o mundo, um importante atributo existente desde o nascedouro da nação. 

 

Nas palavras dos historiadores Fernandes e Morais, “posturas e concepções presentes nos movimentos religiosos, como a ideia de que existem povos escolhidos e abençoados por Deus, passariam a povoar o imaginário coletivo da nação que se acreditava eleita para um destino glorioso”[7]. Em outro trecho, os autores completam:

 

O medo dos EUA era, sobretudo, que as grandes potências europeias pudessem se unir para subjugar as colônias espanholas rebeladas e acabassem ameaçando a autonomia de seu próprio território ou seus interesses comerciais em todos esses mercados na América. Nesse sentido, a Doutrina Monroe pode ser entendida como um dos primeiros passos da política externa norte-americana no século XIX: em nome da paz e da liberdade, a presença dos Estados Unidos se fortaleceu em todo o Novo Mundo.[8]

 

A partir daí tem início um extenso e progressivo processo histórico de consolidação dos EUA como potência política e econômica na região e no mundo. E para este processo, o continente americano cumpriu papel preponderante como área preferencial de influência, interesse e dominação do país norte-americano. Essa história tem alguns capítulos importantes como as compras de territórios espanhóis e franceses e o avanço ao oeste ainda na primeira metade do século XIX, que constituiu a segunda saída oceânica dos EUA, aspecto central para sua performance geopolítica desde então; a guerra contra o México entre 1846 e 1848, e a decorrente anexação pelos americanos de pedaços substanciais de seu território; e ainda a guerra hispano-americana em 1898, sobretudo com os conflitos em Cuba e Porto Rico, que estabeleceu definitivamente a autoridade norte-americana na região caribenha, resultando inclusive na assunção pelos EUA do istmo do Panamá, a contragosto da Colômbia.

 

A virada ao século XX, o “século americano”, como define Sean Purdy[9], seria marcada por uma política de intervenção explícita dos EUA em países da América Central. O intervencionismo já fazia parte do repertório ideológico e nacionalista americano desde o século anterior, representado pelas elites bancárias e corporativas da Costa Leste, e muitas vezes em contraste com o isolacionismo das elites agricultoras do sul e centro-oeste.[10] Mas Theodore Roosevelt elevou o ímpeto americano em atravessar soberanias a outro patamar após 1904, repetindo o tradicional ritual de presidentes americanos que usam suas mensagens anuais ao Congresso para informar o mundo sobre seus interesses. Foi sob o estandarte do Corolário Roosevelt que governos sucessivos dos Estados Unidos operaram e intervieram militarmente no Caribe, como quando em Cuba (em 1906 e 1910), na Nicarágua (entre 1909 e 1933), no Haiti (entre 1015 e 1934) e na República Dominicana (entre 1916 e 1924), fazendo crescer o tamanho e a densidade da sombra estadunidense na América.

 

É verdade que esta política intervencionista teve recuos em governos posteriores, como com Herbert Roover (1929-1933) e o segundo Roosevelt (1933-1945), muito também em virtude da crise de 1929, quando a “política de boa vizinhança” deu o tom da política externa americana. Mas a não intervenção militar foi acompanhada de um conjunto de iniciativas bilaterais e acordos comerciais a fim de fortalecer e tornar mais estreitas as relações econômicas dos EUA com os países latino-americanos. Onde houve resistência, claro, as tropas americanas não faltaram, como no caso do enfrentamento à revolução sandinista na Nicarágua.

 

Para o historiador Perry Anderson, esta é a “longa pré-história” de constituição do Império americano. Não se trata mais de mero expansionismo, como aconteceu durante grande parte do século XIX. Após a Segunda Guerra, a economia mundial, em que pese haver uma disputa bipolar entre os EUA e o mundo comunista, passava a ser em grande medida guiada pelo dólar, sob intermediação dos recém-criados Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. A ONU e outros organismos políticos, dentre eles a Organização dos Estados Americanos, também surgidos deste contexto, eram multilaterais na forma, mas o conteúdo político de suas decisões tinha uma direção fundamental: a vontade americana. E não por acaso, foi também neste momento que os EUA fundaram seus principais órgãos de inteligência e informação que passaram a operar dentro e fora do país, como a CIA, a NSA e a USIA.

