O presente ensaio busca realizar uma breve discussão a respeito das políticas hídricas como estratégia de desenvolvimento para o Ceará. Procura-se saber quais as formas de relação entre Estado e sociedade que estão postas, e quais estratégias foram adotadas em seu planejamento para atender interesses diversos e conflitantes, entre diferentes grupos sociais.

Percebe-se que de acordo com os mecanismos institucionais e técnicos utilizados pelo Estado por meio do DNOCS, com a construção dos primeiros açudes, como o Cedro, o Orós, o Banabuiú, passando pela intervenção da SUDENE, com a criação de projetos de irrigação até chegar aos dias atuais, as políticas hídricas têm sido direcionadas para setores diversos, atendendo a demandas econômicas e sociais que se modificavam de acordo com o contexto histórico.

Inicialmente, as políticas eram de âmbito federal e direcionavam-se para as ações de enfrentamento das estiagens, não havendo intervenção por parte das unidades da federação no tocante a essas questões. Posteriormente, iniciam-se projetos de irrigação e aproveitamento da água dos açudes no meio rural, com entrada de financiamentos externos e internos.

Com as mudanças sociais e políticas que acompanham a história brasileira, criam-se meios de regulamentar e gerir as águas de domínio estadual, de forma que o Ceará possa intervir com sua legislação e com seu corpo institucional, utilizando-se do conhecimento técnico no processo de gestão.
Cada vez mais se trabalha a questão da água como um recurso estratégico capaz de dotar o Ceará dos fixos (SANTOS, 2006) os quais favoreceriam a expansão e o crescimento econômico do Estado, dando-lhe respaldo para atração de investimentos internos e externos, e tornando-o destaque em âmbito nacional por suas práticas de gestão hídricas consideradas pelos órgãos de financiamento internacional, como sendo coerentes e consolidadas (AMARAL FILHO, 2003).

Esse processo de dotação dos fixos no território se inicia na gestão de Virgílio Távora, com as bases lançadas para a industrialização do Estado, que era a forma de desenvolvimento concebida pelo governo federal, à época, a década de 1970 (GONDIM, 2002). As mudanças sociais e políticas ocorridas no Ceará, que vinham desde a criação do Banco do Nordeste e da SUDENE na década de 1950 e a inserção do planejamento e do conhecimento técnico na intervenção estatal ocorridas na gestão de Virgílio Távora (1963-1966/ 1979-1982) lançaram as bases para a industrialização e o planejamento estratégico no Ceará, onde se procurou dotar o território de infra-estruturas diversas, dentre elas a expansão do abastecimento e saneamento básicos, com a construção do emissário submarino em 1978 e do sistema Pacoti-Riachão-Gavião em 1981, como as obras estruturais da Companhia de Água e Esgoto do Ceará ? CAGECE, de 1971.

A partir da metade da década de 1980, o país entra em uma nova fase organizacional. Esse período histórico marca o fim do regime militar, uma nova Constituição em 1988 é promulgada, fatos que encaminham a nação para uma reorganização institucional de descentralização, onde as atribuições passam a ser das instâncias federal, estadual e municipal (DAGNINO, 2002).

A partir desse contexto os estados passam a ter maior autonomia na questão hídrica dentro de seu território administrativo. O governo do Ceará na gestão de Tasso Jereissati cria nessa época a Secretaria de Recursos Hídricos e em 1992, já no governo de Ciro Gomes foi elaborado o Plano Estadual de Recursos Hídricos, dando origem à Política Estadual de Recursos Hídricos com seus órgãos, que juntos formam o sistema de gestão, definindo as diretrizes para as políticas da água, que foi influenciada pelos paradigmas do desenvolvimento sustentável, discutidos em âmbito mundial com as conferências de meio ambiente (CHACON, 2007).

O projeto Áridas (1995), baseado na ICID (Conferência Internacional Sobre Impactos de Variações Climáticas e Desenvolvimento Sustentável em Regiões Semi-Áridas) que foi realizada em Fortaleza em 1992, e serviu de preparatória para a Conferência de Meio Ambiente realizada pelas Nações Unidas no Brasil, conhecida como Rio 92. O Projeto Áridas se tornou relevante como proposta metodológica para formulação de um planejamento governamental para o Ceará, utilizando o conhecimento de vários especialistas e mencionando o conceito utilizado no momento, o de desenvolvimento sustentável.

Em 1993 foi criada a COGERH (Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos), pela Lei nº 12.217, onde as ações de administração e monitoramento das águas passam a ocorrer, tendo início os levantamentos de usuários das águas das bacias hidrográficas, para implantação dos sistemas de outorga e cobrança pelo uso da água, iniciados em 1994 e 1996, respectivamente.

