CIÊNCIA, FUTURO E OS TEMORES REAIS E FICCIONAIS QUE ATRAVESSAM SÉCULOS

 

Kaique Vieira Nunes*[1]

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Resumo: Este artigo tem por objetivo compreender e analisar as variações futurísticas ao longo do século XX até os dias de hoje, colocando em perspectiva os imaginários construídos a esse respeito em diferentes épocas na sociedade ocidental, partindo da idéia de que o “espaço de experiências e horizonte de expectativas” (Koselleck, 2006 p. 309) se relacionam de forma construtiva na formação de tais possibilidades imaginadas de futuro. Coloca-se também em evidência, o advento do avanço científico e tecnológico na construção de imaginários no que diz respeito aos tempos vindouros, ao passo que também procuro nas obras de ficção, elementos ilustrativos à essa temática e problematizando a questão da Ciência nas representações de futuro e os valores que se relacionam em torno do avanço da mesma. Entender  a construção do imaginário a respeito do que se entende por futuro na sociedade ocidental até o século XXI. Diferenciar os variáveis futuros das ficções analisadas e colocar em perspectiva com o imaginário social de dada época. Apontar os temores superados ou afirmados ao longo dos tempos. Analisar a relação da Ciência nas expectativas de futuro do século XX ao século XXI apontando os avanços científicos que fizeram parte do espaço de experiência no decorrer desses séculos.

Palavras-chave: Futuro, Ciência, Ficção, História.

 

1. Dois extremos futurísticos

Na produção de Pedleton Ward, Adventure Time (2010) retrata um futuro pós-apocalíptico onde a Terra volta a um estado de natureza após uma guerra atômica devastar o mundo como conhecemos. Restando aparentemente apenas um ser humano no planeta, este interage com outras formas de vida (também racionais) que resultaram desta catástrofe, onde se desenvolve uma organização social baseada num sistema de Reinos, o que se infere numa “regressão” temporal histórica causada por tal guerra. Entretanto, aparecem em algumas situações, certas formas de tecnologia que restou após a Guerra dos Cogumelos[2].

Como dito acima, a representação ficcional de Adventure Time a respeito de uma possibilidade de futuro, se assemelha e se contradiz quando colocamos em comparação com outras produções que se propõem retratar um determinado futuro na ficção. Tendo em vista que essas representações de futuro estão intimamente ligadas à Ciência e os avanços tecnológicos, proponho então colocar em perspectiva outra produção que traz esse tema: The Jetsons (1962).

Transmitida pela primeira vez em 1962, produzida pela Hanna-Barbera, a série mostra um futuro que era muito difundido no imaginário da sociedade da época, a chamada Era espacial. A historiografia nos mostra como um dos fatores que moldaram o pensamento daquela sociedade, a corrida espacial como advento da Guerra Fria, ou seja, uma “previsão” da vitória americana sobre os soviéticos na corrida tecnológica rumo ao espaço. Surge de tal distinção o interesse em abordar os futuros diversos e como se formaram as representações no imaginário ocidental até os dias atuais.

 

2. Da Idade Média ao século XX.

Diferentes representações do que se imaginava ser o futuro inevitável foram se construindo ao longo dos tempos no imaginário ocidental, algumas concepções foram superadas e outras afirmadas nesse processo de formação de identidade de um individuo, de um povo, de uma época com base no que se fazia expectar do futuro.

Em primeiro lugar, salta aos olhos que já no século XV e em parte já mesmo antes disso, o fim do mundo foi sendo mais e mais adiado. Nicolau de Cusa o prediz para o começo do século XVIII; Melanchthon calculava que a Última Era chegaria ao fim transcorridos 2 mil anos do nascimento de Cristo. A última grande profecia papal, de 1595, atribuída a São Malaquias, triplicava a lista até então tradicional de papas, de modo que o fim dos tempos, que deveria suceder à duração média dos pontificados então previstos, não aconteceria antes de 1992. (Koselleck, 2006 p. 28)

O pensamento europeu medieval a respeito do futuro era fortemente ligado a religião, e com isso, previsões escatológicas feitas por estudiosos ligados a Igreja deixavam no imaginário da sociedade da época suas marcas e seus paradigmas na construção de expectativas para os tempos que viriam. Esse imaginário muitas vezes místico vai se transformando ao longo dos séculos até se construir ou desconstruir o horizonte de expectativas que se observa nos dias de hoje.