 

Aqui o intervencionismo ganharia ares imperiais definitivos. Segundo Anderson, entre o início e o fim da Guerra Fria (1948-1990), os EUA foram responsáveis pela derrubada de 24 governos na América Latina, um terço deles com o envolvimento direto de suas forças militares e órgãos de inteligência; e outros dois terços com, no mínimo, apoio político de seu governo. Para o autor, a dissolução da URSS e do bloco comunista, agora em estilhaços, fizeram dos EUA a primeira superpotência da história da humanidade[11]. Nos anos 90, sob efeito da Doutrina Reagan e do Consenso de Washington, deu-se partida à ofensiva neoliberal que desbravou as barreiras dos mercados nacionais para a entrada do capital americano, sobretudo nos países latinos. A nova ordem mundial estabelecida tinha pela primeira vez um único árbitro. E mais de setecentas bases militares espalhadas pelo planeta, cerca de 10% delas na América Latina.

 

Após 11 de setembro de 2001, a política externa imperial dos EUA adotaria o “combate ao terrorismo” como fantasia primordial, e esta política se manifestaria também nas Américas como um todo. Entre os mesmos telegramas vazados no Wikileaks é possível encontrar uma quantidade significativa de mensagens sobre o “contraterrorismo” no Brasil. Mas o plano principal da política americana na América Latina era outro. Ainda seguindo os desígnios seculares da mensagem de James Monroe, os governos Clinton e Georg W. Bush se dedicaram às negociações e tentativas de implantação da Área de Livre Comércio das Américas que, por resistência de alguns dos principais governos latinos, sofreria em 2005 uma interrupção imprevista pelos americanos. E como veremos nos papers analisados abaixo, esta não seria a única cena fora do script da política externa americana naquele período.

 

Os telegramas do embaixador

 

A política externa do governo Lula não se movimentou em nenhum momento em uma direção de ruptura de relações com os EUA. Ao contrário disso, o governo brasileiro procurou não apenas manter a fluidez diplomática entre os dois países, como trabalhou para fortalecer as relações políticas e comerciais com os americanos. Pelo menos é isso o que diz o embaixador Sobel M. Clifford[12] nas quinze páginas de relatório emitidas em três partes diferentes contendo um balanço dos dois mandatos de Lula na política internacional. Em pelo menos quatro momentos do memorando, o presidente brasileiro é dito por Sobel como um estadista “relativamente pragmático”, ou um “esquerdista pragmático”[13], mesmo na política externa. Na visão do embaixador, desde 2003, quando Lula assumiu, o Brasil deu sinais evidentes de que o objetivo central em sua atuação na política mundial era “expandir relações a um grupo maior de países, inclusive os Estados Unidos”[14].  

 

Por outro lado, o diplomata faz uma crítica à retórica do presidente brasileiro que na maioria das oportunidades, apesar do pragmatismo na relação com os americanos, mantinha sempre ativo o discurso de “nós contra eles” numa referência às relações “norte-sul”. Mas para Sobel, Lula chegou à presidência sem nenhuma experiência nas relações internacionais, logo não poderia ser ele o principal arquiteto da política externa de seu governo. Na visão do diplomata, o Itamaraty era guiado por “forças ideológicas” que faziam parte da trajetória política da esquerda brasileira e que agora acompanhavam Lula na condução de sua política internacional. Essas forças ideológicas estavam representadas fundamentalmente por três importantes atores do governo brasileiro: o ministro de relações internacionais Celso Amorim, o secretário geral do Itamaraty Samuel Pinheiro Guimarães e o assessor especial da presidência da República para assuntos internacionais Marco Aurélio Garcia. Os três, respectivamente, classificados no telegrama como “esquerdista nacionalista”, “esquerdista antiamericano” e “acadêmico esquerdista”.[15]

 