Também em 1993, em decorrência de uma estiagem prolongada, os reservatórios que abastecem Fortaleza e a Região Metropolitana (Pacoti-Riachão-Gavião), apresentavam baixo nível em suas reservas, comprometendo o abastecimento da capital. Nesse contexto, foi construído em caráter de emergência em 1993 o chamado Canal do Trabalhador, um canal que perpassa vários municípios e capta água da bacia do Jaguaribe, se estendendo por mais de 100 km.

No ano de 1997 cria-se o primeiro comitê de bacia hidrográfica, na bacia do rio Curu. Entre 1997 e 1999 os primeiros planos de bacias foram elaborados.

Em 2008 foi elaborado o Pacto das Águas, um conhecimento sobre a realidade hídrica do Ceará, sendo elaborados diagnósticos e metas a serem cumpridas.

Conforme Sampaio (2007), a intervenção estadual no controle das águas do Ceará a partir da criação da Secretaria de Recursos Hídricos dá a este elemento da natureza um significado cada vez mais geopolítico e estratégico, e através das novas tecnologias são criadas obras estruturais para garantir a segurança hídrica, que na prática significa a garantia de que tais águas possam ser um combustível para atrair investimentos para o estado e permitir a realização das diversas atividades econômicas no litoral, nas serras e no sertão cearense.

Dessa forma, os investimentos para ampliação da oferta de água domiciliar e industrial crescem à medida que o Ceará entra em um padrão urbanizado e busca sua inserção no modelo globalizado da economia, e tais ações são materializadas nas formas que são inseridas no espaço cearense, com objetivos econômicos e sociais de agentes locais e internacionais (LIMA, 2006).

Relacionando essa questão com o projeto de desenvolvimento para o Nordeste de Unger (2009), percebe-se que há uma semelhança na ênfase às obras de infra-estrutura para fazer a "unificação física da região" (p.23). Os projetos do governo do estado do Ceará por meio da Secretaria de Recursos Hídricos e da COGERH buscam ampliar a oferta hídrica para o abastecimento urbano e industrial, apostando na integração institucional (por meio dos comitês de bacia e estudos estratégicos) e física (adutoras e canais) das bacias hidrográficas.

Entende-se ainda desse autor que há a valorização de um ideário de desenvolvimento que desconstrua a idéia de um Nordeste pobre, das secas, em proveito de um Nordeste promissor, com potencial de recursos naturais e humanos. Tal ideário encontra eco nas políticas hídricas do Ceará, em que o desenvolvimento do estado está atrelado ao fortalecimento e à eficiência dos sistemas de gestão dos recursos hídricos.

Considerando esses aspectos, observa-se que "a combinação de fatores naturais e sociais permite elaborar uma interpretação política dos recursos hídricos" (RIBEIRO, 2008, p. 24). No Ceará, a partir da década de 1980, destaca-se o papel do poder público na criação de uma política da água, à medida que obras artificiais, como açudes, adutoras e canais são construídos nas bacias hidrográficas com vistas a garantir a segurança hídrica em um território com clima semi-árido. Assim, cabe ao Estado, com a criação de uma legislação e de um corpo institucional o papel de regulador do uso dessas águas que escoam no território cearense, para adequar esse território a um perfil de competitividade em escala global, por isso a implantação de um sistema de articulação e interligação de obras hídricas.

Dentre os projetos e programas, destaca-se a criação do Programa de Desenvolvimento Urbano e Gerenciamento dos Recursos Hídricos ? PROURB, em 1995, Projeto São José em 1995, Projeto de Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos do Estado do Ceará ? PROGERIRH em 1997, tendo como destaque a construção de obras de integração de bacia, como o complexo do Eixão das Águas, que possui 5 eixos de integração das águas do açude Castanhão até a Região Metropolitana e o Complexo do Porto do Pecém; Programa de Desenvolvimento Sustentável de Recursos Hídricos para o Semi-Árido Brasileiro ? PROÁGUA em 1998, dentre outros.

Os projetos e investimentos no campo de infra-estrutura hídrica viabilizaram a modernização econômica, mas esta ocorreu de forma concentrada em setores específicos do território cearense, notadamente a Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), zona costeira, e alguns municípios da região do vale do Jaguaribe, Acaraú e do Cariri. As obras hídricas de grande porte, como açudes e adutoras passam a se localizar estrategicamente em porções territoriais consideradas favoráveis à sua exploração pela agricultura irrigada, pesca, turismo e outras atividades econômicas (QUINTILIANO e LIMA, 2008).

Acredita-se que houve uma modificação na oferta e gestão das águas no Ceará através da criação de vários projetos e programas, dentro do contexto nacional de implementação de políticas hídricas. Essas ações trouxeram algumas melhorias para o Estado, contribuindo para o desenvolvimento das atividades econômicas.