Nota-se portanto, que essa construção de idéias em relação ao porvir é um processo histórico que se transforma, variando temporal e espacialmente nas sociedades. Aponto como exemplo dessa construção, a idéia de que na Idade Média as noções de futuro que se imaginava eram profundamente ligadas ao que se dizia como o Juízo Final bíblico: o fim dos tempos. Ao passo que também se tinha o pensamento científico em ascensão mesmo de forma ainda a ser aceita na sociedade do medievo.

3. A Ciência e o século XX.

Com o advento da Revolução Industrial e a chegada do século XX, os avanços tecnológicos e revoluções no campo das ciências se confirmaram na sociedade. Percebe-se então que as expectativas para com o futuro se transformaram novamente, pois o espaço de experiências também se modifica se pensarmos em relação ao que se construía no imaginário nos séculos passados.

A relação da Ciência no imaginário contemporâneo para construção de possibilidades de futuro vem se afirmando ao longo dos séculos, tanto com ficções cientificas quanto com as descobertas “reais” e aprimoramentos que seus avanços proporcionam. Essa mudança na realidade gerou um processo de temor aos avanços científicos – destaco aqui a robótica, e o conceito de “tecnofobia” que  Isaac Asimov (2007, p. 8) explica como sendo: “o medo de que as mudança tecnológicas causem danos ao meio-ambiente ou provoquem alterações prejudiciais à sociedade humana.”

Carl Sagan coloca que a ciência e a tecnologia são determinantes para a sobrevivência dos seres humanos. Quando ele aponta para uma possibilidade futura do aumento drástico da população que resultaria – caso não se tomasse as medidas necessárias – numa crise com proporções globais, afirma também que a ciência é responsável e capaz de solucionar os problemas sociais que a sociedade enfrenta ou virá a enfrentar no futuro, dependendo apenas das escolhas que serão feitas.

Se o mundo quiser evitar as conseqüências terríveis do crescimento da população global, com 10 ou 12 bilhões de pessoas no planeta no final do século XXI, temos de inventar meios seguros, porém mais eficientes, de cultivar alimentos com o auxílio de estoques de sementes, irrigação, fertilizadores, pesticidas, sistemas de transporte e refrigeração. Serão também necessários métodos amplamente acessíveis e aceitáveis de contracepção, passos significativos para a igualdade política das mulheres e melhoramentos nos padrões de vida das pessoas mais pobres. Como será possível fazer tudo isso sem a ciência e a tecnologia? (Carl Sagan, 2006 p. 18)

Apesar de todos os problemas sociais que temos no século XXI, de racismos étnicos e questões ambientais a disputas ideológicas e religiosas serem cotidianos na sociedade, acreditava Sagan que o saber científico – distribuído de forma igualitária, seria decisivo na construção de uma estrutura social mais compatível com a diversidade dos povos em todo o mundo.

4. Futuro e Ciência no século XXI.

Em seu último capítulo do livro Cosmos (1985), Sagan também nos chamava atenção para uma preocupação de sua época e que percorreu o mundo no século XX: a Guerra Nuclear. Ao passo que o autor teve em seu espaço de experiência a Segunda Guerra Mundial e a chamada Guerra Fria, que foram as demonstrações mais expressivas de tal meio de destruição e ameaça à sociedade, isso deu ao mesmo, um horizonte de expectativas baseado no que vivenciou, e escreveu o seguinte:

[...] Mas no fim do século vinte, dois megatons foi a energia liberada na explosão de uma única bomba termonuclear mais ou menos monótona: uma bomba com a força destrutiva da Segunda Guerra Mundial. E existem dezenas de milhares de armas nucleares. Pela nona década do século vinte, os mísseis estratégicos e os bombardeiros da União Soviética e dos Estados Unidos estarão dirigindo suas ogivas para mais de 15.000 alvos designados. Nenhum lugar do planeta será seguro. A energia contida nestas armas, gênios da morte aguardando pacientemente o acender das lâmpadas, é bem mais do que 10.000 megatons, mas com a destruição concentrada eficientemente, não por seis anos, mas sim por algumas horas, um arrasa-quarteirão para cada família do planeta, uma Segunda Guerra Mundial a cada segundo de uma tarde preguiçosa. (Carl Sagan, 1985 p. 320)

É certo que o número de armas nucleares aumentou em quantidade e potência com o decorrer dos anos e mesmo com tratados para redução de tal tipo de armamento o temor atômico ainda é ativo no mundo todo. Uma relação de 2012 mostra a lista de países que declararam suas armas como mostra a figura 1.

Figura 1. Países que possuem armas nucleares.

Trato então, a respeito do espaço de experiências e horizonte de expectativas do século XXI com base exatamente na sensibilidade, na vivencia, e o acúmulo de conhecimento histórico e cientifico – informações que nos chega através da história até o presente. Desta forma, os futuros passíveis de serem integrados no imaginário, dependem diretamente do que os indivíduos de certa época em certa sociedade experimentaram tanto no âmbito social quanto nos avanços tecnológicos, e também de como são transmitidos às gerações futuras. Ou seja, cada tempo tem uma perspectiva de futuro engendrada ao pensamento, e esse pensamento varia no tempo e na sociedade. Assim nos explica Koselleck essa relação entre experiência e expectativa:

Por isso não se pode conceber uma relação estática entre espaço de experiência e horizonte de expectativa. Eles constituem uma diferença temporal no hoje, na medida em que entrelaçam passado e futuro de maneira desigual. Consciente ou não, a conexão que criam, modificando-se, possui uma estrutura de prognóstico (nota de roda pé pag 31). Talvez tenhamos ressaltado uma característica do tempo histórico que pode indicar sua capacidade de se modificar. (Koselleck, 2006 p. 313-314)

Proponho que temos no nosso horizonte de expectativas duas possibilidades gerais para o futuro em relação aos avanços da ciência, que categorizo aqui com os termos: Progresso Positivo e Progresso Negativo. A primeira expressão se refere ao desenvolvimento rumo a uma sociedade cada vez melhor em todos os âmbitos (social, cultural, político, econômico). E a segunda indica que esse “avanço” será o meio para a ruína da espécie humana como sociedade. Nas ficções que trago como exemplo fica claro a disposição de tais modos de percepção de futuro e como se diferem.

5. Das Ficções           

Atualmente, temos várias obras de ficção em que se pretende mostrar uma representação de futuro baseados na ciência e tecnologia como causadores de situações apocalípticas. Chamo atenção para o filme Transcendence (2014) e do mesmo ano de lançamento, a animação da Disney Big Hero 6 que trazem a questão do progresso tecnológico e o que pode ser feito com tais tecnologias, apontando também as escolhas feitas pelo homem moderno que as criaram e dominam.

Em ambos os casos são tratados de temas como Inteligência Artificial, robótica avançada e a chamada “nanotecnologia” que tanto aparece nas ficções cientificas. Os dois filmes apresentam também o fato de o criador de tais tecnologias almejarem sempre o bem comum à humanidade, anseiam cessar os problemas sofridos na sociedade e com isso “fazer do mundo um lugar melhor” embora nem sempre aconteça como desejado.

Entretanto, Trancendence  apresenta em sua trama um grupo de extremistas que se opõem ao avanço tecnológico proposto pelo cientista inventor, com a idéia de que tais avanços seriam catastróficos. Lembro então nesse caso, que a representação de progresso negativo aparece simultâneo ao de progresso positivo nos horizontes de expectativas, e ambos em choque afim de se decidir qual futuro terá êxito. Assim, se desdobra um antagonismo entre os que querem mudar o mundo a partir da ciência, e os que acreditam que esta já foi longe de mais.