Para o embaixador, este combo de políticos “esquerdistas” à frente da política externa do Brasil fez com que um dos países mais importantes da América Latina adotasse um rumo diferente daquele esperado pelos Estados Unidos. As negociações em torno da ALCA não evoluíram com o Brasil. No lugar do acordo comercial continental, o governo Lula decidiu apostar no fortalecimento do MERCOSUL, ampliando seu número de membros. Além disso, somou esforços na construção de duas outras comunidades: uma de países latinos e caribenhos, a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA); e outra de países sul-americanos, a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL). Esta última tinha um banco e um Conselho de Defesa próprios. Além delas, o Brasil decidiu extrapolar as relações no continente e dedicar energia à construção de outra comunidade política, desta vez junto à Rússia, China, Índia e África Sul (os BRICS). Ou seja: duas potências mundiais, uma potência nuclear e o país mais influente da África. Nada disso significou rompimento com os norte-americanos, mas o incômodo de sua embaixada estava no fato de que, nas palavras de Sobel, o governo brasileiro tinha nítida “resistência às iniciativas regionais que incluíssem os EUA”[16]. As correspondências do embaixador afirmam que, na visão do Itamaraty, “se os EUA estão na mesa, o Brasil não lidera”[17]. E esta seria a explicação cerne para a estratégia Sul-Sul adotada pelo Brasil naqueles anos.

 

O aspecto mais inconveniente aos EUA, no entanto, não consistia na estratégia brasileira de apostar nas relações Sul-Sul. É notória a insatisfação política nos telegramas de Sobel relacionada à tentativa renitente do governo brasileiro em assumir protagonismo nas grandes questões mundiais. O embaixador cita o envolvimento do Brasil nas negociações da OMC e nas discussões sobre a crise financeira global de 2008. Mas são, sobretudo, dois outros temas que desagradam o mensageiro americano. Primeiro, o pleito do Brasil por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, algo que nunca esteve no horizonte da política externa brasileira, e que por si só já significava um patamar a mais de incidência do Brasil na configuração política mundial. O segundo, e mais preocupante, era a relação com o Irã e o interesse de Lula “em jogar no processo de paz do Oriente Médio”[18]. Este conjunto de iniciativas, somadas a outros assuntos políticos-militares de interesse dos EUA que, ainda segundo Sobel, eram “regularmente paralisados e bloqueados pelo Itamaraty”, fez com que a política externa americana estivesse sempre em estado de alerta com o Brasil. E a embaixada dos EUA em desagrado permanente com o “poder do Itamaraty” e dos três “esquerdistas” nas decisões da política externa brasileira.

 

Assim, o embaixador começa a apresentar nos papers sugestões de atuação da própria embaixada americana no sentido de superar os obstáculos do Itamaraty aos interesses dos EUA. Em determinando momento, Sobel afirma taxativamente: “não é do nosso interesse que o Itamaraty seja o único filtro para trabalhar com o governo brasileiro”[19]. Para ele, é preciso atuar em cooperação com outras agências e organismos do governo, aproveitando inclusive as dificuldades institucionais do Ministério de Relações Exteriores em fazer a engrenagem de sua política funcionar. O embaixador menciona as novas unidades diplomáticas criadas pelo governo Lula ao redor do mundo, e disserta sobre as dificuldades do governo em conseguir destinar recursos financeiros e humanos para gerir sua política externa, segundo ele com um “corpo esquelético”[20], e aponta isso como uma fragilidade importante do governo. Sobel fala ainda sobre a necessidade de a diplomacia americana criar formas de “atrair o Congresso, o Judiciário e atores não-governamentais, o setor privado em particular”. Segundo o diplomata, o setor privado no Brasil seria o segmento onde se encontraria as maiores críticas à política internacional de Lula. Tanto no que diz respeito à postura “antiamericana”, quanto sobre sua atitude “branda” demais na relação com os países vizinhos.[21]

 

Ainda refletindo sobre a ação da embaixada no Brasil, Sobel sugere que os EUA precisam criar novos canais de diálogo direto com o conjunto de diplomatas brasileiros, de forma independente do Itamaraty. Indica a possibilidade de realizar programas regulares de formação para criar “contato adicional” entre a embaixada e os diplomatas “mais jovens”, segundo ele mais propensos a “entender a política externa dos EUA”, Para o embaixador, há inclusive um reconhecimento entre os diplomatas brasileiros sobre como o Itamaraty “não tem feito um bom trabalho no treinamento de diplomatas ‘americanistas’”. Por fim, embaixador faz questão de lembrar que é possível ainda haver melhora neste cenário de dificuldades apontado em seu balanço, a depender do que ocorresse na troca de governos no Brasil no ano seguinte. Ele se referia à eleição de 2010.[22]