Porém, problemas antigos permanecem, como: contaminação e poluição de águas superficiais e subterrâneas por diversos fatores; abastecimento e saneamento básico precário nas localidades rurais, o que compromete a qualidade da água e a saúde das comunidades; negligência e/ou desinformação, levando ao uso incorreto de água, tanto levando ao desperdício como à degradação; baixo ou inexistente planejamento do uso de pequenos açudes; carência de políticas que envolvam a distribuição equitativa da água e busquem alternativas viáveis para o abastecimento hídrico e desenvolvimento que atendam às comunidades carentes do interior e das periferias urbanas. Essas problemáticas são mais evidentes nas periferias urbanas, nas localidades rurais distantes dos aglomerados industriais, turísticos ou agrícolas.

Os dados sobre indicadores sociais no Ceará em 2008 revelam que a porcentagem de domicílios com abastecimento de água e atendimento por rede de esgoto era, respectivamente, de 80,72% e 29,85%, números que se mostram superiores à média nordestina, mas inferiores à média nacional, que fica em torno de 83,91% e 53,48% respectivamente (IPECE, 2008), ressaltando ainda que há diferenças no atendimento entre áreas urbanas e rurais, bairros com habitantes de maior ou menor poder aquisitivo.

Os projetos hídricos realizados no Ceará, sobretudo após a criação da Secretaria de Recursos Hídricos e do maior aporte financeiro, vêm atender cada vez mais a uma demanda industrial e populacional crescente e concentrada, impulsionando vários setores da economia, como a agricultura irrigada, o turismo, a pecuária, a carcinicultura, com o aumento da oferta hídrica e a evolução nos processos de gestão, mas a diferença entre os indicadores econômicos do Estado e o atendimento às necessidades básicas dos grupos sociais com baixo poder aquisitivo ainda é preocupante, ficando boa parte das comunidades rurais com acesso à água de forma precária, mediante carros-pipa, poços e cisternas com água de baixa qualidade, e tendo que caminhar vários quilômetros para obtê-la de açudes e outros locais, muitas vezes privatizados irregularmente.

Costa (1992) ao falar sobre as desigualdades no tocante ao desenvolvimento do Nordeste, avalia que os projetos e políticas implementados nessa região em alguns aspectos favoreceram a modernização, mas não contribuíram para a real redução da pobreza e da desigualdade social, que é para o autor, uma questão estrutural. Postula que é necessário novos paradigmas de desenvolvimento, que busquem "a integração dos espaços regionais com a redução das heterogeneidades sociais, com a preservação do meio ambiente e com a valorização do patrimônio cultural do Nordeste". (COSTA, 1992, p. 120).

Dessa forma, ao se fazer análise sobre a questão da água no Ceará, é preciso questionar quais os paradigmas que ajudam a construir o ideal de sustentabilidade preconizado pelo poder público na criação de projetos e obras de infra-estrutura hídrica. Conforme Fernandes e Garcia (2006) é preciso ter cautela com o conceito de desenvolvimento sustentável, pois este é incorporado pelo discurso moderno, envolto de utopias, esperanças, ideologias. Para os autores, faz-se necessário reinventar a idéia de progresso e de desenvolvimento, abandonando o mito da natureza intocável e/ou da natureza apenas como fonte de recursos econômicos.

Nesse contexto, considera-se que a água torna-se um recurso cada vez mais escasso e disputado por diversos setores da sociedade, e os problemas com os quais as sociedades se deparam, levam a uma desigual oferta desse elemento vital. Muitas vezes, projetos e políticas são criados e mostram-se inovadores em determinados aspectos, porem não são sustentáveis do ponto de vista social, por terem alcance reduzido e se basearem na crença de que o desenvolvimento e o progresso técnico resolveriam a problemática sócio-econômica da região em questão.

Em meio ao progresso técnico materializado nas obras hídricas e nos processos de gestão, foi mostrado que os problemas antigos persistem, como a desigual oferta de água nas comunidades rurais e falta de saneamento básico, o que evidencia que se trata de uma questão política e não mais climática, como sugeriam os estudos e discursos em torno da problemática das secas nordestinas.

Assim, conclui-se que a estratégia de desenvolvimento por meio da implementação de uma política de águas no Ceará tem trazido melhorias em vários aspectos, dotando o estado de maior infra-estrutura, organizando o processo de gestão e acumulando conhecimento técnico e científico. Porem, ainda há muito que ser realizado, sobretudo no que diz respeito à ampliação das pequenas obras de abastecimento, despoluição e dessalinização, o que favoreceria o acesso à água de forma salutar para as populações de baixa renda.

Portanto, se faz necessário uma maior democratização do acesso à água, por meio da adoção de políticas públicas mais comprometidas que levem à adequada gestão hídrica como condição essencial à sobrevivência e produtividade sociais.

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