6. Temor que atravessa o século.

A grande inferência que se faz a respeito da ciência, é de como esta é utilizada. A ciência em si não é má, mas pode ser – e é aplicada a projetos e interesses que se mostram negativos ao bem comum da sociedade. Lembro então, ainda segundo Asimov (2007), que “as vantagens conquistadas são manifestamente superiores aos riscos, e o progresso tecnológico quase nunca é abandonado espontaneamente, por maiores que sejam as desvantagens que possa acarretar.” O pensamento de que o avanço científico representa somente o “positivo” também é errôneo, pois quem decide o propósito desses avanços? O governo? Os próprios cientistas? Empresas? São muitos os interesses nesse campo de descobertas e criações.

Mas o que faz com que pensemos em guerra atômica nos dias de hoje? Exatamente a memória histórica do passado que influi diretamente nessa construção de pensamento no presente. Sendo assim, observa-se que tal noção de uso das invenções para algo negativo nos é inerente e vem percorrendo os tempos, acumulando e transformando as informações e conhecimentos que fazem parte do espaço de experiências.

Esse risco se evidenciou desde a primeira manifestação tecnológica. A descoberta do fogo produziu fumaça e a possibilidade de incêndio. A da agricultura trouxe prejuízos ao solo, provocando o desmatamento, a salinação e mudanças progressivas e muitas vezes indesejáveis no equilíbrio ecológico. Quase toda invenção logo encontra aplicação no emprego da violência entre os seres humanos, tornando a guerra cada vez mais fácil de ser declarada, mais feroz, medonha e prolongada. (Asimov, 2007 p. 8)

Por fim, percebe-se que o temor em relação ao que virá, ao que é desconhecido, se fez presente em toda a história. Seria possível, levando em conta nosso espaço de experiências atual, expectar um futuro somente positivo? Sem nenhum receio seja de descobertas científicas, de dogmas religiosos ou questões sociais? É certo que esses temores acompanharão a humanidade até onde for findada sua existência, o que cabe a nós é usar tais conhecimentos para que esses medos do vindouro não se realizem.

Não há ainda sinais óbvios de inteligência extraterrestre, e isto nos faz ter curiosidade em saber se as civilizações como a nossa sempre correm de modo implacável e imprudente para a autodestruição. (Carl Sagan, 1985 p. 318)

Referências

Adventure Time. Dir. Larry Leichliter. Prod. Pedleton Ward e Kelly Crews. Estados Unidos. Cartoon Network, 2010. 1080i (16:9 HDTV).

                   

ASIMOV, Isaac. Histórias de Robôs Volume 1.Trad. Milton Persson. Rio de janeiro: L&PM POCKET, 2007.

Big Hero 6. Dir. de Don Hall e Chris Williams. Roy Conli. Estados Unidos. Walt Disney Animation Studios, 2014. 102 min. Film.

Figura 1. Países que possuem armas nucleares 2012 Disponível em: <http://colunas.revistaepoca.globo.com/ofiltro/2012/05/24/quais-sao-os-paises-que-tem-armas-nucleares/> Acesso em: 22 Mar. 2015.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Trad. Wilma Patrícia Maas; Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006.

SAGAN, Carl. Cosmos. Trad. Francisco Alves. São Paulo: Francisco Alves, 1985.

SAGAN, Carl. Cosmos - Quem Pode Salvar A Terra? - Episódio 13 - (Dublado em Português) Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xh0RHQzjZKU> Acesso em: 20 Mar. 2015

SAGAN, Carl. O Mundo Assombrado Pelos Demônios:a ciência vista como uma vela no escuro. Trad. Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras 2006.

Transcendence. Dir. de Wally Pfister. Prod. de Broderick Johnson. Reino Unido; EUA; China Warner Bros. Pictures, 2014. 119 min. Film.



* Acadêmico do curso de História da Universidade Estadual de Goiás.

[2] É como é chamada a guerra atômica pelos personagens de Adventure Time.