 

Um telegrama a mais

 

Ler as correspondências vazadas da embaixada americana é como tentar observar a política externa dos EUA pelo buraco da fechadura. Não se vê tudo, é claro. Mas é certo também que uma parte daquilo que se vê, não pretendia ser vista. E nas mensagens do embaixador há algo além da “ideologização” que lhe incomoda na política externa do Brasil

 

O governo Lula apareceu em cena num contexto mundial quando apenas uma potência internacional despontava isolada em todos os aspectos da disputa geopolítica: militares, econômicos, tecnológicos e políticos. E mesmo sem entrar em rota de colisão direta com os EUA, o Brasil encontrou meios de constituir uma esfera de atuação na política internacional dissonante das expectativas norte-americanas. Há uma inconformidade aguda nos telegramas do embaixador americano sobre a falta de sintonia da política externa de seu país com os rumos assumidos pelo governo Lula no certame mundial. E apesar do retruco do embaixador atribuir os desacertos do Brasil com os EUA à formação “esquerdista” e “antiamericana” dos quadros dirigentes do Itamaraty (e esta premissa pode mesmo ter algum sentido), o que mais parece incomodar a embaixada chefiada por Sobel não é exatamente a posição do governo brasileiro no espectro ideológico mundial.

 

Em outro telegrama datado de 2008, não analisado detalhadamente neste artigo e intitulado Constraining iranian influence in Brazil (ou “limitando a influência iraniana no Brasil”), o mesmo Sobel critica veementemente as movimentações de Lula e do Itamaraty no sentido de intervir nos conflitos políticos do Oriente Médio, assunto bastante sensível aos EUA. O embaixador reprova, por exemplo, as muitas declarações feitas por Lula e seu ministro Celso Amorim fazendo reparos contra aliados importantes dos EUA na região, como o Israel, e saindo em defesa de seus adversários. O diplomata critica as iniciativas de diálogos entre o Brasil com o Irã e censura a visita de Lula ao então presidente Mahmoud Ahmadinejah (2005-2013), desafeto declarado do governo americano.

 

Este foi o processo político em que, contra a orientação dos EUA, o Brasil chegou a se abster na votação do Conselho de Segurança da ONU que decidiu impor sanções ao programa nuclear iraniano. O governo brasileiro divergiu ali publicamente com o governo americano. Para o embaixador, o esforço do Brasil em se distanciar dos EUA em questões centrais tão importantes para os norte-americanos estava gerando “contradições em princípios de longa data da política externa brasileira” [grifo meu].[23] Como se sabe, a ingerência do Brasil nas negociações sobre o programa nuclear do Irã nunca teve a ver com uma posição “esquerdista” de Lula ou de seu governo. O governo Ahmadinejah do Irã estava longe de ser um governo progressista ou de esquerda. A ideologia aqui, portanto, não explica o aborrecimento do embaixador.

Conclusão

 

Sabe-se que o longo processo de formação do império americano no mundo, e de seus empreendimentos imperiais na América Latina, não foi uniforme ou linear. Os EUA encontraram relutâncias e divergências pelo caminho. Algumas até revolucionárias; outras apenas circunstanciais. E nem todas de esquerda, é bom lembrar. Durante a ditadura militar no Brasil, por exemplo, houve um intervalo importante de desencontros e desacordos entre os interesses americanos e o governo brasileiro.

 

Nesse sentido, percebe-se notadamente o desconforto dos EUA com as opções feitas pela política externa brasileira durante os anos de 2003-2010. Não exatamente por suas ideologias, ou pelo menos não apenas por causa delas. Há uma confusão expressa na opinião do chefe da embaixada americana no Brasil. Sua crítica à agenda ideológica de Lula é bastante clara e repetitiva. Mas os principais exemplos ilustrados pelo embaixador ao elaborar seu balanço negativo sobre a política externa brasileira não dizem respeito a uma política essencialmente “esquerdista”. O embaixador sugere ao Brasil que, ao invés de mirar sua estratégia geopolítica apenas no hemisfério sul, deveria estar mais “orientado ao mundo”[24], numa referência às relações brasileiras com os países da América Latina. Mas ele mesmo reconhece mais de uma vez nos papers o empenho e a dedicação do Brasil na tentativa de se estabelecer no jogo político mundial como um protagonista, conduzindo sua política externa não simplesmente aos países do sul, mas ao mundo de maneira geral. Como fez o Brasil, aliás, nas relações com a Rússia, com a China, com o Oriente Médio, com a União Europeia e com os próprios Estados Unidos. A não ser que Sobel compreenda que estar “orientado ao mundo” significa estar orientado pela visão americana sobre o mundo, o que é até possível, o verdadeiro motivo de seu desconforto não está apenas na ideologia da agenda externa brasileira. Está em sua relativa autonomia.

 

Ao nos apresentar os principais teóricos da política externa americana entre os séculos XIX e XX, Perry Anderson faz referência à obra do geógrafo Nicholas Spykman. Para este autor, toda política externa de cada Estado se move com o objetivo da preservação e do aumento de seu poder. De modo que, para tanto, é preciso agir necessariamente para também conter o poder de outros Estados[25]. Esta premissa de Spykman parece ser bastante adequada para sugerir explicações em torno do embaraço americano com o desempenho do governo brasileiro na política internacional durante o governo Lula.

 

De Lincoln a Obama, dentre os principais legados históricos da política externa americana estava sua convicção de uma nação privilegiada, sagrada e vocacionada a ensinar ao mundo sobre democracia e liberdade. A despeito de ser uma “superpotência” a partir dos anos 90, os EUA nunca conviveram muito bem com políticas externas de países desalinhados e concorrentes à sua. Ainda menos em seu próprio continente, como mostra a longa história referida acima. E pior quando se trata de um país regionalmente tão importante e influente como o próprio Sobel reconhece ser o Brasil. O ato de conter o poder de outro Estado pode se realizar de várias formas. Guerras, coerção, acordos militares, medidas e sanções econômicas, articulações e disputas políticas. Como dito, o governo Lula não colocou em execução uma política externa de ruptura com os norte-americanos. Mas a tentativa de se consolidar como um agente político no mundo fez o governo brasileiro em diversos momentos decidir por um caminho particular de ação, não estando obrigatoriamente vinculado à agenda internacional dos EUA e constituindo relação direta e não intermediada com os demais atores internacionais. O Brasil decidiu, portanto, atuar com relativa autonomia em relação aos EUA.

 

Se para o Brasil, por um lado, ter autonomia na política externa poderia significar aumento de sua força política (ou “expansão” de suas relações, como diz o embaixador); para os EUA isso representava fatalmente uma forma contenção de poder. Afinal de contas, os americanos passaram a não ter como aliado automático, ou subjugado, um país fundamental no continente americano. Pensando assim, não é difícil compreender os motivos que levaram o embaixador estadunidense a produzir um balanço tão crítico sobre o Brasil. Assim como não é difícil também entender porque os telegramas revelam tanta preocupação da embaixada em encontrar formas e possibilidades políticas e institucionais de incidir para uma reorientação da política externa brasileira, de preferência alterando-as e combinando-as aos interesses da política externa americana.

Com certeza, a dimensão ideológica e a posição relativamente à esquerda do governo Lula no quadro político mundial daquele período explica parte da sua política externa, sobretudo na relação com os governos de esquerda e progressistas da América Latina. Mas não é a apenas ideologia que explica a decisão do governo brasileiro por interferir nos grandes conflitos mundiais e, em determinados momentos, polarizar com os EUA sobre assuntos de alta relevância ao governo do Império. O governo Lula decidiu ampliar sem raio de ação política. E para o EUA, isso significou, ainda que momentaneamente, diminuição de sua influência política na América. Logo, para não permitir recuos maiores em seu próprio poder político, tonava-se conter de alguma forma a política externa brasileira, ou o poder de ação e articulação do Brasil, tanto na América quanto no mundo.

 

Segundo Sobel, o Brasil tinha certa predileção política por constituir e fortalecer blocos políticos em que os EUA não participam, para que ele mesmo pudesse ter algum papel de liderança política nos processos de negociação. No caso da América Latina, a dimensão ideológica dessa estratégia foi mais evidente, até pelo perfil dos governos latinos naquele período. Mas não foi a ideologia que levou o Brasil a apostar em articulações como os governos, por exemplo, do Irã, da Rússia, da Índia e ou os diversos governos africanos. O que movia a política externa brasileira era a pretensão de jogar no mundo, não apenas numa região. E este sim pareceu o principal motivo de preocupação da política externa americana. Ou pelo menos de sua embaixada no Brasil.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências bibliográficas

 

 

ANDERSON, Perry. “Império”. In: A política externa norte-americana e seus teóricos. São Paulo: Boitempo, 2015.

 

FERNANDES, Luiz Estevam; MORAIS, Marcos Vinícius. “Os Estados Unidos no século XIX”. In: KARNAL, Leandro [et al.]. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2016.

 

PURDY, Sean. O século americano. In: KARNAL, Leandro [et al.]. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2016

 

SOBEL, Clifford . Understanding Brazil’s Foreign Ministry, part 1: ideological forces. Disponível em < https://search.wikileaks.org/plusd/cables/09BRASILIA177_a.html> . Acessado em 28 de novembro de 2021.

 

________. Understanding Brazil’s Foreign Ministry, part 2: institutional strains. Disponível em . Acessado em 28 de novembro de 2021.

 

________. Understanding Brazil’s Foreign Ministry, part 3: inter-agency competition. Disponível em . Acessado em 28 de novembro de 2021.

 

________. Constraining iranian influence in Brazil. Disponível em . Acessado em 28 de novembro de 2021.

 

[1] Gabriel Oliveira. Artigo entregue como parte das exigências da disciplina História da política externa americana, profa. Laura de Oliveira, departamento de História, UFBA. Semestre 2021.2.

[2] ENTENDA o caso de Bradley Manning, condenado por vazar segredos. G1, 2013. Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/08/entenda-o-caso-de-bradley-manning-condenado-por-vazar-segredos.html>. Acesso em 28 de novembro de 2021.         

[3] Em tradução livre, respectivamente “forças ideológicas”, “tensões institucionais” e “competição entre agências/órgãos”.

[4] A política de inteligência nos EUA utiliza quatro categorias para classificar documentos sigilosos: confidentials, secret e top secret.

[5] A transcrição do discurso original está disponível em . Acessado em 26 de novembro de 2021.

[6] George Canning é o mesmo secretário que à época intermediou as negociações em torno do processo de independência do Brasil em 1822.

[7] FERNANDES e MORAIS, ver p. 125.

[8] IDEM, ver p. 106.

[9] PURDY, ver p.173.

[10] ANDERSON, ver p. 29.

[11] ANDERSON, ver p. 13 e p. 94.

[12] Clifford Sobel foi embaixador dos EUA no Brasil entre junho de 2006 e agosto de 2009.

[13] Traduções de “relatively pragmatic” e “leftist pragmatic”. Ver SOBEL, Understanding... part 01.

[14] Tradução livre de “Expand Brazil’s outreach to a growing group of countries, including the United States”. Ver SOBEL, part 01.

[15] Traduções para “nationalist esquerdista”, “anti-american leftist” e “academic leftist”. IDEM.

[16] Tradução livre de “Itamaraty resists almost without exception regional iniciatives involving the United States”. Ver SOBEL, part 1.

[17] Tradução livre de “When the United States is at the tablem, in Itamaraty’s view, Brazil cannot lead”. IDEM.

[18] Tradução livre de “interest in playing in the Middle East Peace process”. IDEM. 

[19] Tradução livre de “It is not in our interest for Itamaraty to be the sole filter for working with the GOB”. Ver SOBEL, part 03.

[20] Sobre o Itamaraty, o embaixador afirma que “domestic staffing remains skeletal”. Ver SOBEL,part 02.

[21] Ver SOBEL, part 03.

[22] Ver SOBEL, part 3.

[23] Tradução livre de “contradicting long-held tenets of Brazil’s foreign policy”. Ver SOBEL. Constraining iranian influence in Brazil, 2008.

[24] Ver SOBEL, part 01.

[25] ANDERSON, ver p. 21.